terça-feira, 30 de junho de 2009

Redação Carta Maior

Em 2008, bancos tiveram mais ajuda que pobres em 50 anos

Segundo dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU), enquanto os países pobres receberam, em meio século, cerca de US$ 2 trilhões em doações de países ricos, bancos e outras instituições financeiras ganharam, em apenas um ano, US$ 18 trilhões em ajuda pública. A ONU alertou que a crise econômica mundial piorará ainda mais a situação dos países mais pobres, agravando os problemas da fome, da desnutrição e da pobreza.
Fonte: Carta Maior


O setor financeiro internacional recebeu, apenas em 2008, quase dez vezes mais recursos públicos do que todos os países pobres do planeta nos últimos cinqüenta anos. O dado foi divulgado nesta quarta-feira (24) pela campanha da Organização das Nações Unidas (ONU) pelas Metas do Milênio, destinada a combater a fome e a pobreza no mundo. Enquanto os países pobres receberam, em meio século, cerca de US$ 2 trilhões em doações de países ricos, bancos e outras instituições financeiras ganharam, em apenas um ano, US$ 18 trilhões em ajuda pública.

A ONU alertou que a crise econômica mundial piorará ainda mais a situação dos países mais pobres, lembrando que, na semana passada, a Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO) afirmou que a crise deixará cerca de 1 bilhão de pessoas passando fome no mundo.

A revelação foi feita no início de uma conferência entre países ricos e pobres, que ocorre na sede da ONU, em Nova York, para debater o impacto da crise. Segundo o diretor da Campanha pelas Metas do Milênio, Salil Shetty, esses números mostram que a destinação de recursos públicos ao desenvolvimento dos países mais pobres não é uma questão de falta de recursos, mas sim de vontade política.

Sempre digo que se você fizer uma promessa e não cumprir, é quase um pecado, mas se fizer uma promessa a pessoas pobres e não cumprir, então é praticamente um crime”, disse Shetty à BBC. “O que é ainda mais paradoxal”, acrescentou, “é que esses compromissos (firmados pelos países ricos para ajudar os mais pobres) são voluntários”. “Ninguém os obriga a firmá-los, mas logo eles são renegados”, criticou o funcionário da ONU.

Um dos efeitos desta perversa distorção foi apontado pela FAO: a quantidade de pessoas desnutridas aumentará no mundo em 2009, superando a casa de um bilhão. “Pela primeira vez na história da humanidade, mais de um bilhão de pessoas, concretamente 1,02 bilhão, sofrerão de desnutrição em todo o mundo”, advertiu a entidade. A FAO considera subnutrida a pessoa que ingere menos de 1.800 calorias por dias.

Do total de pessoas subnutridas hoje no mundo, 642 concentram-se na Ásia e na região do Pacífico e outras 265 milhões vivem na África Subsaariana. Na América Latina e Caribe, esse número é de 53 milhões de pessoas. Em 2008, o total de desnutridos tinha caído de 963 milhões para 915 milhões. O motivo foi uma melhor distribuição dos alimentos, Mas com a crise, o quadro de fome no mundo voltará a se agravar. Segundo a estimativa da ONU, um milhão de pessoas deverão passar fome no mundo nos próximos meses.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Bruno Lima Rocha

O Senado que se basta

Bruno Lima Rocha é graduado em jornalismo pela UFRJ, tem mestrado e doutorado pela UFRGS; é docente de ciências da comunicação e Pesquisador I da Unisinos, membro do Grupo Cepos do PPGCom e editor do portal Estratégia & Análise.
Fonte: UNISINOS



A instituição parlamentar no Brasil vive de sua dubiedade e isso já há muito tempo. Quando no hoje longínquo ano de 1984 o Congresso Nacional com maioria da Arena recusa a emenda das Diretas para presidente, em tese ali iniciava o princípio do fim do domínio oligárquico nas duas casas. Ledo engano, porque a cultura política que dialogava com a ditadura e possibilitou invenções de triste memória como os “senadores biônicos”, “reciclou-se” para assumir o poder do Estado brasileiro. As palavras são duras, mas reais. Os que eram apoio para a o regime da caserna tornaram-se a base política do regime “democrático” do rito liberal.

Desse modo, a continuidade foi vista a olhos nus e não assume quem não quer. Aos poucos os componentes do palanque das Diretas foram se “adaptando” e já na Constituinte uma parte deles participava avidamente do Centrão. Este bloco, dotado de eufemismo o qual já abordei em artigo anterior, era a direita programática na legislatura que conseguiu a proeza de escrever a Carta Magna e negociar um mandato tampão para José Sarney, sempre em troca de prebendas, tais como as sempre presentes concessões para rádio e TV.

Não há que se demonizar a José Sarney e sua trupe, uma vez que a composição da Aliança Democrática já contava com a UDN, travestida de Arena e depois de PFL. O MDB, transformado em PMDB, dá vazão às demandas regionais já nas eleições estaduais de 1982. Ganhou em vários estados e depois arrasou no pleito do Plano Cruzado, em 1986. Um dia depois da esmagadora vitória eleitoral nos estados e no Congresso, seu governo, com Sarney à frente, decretava o fim do Plano Cruzado I e o Cruzado II assistiu sua “inauguração” com mais de 30 mil pessoas na Esplanada dos Ministérios simplesmente quebrando tudo o que viam pela frente. Mesmo os mais humildes não toleram que subestimem sua inteligência. Parece que a lição não foi aprendida.

No Senado, se vê a continuidade da contaminação institucional

Houve quem defendesse a renovação parlamentar como forma de injetar sangue novo nas casas e assim romper com velhos vícios. Ledo engano. Primeiro porque os vícios não são “vícios”, mas algo constitutivo do uso privado da máquina estatal detentora de mandato público. Segundo, porque assim como no presídio, quando o réu primário entra leigo e sai professor na escola do crime violento embora de pouca monta, nas casas parlamentares, o ritmo é ditado pelos líderes das bancadas por legenda, estado ou grupo de interesse. Se alguém pensa que exagero, basta conferir o acionar político da senadora Kátia Abreu (DEM-TO) e de seu correligionário de Goiás, o sempre atuante latifundiário e deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO).

Ao invés de mudar o comportamento interno, o que se viu foi a clássica renovação para perpetuação. Mais uma vez exercito a memória recente, recordando que o Congresso onde o então presidente Fernando Collor de Mello, hoje senador da base de apoio ao governo (PTB-AL), tinha maioria e rolo compressor foi o mesmo que o ajudou a derrubar. Logo após a queda do maior factóide político do Brasil, o Congresso vivera meses de agonia com o escândalo dos Anões do Orçamento. Na ocasião se vira modus operandi semelhante ao dos últimos 15 anos de gestão de Sarney, Calheiros e Cia. À frente da câmara alta da república. Um servidor de carreira levou para a lona alguns políticos conhecidos e outros de perfil político irrelevante, inversamente proporcional ao tamanho de suas fortunas pessoais sem origem e nem procedência. Quem se recorda dos finados Ricardo Fiúza (PP de Pernambuco, ex-ministro de Collor) e de João Alves acertou. Mas, as teias de relações escusas vão mais além. A CPI dos Anões começara logo após a saída de Collor, ganhando pouco fôlego em função do acionar da negativa de Itamar Franco (vice de Collor que assumira em outubro de 1992). Como se nota, a continuidade de ações corriqueiras, como as levadas adiante por José Carlos dos Alves dos Santos – o funcionário público que operava o esquema dos anões, dentre eles os 14 cassados – não são nada recentes.

A auditoria é um começo, mas o raciocínio lógico deve ser de outra ordem

Se dia a dia fatos novos vêm à tona e sendo estas mesmas verdades factuais apenas uma parte do todo, nos deparamos com algo que tem uma grandeza inequívoca. Quando aplicado o princípio do serviço público de Publicidade da própria máquina e de seu acionar, nos damos conta de que o que há no Senado não é “desvio”, mas forma distinta. Não quero dizer que concordo com os absurdos feitos há 15 anos, a noção é outra. O que afirmo sem nenhuma hesitação é duro de admitir. Se o faço em sala de aula tenho de ter o brio de escrever e difundir. Ou seja, o que há no Senado não é a crise pela conduta fisiológica dos seus membros. O que há é a simples difusão desta mesma conduta. Ou seja, o público brasileiro consumidor de informação se depara com algo que é sistêmico e não corriqueiro.

Num local de trabalho com 81 senadores, todos se conhecem e tem a obrigação de dominar o rito interno e as normas de funcionamento desta parcela do Poder Legislativo. Ao locupletarem-se os representantes majoritários dos estados cometeram dois tipos de crime. Uma parte, por usufruir de modo criminoso do patrimônio coletivo para fins privados, na maior parte das vezes por razões infames. Outros, por talvez nada fazer, cometem o crime de omissão. Não é válida a hipótese de inocência política nesse nível decisório. Menos ainda de desinformação. Desinformar-se do funcionamento do parlamento sendo detentor de mandato é no mínimo a omissão a qual me referi acima.

Considerando que no mínimo 45% dos senadores ainda são contra o afastamento de Sarney (PMDB-AP e base de apoio do governo Lula) da presidência do Senado, a “crise” continua e não ouso antecipar um desfecho provável. O de praxe é a medida da Mesa Diretora de afastar de suas funções dois diretores da câmara alta. Além disso, a Comissão encarregada de analisar os atos secretos concluiu seu relatório, responsabilizando Agaciel Maia, ex-diretor da Casa, como executor dos chamados atos secretos. Até aí mais do mesmo, porque é parte do jogo a corda estourar embaixo. Um homem de confiança, em sendo leal ao seu padrinho político, vai cair sozinho e em silêncio. Em geral, estas atitudes costumam ser bem recompensadas pelos que manipulam recursos públicos para fins privados.

Que os otimistas me desculpem, mas até agora a única boa nova para a lavagem geral das entranhas do Senado da república é a solicitação de auditoria externa a ser executada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O alvo das investigações será a revisão dos contratos para aquisição de produtos e serviços. Terão trabalho de sobra e pressões abundantes. Esta pode ser uma boa notícia caso os auditores consigam responsabilizar os mandantes e não apenas os operadores de contratos. Isto porque vejo uma ação desta monta como ponto de partida e não de chegada. Ou seja, além de auditar, o Senado tem de ser redimensionado.

O insulamento e a autonomia de um órgão de Estado não são nenhuma novidade

O gigantismo e a falta de missão é um problema crônico de estruturas afins. Todo órgão de Estado superdimensionado tende a mover-se de forma previsível na defesa de interesses próprios. O caso mais contundente da história do Brasil recente foi o da chamada comunidade de informações nos últimos anos da ditadura. O Sistema Nacional de Informações (Sisni) e o Serviço (SNI) tinham em total mais de 20.000 pessoas a tempo completo ou parcial dedicados a produzir informação motivada por uma doutrina de segurança e desenvolvimento já em decadência. A segurança interna do regime não tinha inimigo em armas para combater e o desenvolvimento almejado com o Brasil Potência e no 2º Plano Nacional de Desenvolvimento se encontravam solapados pela dívida externa e a inflação galopante. Sem alvo legítimo, a luta se tornou autofágica. Os porões continuavam sombrios e dedicaram-se a assombrar os arautos da Abertura gradual e restrita. Após o atentado do Riocentro (1º de maio de 1981), não houve remédio que não desmontar a estrutura de comando interno paralelo, dissolvendo os Doi-Codis. Ainda assim, os danos residuais seguem com a ação dos irregulares do extinto SNI agindo na ponta de operações internas compartimentadas e de duvidosa legitimidade.

Se nos valermos do triste exemplo do “monstro da comunidade de informações”, segundo um de seus criadores, Golbery do Couto e Silva, é necessário cortar na carne e fazer drástica redução de pessoal não concursado. Se for para fazer uma limpeza no modo de funcionamento do Senado, a auditoria é só o começo. No momento, a opção válida parece ser o afastamento de Sarney, um movimento habitual de entregar alguns anéis para não perder todos os dedos.

Pode parecer implicância, mas a compreensão da chamada “crise” do Senado passa por uma divergência interna na base do governo, rachando a apertada maioria ali. Não houvesse a disputa entre Tião Viana (PT-Acre) sendo apoiado pelos tucanos e derRotado pelo senhor do Maranhão embora seja senador do Amapá e nada haveria saltado nem ocorrido. Assim, julgo não ser nem relevante nem válido nenhum discurso de moralismo interno entre senadores. O gigantismo do Congresso como um todo e do Senado em particular é um convite para o insulamento de um poder que representa muitas vezes apenas a si mesmo e aos 10 mil de seu entorno direto. A devassa teve e terá de vir de fora. Espero que isso seja apenas o começo.


quinta-feira, 25 de junho de 2009

Luís Carlos Lopes

Origens dos privilégios

O Estado para muitos dos críticos e dos que ocupam postos transitórios não passa de um negócio, um momento ímpar para acumular capital e gozar de privilégios incontáveis. As grandes mídias destacam alguns poucos episódios e os exploram à exaustão. Não há interesse em analisar esse problema em profundidade.
Fonte: Carta Maior

Há quem acredite que não se deva mexer no passado, ainda mais em ideologias que, segundo os presentistas de plantão, teriam saído de foco e consideradas ultrapassadas. Negam, como todos os negacionistas, evidências de que determinadas situações só podem ser realmente compreendidas, se voltamos às suas origens. Insistem em um modo de pensar com mais de mil anos de existência, nascido do medievo europeu. Neste, o que está posto, posto está, e não há o que discutir. Ficam possessos toda vez que encontram uma voz - mesmo que seja única ou com poucos ecos - discordante de suas certezas inabaláveis.

As origens do Estado brasileiro não nos deixam mentir. Ele surgiu no contexto da escravidão e de uma monarquia absoluta, travestida de constitucional. Na segunda metade do século XIX, no governo de Pedro II, este Estado se consolidou e parte de suas estruturas simbólicas estão presentes ainda hoje. O impacto disto na sociedade brasileira é imenso. O Estado brasileiro tem uma história que só pode ser compreendida na sociedade onde nasceu e se desenvolveu. Ele não é um corpo estranho, por mais que o possa parecer em algumas situações. Tem forte ligação com estruturas sociais que o suportam e retroalimentam, na posição de reais governantes e de verdadeiros governados.

Os privilégios que vêm sendo estampados nas grandes mídias existem de longa data. Vêm sendo mantidos sem maiores problemas, há quase duzentos anos. Por aqui, jamais houve uma revolução social profunda que os questionassem. A diferença de hoje para um passado remoto é que preciso mantê-los de modo mais cauteloso, ainda mais quando incluem as mais descaradas formas de nepotismo, clientelismo, mordomias e outros atos corruptos. A manutenção de "dinastias" políticas não é estranha a uma sociedade de privilégios aristocráticos, onde as benesses do poder são passadas de geração para geração.

No passado, era ainda mais fácil naturalizá-los. A emergência de uma sociedade de massas, altamente midiatizada, tornou esta operação mais difícil. Nos tempos da ditadura, o Estado era o guardião de todas as aberrações da sociedade brasileira. Depois dela, os consensos sociais ficaram de obtenção mais complexa e em situações pré-eleitorais tornam-se ainda mais fácil a manipulação dos mesmos. Os pactos de sigilo podem se romper abruptamente e os segredos, parcimoniosamente, trafegarem inesperadamente em um universo instável: o das mídias.

Jamais são revelados completamente. E quase ninguém tem coragem de falar no caráter corruptor do Estado e das classes dominantes. É proibido dizer que a velha máquina absorve e recicla o material humano que recebe e que sua experiência na matéria é bem antiga, remonta ao Império. A retórica vem a galope dos que se opõem e querem lá estar para fazer o mesmo ou bem pior. Não poucos posam como santos "de pau-oco" em um momento, para, a seguir, desenvolver as práticas nefandas habituais desta velha organização. Por isso, é importante prestar atenção nas críticas, acusações e denúncias que fazem. Ver atrás delas, o rio de interesses que carregam, sem qualquer problema ético.

O Estado para muitos dos críticos e dos que ocupam postos transitórios não passa de um negócio, um momento ímpar para acumular capital e gozar de privilégios incontáveis. Estes fazem com que os que os privilegiados pensem que vivem em um mundo para além do capital, apesar de ser sustentado pelo mesmo. Acreditam que são parte de uma espécie de nobreza, agregada a uma realeza de ficção. Sonham com castelos, mesmo que sejam em Minas, com mordomos, mesmo que estejam longe da finesse desta profissão aristocrática.

Com o dinheiro do Estado, farto e gratuito, podem imaginar suas vidas como quiserem. Se desejarem, podem fazer viagens inesquecíveis, festas memoráveis etc. Se forem descobertos, apelam para os mil e um aliados com rabos tão grandes como os deles, que farão de tudo para protegê-los. Afinal, estarão protegendo a eles mesmos. Por isso, sobrevivem, mesmo quando são réus confessos ou contra os quais existam provas irrefutáveis. Cumprem o protocolo, aceitando algumas sanções, e conseguem, tal como príncipes e princesas, retornar ao pedestal da fama, por vezes, em posição inferior a que tinham antes.

É verdade que alguns parecem que saíram de filmes de terror classe B. São patéticos e mentem com impressionante naturalidade. Existe uma grande distância entre o que imaginam ser e o que realmente são. Uma das dimensões do drama em que vivem é o apoio obrigatório de suas clientelas. Ai delas, se não seguirem o script! Nos domínios dos seus currais eleitorais, são considerados por muitos como vencedores e, não raro, injustiçados. Até a compaixão precisam comprar! Acham tudo isto natural e reclamam da incompreensão dos que não se deixam iludir.

As grandes mídias destacam alguns poucos episódios e os exploram à exaustão. Não há interesse em analisar em profundidade, em demonstrar que por trás de alguns fatos existe muito mais. Não se discute a natureza do Estado e nem medidas que de fato poderiam melhorá-lo, tais como a extinção de algumas instâncias, a diminuição de outras e a punição exemplar. O Estado é grande e caro em órgãos de necessidade discutível e pequeno demais naqueles que atendem os principais interesses da população - saúde, educação e cultura. Não é isso que os abutres querem. Ao contrário, eles acham que investir nestas três atividades é coisa do passado. O que eles querem são mais privilégios e continuar, como sempre, usando o Estado como forma de aumentar os seus patrimônios pessoais ou empresariais.

domingo, 21 de junho de 2009

Ivo Lespaubin


‘O corruptor é executivo’

Ivo Lespaubin, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em entrevista ao sítio Radioagência Notícias do Planalto, 19-06-2006.
Fonte: UNISINOS


Professor qual visão você tem desta crise que o Congresso brasileiro está sofrendo?

Essa crise não começa agora, nem tampouco começa nesse governo. Ela tem muito a ver com a forma como o executivo se relaciona com o legislativo no nosso sistema político. Como o executivo precisa da aprovação do legislativo para aprovação de projetos de lei, temos acompanhado nos últimos anos freqüentemente situações de compra de voto. Compra de voto de senadores e deputados para aprovação de projetos do executivo. O exemplo que conhecemos melhor é a compra de votos para o projeto de emenda de reeleição do governo do [ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso, no primeiro mandato. A compra de votos de alguns deputados foi denunciada em alguns jornais, inclusive o valor dos votos.

O presidente declarou que essa crise é, na verdade uma onda de “denuncismo”. Como você vê essa posição?

Por que é que essa crise está eclodindo agora e por que o executivo está tomando essa posição no discurso que o presidente fez lá fora? Porque existe uma aliança do presidente Lula com o PMDB, mais especificamente com o Sarney, e ele não pode deixar cair essa aliança para levar à frente seus projetos. A corrupção no congresso tem a ver com a forma que o executivo utiliza o congresso. O corruptor é executivo. A primeira reação do presidente é dizer que isso é uma onda de denuncismo. Se for uma onda de denuncismo ou não, nós temos que primeiro verificar o que aconteceu. Como ele costuma dizer sempre: Doa o quem doer. Vamos examinar os fatos e não simplesmente dizer que isso sempre aconteceu, que não há nada de errado e dar continuidade à corrupção.

Qual papel a mídia tem desempenhado nessa crise?

A mídia evita o termo compra de votos, mas usa expressões equivalentes, das maneiras mais variadas. A mídia aponta os fatos que estão ocorrendo. O que ela pode fazer, eventualmente é exacerbar. Ela não é a fonte desse processo, ele está efetivamente ocorrendo. Eu acho que os meios de comunicação não vão ao fundo da questão. Qual é a causa, o que gera essa corrupção, quem iniciou, porque isso ta acontecendo? Se a mídia trabalhasse a questão, ela chegaria à conclusão que só uma reforma política permitiria interromper isso.

O senhor aponta a reforma política como uma saída necessária. Quais medidas integrariam esta reforma?

A primeira coisa é mudar efetivamente o sistema de financiamento das campanhas eleitorais, para não haver interferência dos interesses privados. Isso mudaria radicalmente os governos e o legislativo, porque hoje eles são reféns dos que financiaram suas campanhas, ou seja, empresários e banqueiros. Teria de ser feita uma reforma não apenas eleitoral, a reforma tem que ser mais ampla, inclusive estabelecendo a possibilidade de retirada de um político eleito do meio do seu mandato, caso ele não esteja cumprindo o que prometeu durante a campanha. Tem que fazer uma regulamentação dos plebiscitos e referendos para permitir a iniciativa por parte da sociedade civil. Uma série de medidas para haver fiscalização da sociedade civil sobre os poderes existentes, tanto o executivo, o legislativo e o judiciário.


Entrevista - Dalmo Dallari

O fim do Senado precisa ser discutido

São mais de 650 atos secretos apurados e a contagem continua. Conforme avança a investigação das ordens administrativas que beneficiaram sigilosamente parentes e amigos de senadores, descobre-se que agir em segredo já não era o bastante: até atos "ultrassecretos" foram assinados pela mesa-diretora do Senado. Acuado, o presidente da Casa, José Sarney, cujos parentes se espalham por gabinetes de colegas, anunciou a instalação de uma comissão de sindicância para apurar as denúncias, a criação de um portal de transparência para que se publique tudo o que acontece ali e uma auditoria externa na folha de pagamento. A reportagem e a entrevista é de Flávia Tavares e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 21-06-2009.
Fonte: UNISINOS


"O modelo bicameral brasileiro não se justifica", provoca o jurista Dalmo Dallari, que trabalha em um livro sobre o constitucionalismo em que analisa a necessidade de duas casas legislativas. "Para que, além dos representantes do povo, que são os deputados, precisamos de representantes dos Estados, se eles são tão dependentes do governo federal?", questiona o professor da Faculdade de Direito da USP, colocando em xeque uma casa parlamentar que controla um orçamento de R$ 3 bilhões. Em Fundamentos do Constitucionalismo - História, Política e Direito, a ser publicado ainda este ano, Dallari busca paralelos com os modelos americano, francês e inglês para sustentar que um Legislativo forte não é necessariamente dividido em dois. Mas admite que, isolada, a extinção do Senado não é viável. "É aí que uma reforma política que adote o sistema distrital se faz fundamental", diz. "Esse é o início de uma discussão. É preciso entender que, com um Legislativo melhor, a democracia se fortalece."

Em seu novo livro, o senhor critica o modelo bicameral do Legislativo brasileiro. Por quê?

É fundamental recuperar a história para entender como nasceu o sistema bicameral. No mundo moderno, há três modelos básicos de Constituição. Um é o inglês, que tem uma peculiaridade: a Constituição é parcialmente escrita e se baseia em grande parte em decisões judiciais, que criam parâmetros para temas importantes. Por esse motivo não é tão imitada. O segundo modelo é o americano, a primeira Constituição escrita da história. E o terceiro é o francês, que se baseou em teorias filosóficas e políticas de pensadores como Rousseau e Montesquieu e foi influenciado pelos EUA, pois também é escrito.

Como surge o bicameralismo em cada um dos casos?

Na Inglaterra, que firmou sua Constituição no final do século 17, o grande desafio da nobreza decadente era conter a burguesia ascendente. Por isso, o parlamento britânico é, ainda hoje, dividido em duas casas: uma é a Câmara dos Lordes, que é a dos nobres. A outra é a Câmara dos Comuns, dos burgueses. Nos EUA, em 1787, nasceu a ideia de uma Constituição para as antigas colônias que, a partir dali, foram chamadas de Estados, mas com o pressuposto de que não perderiam a independência. Os americanos, também influenciados por Montesquieu, defendiam a separação dos poderes. Decidiram num primeiro momento que se criaria um Legislativo em que os membros seriam eleitos pelo povo e que o número de representantes de cada Estado seria proporcional ao número de eleitores.

Por que criaram o Senado então?

Porque surgiu um grave problema: os Estados do norte não tinham escravos. Seu número de eleitores era maior e, portanto, maior seria o número de representantes. Já o Sul, escravista, ficaria com menor representação. Para conter os abolicionistas, criou-se o Senado, com número igual de representantes dos Estados, que deveria confirmar tudo o que fosse aprovado na primeira Casa. Assim, a escravatura durou mais 80 anos nos EUA. A partir daí, houve uma busca de justificativa mais nobre para a existência do Senado: os senadores seriam embaixadores dos Estados junto ao governo central.

Como é o modelo francês?

Ele guarda semelhança com o inglês na inspiração. A primeira Constituição francesa é de 1791, num segundo momento da Revolução, em que as forças populares já não eram tão ativas e a burguesia, que buscava conciliação com o setor progressista da nobreza, tinha assumido o poder. Mas havia uma corrente da burguesia radical com grande poder no Legislativo. Para deter os excessos democratizantes dessa corrente foi que se pensou no Senado, instituído oficialmente na Constituição de 1799 e chamado de poder conservador, porque se queria afirmar que a fase revolucionária havia terminado.

Por que o bicameralismo foi adotado no Brasil?

Na sua primeira fase de país independente, na primeira Constituição, de 1824, o Brasil tomou por base o modelo francês. Foi prevista a existência da Câmara dos Deputados e do Senado, mas com diferenças. Uma delas era a maneira de escolha dos parlamentares. Os eleitores escolhiam os deputados e uma lista tríplice de senadores. O imperador escolhia então o senador a partir dessa lista. O segundo dado é que os senadores eram vitalícios, não tinham mandato. E o terceiro ponto, muito expressivo, é que para ser senador o cidadão precisava ter renda mínima anual de 800 mil réis, uma fortuna. Ou seja, o Senado nasceu como uma casa feita para abrigar os oligarcas, que lá se mantêm até hoje.

A estrutura mudou na República?

Em 1891, o Brasil fez uma adaptação para o modelo americano, com destaque para a figura de Rui Barbosa, que conhecia bem o sistema dos EUA. Estabeleceu-se como lá o princípio da separação de poderes. Em relação ao Legislativo, decidiu-se por um sistema bicameral, com os senadores eleitos pelo povo e dando ao Senado o poder de revisão. Por conveniência, para estabelecer um paralelismo com os EUA, as províncias viraram Estados. Mas só no nome. A figura do senador como representante dos Estados, no Brasil, não tem sentido, porque os Estados brasileiros não são soberanos. Eles podem tomar decisões sobre uns assuntos, mas não sobre outros, reservados ao poder central. Mesmo nos EUA não são tão soberanos assim. Chamar as antigas colônias de Estado foi um artifício para criar a fantasia de que elas continuariam autônomas mesmo sob um governo comum.

A Constituição define os senadores como representantes dos Estados da Federação?

Sim, mas a nossa é uma falsa federação, porque temos falsos Estados. O Artigo 46 da Constituição diz que o Senado se compõe de representantes dos Estados e do Distrito Federal. Mas, de fato, não há nenhuma justificativa para que, além dos representantes do povo, haja representantes dos Estados, tão dependentes que são do governo central. Senão, por que não criar também uma câmara federal para representar os municípios? Afinal, nosso federalismo é de três níveis.

Por que os senadores não agem para aumentar a autonomia dos Estados que eles representam?

Porque a medida que existe para que eles manipulem o poder é suficiente. Não há interesse de ampliar essa autonomia, só pensam em brigar pelo poder.

Quem está ganhando essa briga?

As oligarquias ficaram muito fortalecidas, tanto que duram até hoje. Existem esquemas políticos estaduais que dominam o sistema político. Os oligarcas mantêm o povo em situação de dependência. O Maranhão é o Estado brasileiro com maior índice de analfabetos. Isso gera uma submissão total, porque os mais pobres ficam gratos quando têm escola ou hospital e reelegem aquele senador. Como os oligarcas estaduais têm muita força eleitoral, acabam usando isso para composições políticas. Para que o governo central tenha apoio de um Estado, é preciso negociar com os parlamentares de lá e a influência do senador nisso é enorme.

Mas José Sarney teve de sair do Maranhão para se eleger no Amapá.

Porque surgiram tantas denúncias contra o grupo Sarney que a situação ficou insustentável. O Maranhão tem uma história de miséria e isso fez com que surgisse uma oposição forte, que começou a esclarecer os eleitores e fez com que a base de Sarney fosse diminuída. Estive no Amapá há algum tempo e, quando perguntei a alguns moradores se eles eram de lá, a maioria respondia ser do Maranhão. Era a população transplantada pelo Sarney para se eleger senador no Amapá. Pessoas miseráveis que continuaram miseráveis em outro lugar, mas profundamente agradecidas pelo pedacinho de terra que ganharam para sobreviver.

Sarney chegou à Presidência da República e optou por voltar ao Senado. Por que não seguir o caminho de agir nos bastidores da política?

Ele volta porque gosta de se sentir um senhor feudal. Com isso, além de conseguir benefícios pessoais, ele beneficia também seus amigos e sua família. Agora, o espaço dos senhores feudais está diminuindo gradativamente. Ainda vai levar um tempo, mas já está acontecendo.

Nos EUA, na Inglaterra e na França, discute-se o fim do bicameralismo?

Muitos teóricos ingleses admitem que a Câmara dos Lordes é uma fantasia. Ela foi perdendo poder e as decisões são tomadas na Câmara dos Comuns. Na França, o Senado ainda mantém poder político, embora mais restrito, porque desapareceu o dualismo entre o resto da nobreza e a burguesia. Somente nos EUA o Senado é realmente forte, porque expressão do poder dos Estados. No Brasil, não há justificativa teórica nem de organização democrática para a necessidade do Senado. Na prática, o Senado é e sempre foi um anteparo contra excessos democratizantes. O papel que a Constituição lhe atribui é muito mal exercido. Reservaram-lhe algumas funções para diferenciá-lo da Câmara, mas no processo legislativo ele é igual. Por exemplo, ele tem a atribuição de aprovar não só operações financeiras externas da União, dos Estados e municípios como também a escolha de um ministro do STF e do Banco Central. E todas as leis têm de passar pelas duas casas. O desaparecimento do Senado não faria diferença no processo legislativo.

Seria uma instância a menos de decisão e de discussão de leis.

Sim, mas na Câmara a representação é proporcional. Ali, aquela regra "um eleitor, um voto" realmente vale. Ao passo que no Senado, como todos os Estados têm o mesmo número de senadores, aqueles que têm um número muito menor de eleitores têm o mesmo peso que os que têm um grande eleitorado, o que é antidemocrático e quebra o princípio da igualdade. O que vai garantir a democracia é que haja a transparência no Legislativo e maior participação do povo. As instâncias de decisão não precisam ser "para cima", podem ser "para baixo", com organizações da sociedade civil, associações, universidades. Também poderia ser mais usado o instrumento do plebiscito, da consulta de prioridades.

O Brasil tem um trauma de déficit democrático que foi o período da ditadura. Eliminar uma instituição democrática não é uma medida drástica demais?

Haverá resistência, por isso essa proposta tem de ser amplamente discutida, para que as pessoas façam uma reflexão e percebam que não há ameaça na introdução de mudanças que, bem ao contrário disso, depuram a democracia. Antidemocrático seria eliminar o Legislativo. Aliás, eu como jurista não posso perder de vista o que diz a Constituição. Ela estabelece como princípio a separação dos poderes e diz que haverá um Legislativo, um Executivo e um Judiciário, mas não exige um Legislativo bicameral. O princípio democrático é um Legislativo eleito pelo povo, mas a par disso a Constituição afirma a igualdade de todos, e o Senado é a expressão da desigualdade.

O senador Cristovam Buarque sugeriu há algum tempo um plebiscito para se questionar a existência do Congresso, o que causou um estardalhaço enorme.

Ele disse que o Congresso estava de tal forma desmoralizado que, se perguntássemos ao povo, talvez eles dissessem que seria melhor fechá-lo de uma vez. Essa ideia soou de uma forma errada, mas ele é um democrata. Isso mostra que o Brasil não tem ambiente para que se proponha o fim do Senado, não neste momento. Mas é preciso iniciar essa discussão, levantar a ideia, provocar o interesse. O assunto tem que ser discutido nas universidades e nas associações de maneira geral.

Sarney disse que a crise não é dele, mas do Senado. Como o senhor analisa essa declaração?

Ele só se esqueceu de que o Senado é o conjunto de senadores. Há sem dúvida uma crise individual também. De uma geração para outra, é preciso que se adote um comportamento diferente. É o caso ACM: o neto está longe de exercer a ascendência do avô e não há nenhuma perspectiva de que ele conquiste o mesmo poder. Isso deve acontecer também nos outros Estados e daqui para frente vai ser cada vez mais difícil manter essa dominação absoluta, até mesmo porque a imprensa está fazendo denúncias e ajudando a conscientizar a população.

Houve senadores que foram fundamentais na história do País?

Sim, já tivemos grandes figuras lá. No período monárquico, posso citar Barão do Rio Branco, que trabalhou muito para definir o Brasil como um Estado soberano. Rui Barbosa contribuiu imensamente para a instalação do sistema republicano no País. E Afonso Arinos, grande personagem político desde 1946, assessorou Ulysses Guimarães quando Tancredo morreu e houve um temor de que os militares voltassem ao poder. Mas o Senado como instituição nunca foi crucial. Eu diria que o Legislativo é essencial, não o Senado. Atualmente, existem senadores absolutamente respeitáveis, mas que são figuras isoladas. Além disso, há muitas pessoas competentes e bem intencionadas que se recusam a entrar para a política, justamente para não se desmoralizar ou para não se verem obrigadas a fazer concessões.

Nesse sentido, não seria mais importante moralizar a política do que fechar uma Casa?

Unificar o Legislativo é um dos passos para a moralização da política. Não há razão política, no sentido próprio da expressão, que justifique a existência do bicameralismo. E não há um caminho imediato de moralização, é um trabalho de longo prazo.

O caminho seria a reforma política?

A extinção do Senado só tem efeito com uma reforma política. E numa verdadeira e boa reforma política deveríamos introduzir os distritos eleitorais. No sistema distrital, o candidato só pode ser votado numa circunscrição pequena e o eleitor sabe exatamente em quem está votando, conhece seus antecedentes. Sozinha, a extinção do Senado teria bem menos sentido, embora eliminasse uma despesa enorme, de R$ 3 bilhões anuais, com despesas particulares dos senadores e de seus parentes e cabos eleitorais. Mas para ter uma boa reforma política seria necessário mudar a forma de escolha dos deputados, para que o Legislativo unicameral ficasse forte o suficiente.

Sarney declarou também que a democracia representativa está em crise e que caminhamos para uma democracia direta. O senhor concorda?

O Brasil tem o privilégio de ter uma das poucas constituições do mundo que contemplam tanto a democracia representativa quanto a direta. Nesse sentido, o voto distrital não chega a ser uma forma direta, mas aproxima muito mais o representante do representado. Precisamos aperfeiçoar a representação. Vou dar um exemplo claro: a senadora Kátia Abreu, do Tocantins, fala contra o ministro Carlos Minc se autodefinindo como representante do agronegócio, não do Estado. Outro exemplo: há alguns anos, quatro senadores foram ao Pará para pedir que a fiscalização do trabalho escravo acabasse. Isso é do interesse da população ou do Estado que eles representavam? Mesmo a candidatura deles é decidida por cúpulas políticas, fora o sistema absurdo e escandaloso de suplentes de senadores. Há inúmeros casos em que o suplente é um parente do senador ou um de seus cabos eleitorais ou um financiador. Isso não é democrático nem representativo.

Os senadores também representam seus partidos.

Mas os partidos não representam uma corrente de opinião e sim alguns interesses específicos. Os eleitos, com algumas exceções, também são ligados a interesses econômicos. E o governo central negocia com esses interesses em vista.

Há denúncias de mais de 650 atos secretos no Senado e, agora, até de atos "ultrassecretos". Como fazer para abrir de vez essa caixa-preta?

Com muita publicidade e transparência. O Judiciário era muito fechado, começou a se abrir com a Constituição de 1988 e isso tem sido altamente benéfico. Por outro lado, esses atos secretos do Senado me parecem mais um fato isolado daqueles que ainda perduram. O fato de termos uma imprensa livre e um Ministério Público que pode fazer e faz investigações tornam muito difícil a manutenção de segredos. Mas isso não quer dizer que do dia para a noite vá haver plena transparência. Estamos caminhando para isso e esses atos secretos virem à tona é bom sinal. E, na parte do sistema administrativo, o Tribunal de Contas pode e deve atuar. Aquilo que configura ilegalidade é assunto para o MP.

Além da reforma política, o senhor sugere outras medidas para que o Legislativo ganhe a confiança da população?

Sim, uma alternativa seria extinguir as medidas provisórias, que temos em quantidade absurda. Elas não deveriam existir num sistema democrático em que o Legislativo é eleito, é representante do povo. Medidas provisórias só cabem quando não há funcionamento do Legislativo. Talvez ele nunca tenha funcionado em sua plenitude, mas nos últimos tempos, com o envolvimento maior do Estado na vida social, a necessidade de um bom Legislativo cresceu, para que ele não seja ditatorial ou arbitrário. Só que estamos num círculo vicioso: não melhoramos porque não melhoramos. Se tivéssemos melhores legisladores, melhoraríamos o sistema, que melhoraria a vida da população, que votaria em melhores legisladores. Em todo caso, esse trabalho não será feito rapidamente. A população não percebe que seu desencanto com a política piora a situação. Só perceberá com um trabalho de educação, e é aí que as organizações sociais e as escolas entram de forma fundamental.

[grifos do blog]

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Entrevista - Elmar Altvater

''O crescimento não nos torna mais ricos, mas sim mais pobres''


O economista e cientista político alemão Elmar Altvater teme que na crise sejam escolhidas pelos governos, mas também por movimentos sociais, estratégias de salvação do capitalismo. Elmar Altvater é professor de Ciência Política na Universidade Livre de Berlim. É autor de diversos livros e artigos nos quais estuda a evolução do capitalismo, a teoria do Estado, a política de desenvolvimento, a crise do endividamento e as relações entre economia e ecologia. Entre suas obras publicadas em português, citamos O preço da riqueza. Pilhagem ambiental e a nova (des)ordem mundial (São Paulo: Unesp, 1995).
Fonte: UNISINOS


IHU On-Line - Nesse momento de crise global da economia capitalista, quais são as possibilidades e os limites de se pensar uma economia que leve em conta a sustentabilidade da terra?

Elmar Altvater - Na mais grave crise econômica da forma de produção capitalista desde sua origem, coloca-se de maneira dramática a alternativa entre a salvação do capitalismo e a passagem a uma forma de economia ecológica, ou seja, sustentável. É de se temer que na crise sejam escolhidas pelos governos, mas também por movimentos sociais, estratégias de salvação do capitalismo. Na Alemanha, com uma absurda subvenção ao sucateamento de automóveis (“Prêmio pelo desmantelamento” [Abwrackprämie]), a manutenção da sociedade automobilística é prorrogada em direção ao futuro, quando, já devido ao “Peakoil” (pico do petróleo) e ao ameaçador colapso climático, ela não tem mais futuro e deve ser abandonada. Em outras nações podem ser encontrados exemplos semelhantes, que explicitam uma só coisa: precisamente na situação de crise é difícil forjar coalizões políticas para uma alternativa duradoura.

IHU On-Line - Pensando em uma economia mais ecológica, quais seriam seus princípios e qual seria sua função na sociedade?

Elmar Altvater - A longo prazo, a economia deve ser ecológica, ou seja, deve levar em conta as condições naturais de todas as transformações de matéria e energia. Caso contrário, a economia capitalista destruirá suas próprias bases. Isto já está acontecendo, porque o rasto ecológico é muito maior do que deveria ser, em vista dos limitados recursos e da capacidade produtiva do Planeta Terra. O princípio ecológico da sustentabilidade deve orientar-se segundo o fluxo de energia e a capacidade de absorção das esferas terrestres para materiais nocivos. Expresso fisicamente, o aumento de entropia deve ser mantido em zero.

IHU On-Line - É possível calcular o custo dos desgastes ambientais provocados pela economia clássica?

Elmar Altvater - Há muitos esforços para calcular os custos dos prejuízos ambientais. O resultado é geralmente assustador. Entrementes, se pode partir do fato de que os custos do acréscimo do produto social são 100 mais do que 100. Em outras palavras: o crescimento não nos torna mais ricos, mas sim mais pobres. Esta é possivelmente a razão para o aumento da pobreza no mundo, embora, nos objetivos de desenvolvimento do milênio, esteja planejada uma redução da pobreza em 50%. Em todo o caso, cálculos monetários dos prejuízos ambientais são mais do que problemáticos. Porque se pressupõe que a natureza possa ser expressa em valores monetários. Isso, por sua vez, exige propriamente um mercado no qual são constituídos preços, e no mercado só podem ser negociadas mercadorias, nas quais existem direitos de propriedade. Uma condição para o cálculo monetário é, por conseguinte: a natureza deve ser transformada em valor, para poder ser calculada monetariamente. Porém, qual é o valor de um peixe-boi, qual é a perda em valores monetários quando uma espécie é extinta? Quem calcularia os custos da perda do Dodô, uma ave de locomoção terrestre que, por ter sido tão lenta, foi abatida no século 18 até seu último exemplar? A avaliação monetária de danos ecológicos não tem nenhum sentido; no melhor dos casos, ela teria um valor pedagógico, de alarme.

IHU On-Line - Que relações podemos estabelecer entre o modo de vida urbano e o consumo desenfreado e não sustentável?

Elmar Altvater - Cidades já existem desde a revolução neolítica na história da humanidade. Elas são os lugares da comunicação, da formação, da ciência, mas também da dominação concentrada e da exploração da terra. Na modernidade, as cidades são expressão do deslocamento da vida econômica da sociedade e da natureza. Pressuposto para isto é a mobilidade moderna com o automóvel, cujo combustível é extraído de portadores fósseis de energia. As cidades modernas são construídas para os automóveis, com autoestradas urbanas e parques de estacionamento, shoppings, os artefatos da superação de distâncias entre locais de moradia, trabalho, recreação, tempo livre etc. Isto só pode ser modificado se for estabelecido outro conceito não-fóssil de mobilidade.

IHU On-Line - Como o senhor relaciona a questão da criação de necessidades, o consumo, o desperdício e o caos climático, considerando a contrariedade e o paradoxo disso com o momento de crise em que vivemos?

Elmar Altvater - Por causa da crise econômica, muitas pessoas são ou serão compelidas à condição de pobreza e já nem tem mais muitas possibilidades para um consumo intensivo de recursos. Por outro lado, o consumo de baixo custo do supermercado é muito intensivo de recursos, pelo menos nas nações industrializadas. Por isso, a pobreza não irá reduzir duradouramente o consumo de recursos. Isto aponta para o fato de que a sustentabilidade ecológica só é possível numa sociedade democrática e de distribuição equitativa de recursos. Mas esta também é minada pela crise financeira e econômica. As medidas econômicas para o estado de necessidade foram todas tomadas, nas nações industrializadas, ao largo dos legítimos órgãos de uma sociedade democrática.

IHU On-Line - Pensando numa sociedade ideal, quais poderiam ser apontadas como “justas” e “reais” necessidades humanas, que favorecessem a qualidade de vida e as condições ambientais? Uma mudança na economia seria aqui necessária?

Elmar Altvater - A pergunta sobre a “vida boa” já foi levantada por Aristóteles. Sua resposta foi: uma vida sem aspirar por aquisição de capital, portanto, sem lucro e juros. Esta resposta também hoje ainda é correta e ela aponta, de maneira diversa do que na época de Aristóteles, por que então, na velha Grécia do 4º século antes de Cristo, ainda não existia nenhum capitalismo, para a necessidade de uma superação do capitalismo e para uma revolução social e ecológica. Uma revolução política pode – como já muitas vezes na história (também são exemplos a revolução francesa e a russa) – ocorrer muito rapidamente como assunção do poder, mas uma revolução social e ecológica necessita muito tempo. Porque o sistema energético e uma forma de produção não podem ser modificados de hoje para amanhã, porém somente em décadas. Não obstante isso, trata-se de uma revolução e ela deve iniciar agora, se quisermos evitar o colapso climático.

IHU On-Line - O senhor acredita que a sociedade está hoje mais consciente em relação ao caos climático, a ponto de mudar seus hábitos e provocar mudanças nas grandes corporações? Não é o capital que ainda tem mais poder?

Elmar Altvater - A consciência da necessidade de frear a mudança climática está amplamente difundida. Mas os interesses econômicos no modo capitalista da agricultura e da indústria são muito fortes. Os consórcios transnacionais subscreveram em parte o compacto global do secretário geral da ONU, se obrigam voluntariamente à “corporate social responsiblity”, porém buscam apenas o princípio do lucro. Eles só podem realizá-lo se a economia cresce e para isso eles necessitam de apoio político. É tarefa dos movimentos sociais defenderem-se contra a dominação dos consórcios multinacionais, formularem seus próprios projetos, intervirem em favor de energias renováveis e formas solidárias de promoção da economia. A crise atual do capitalismo também é, por isso, uma possibilidade de dar passos em frente nessa direção.

Para ler mais:


quinta-feira, 18 de junho de 2009

Charge


O senador Sarney concedeu - a expensas do Erário, é claro - empregos e benesses para parentes, aderentes e amigos, auferiu por meses a fio vantagens indevidas, além de se revelar emérito emissor e/0u beneficiário de decretos secretos.

Na berlinda, e com a notória imagem enlameada no brejal dos guajás, subiu hoje à tribuna para sustentar, qual estadista, que 'a crise é do senado, não é minha', aduzindo ser incapaz de manchar sua reputação com a perniciosa prática de 'atos menores'.

O patetismo é lapidar.

A volúpia do poder não tem limites; a desfaçatez, por seu turno, de quando em quando - como no caso presente - a supera.

Dodó Macedo

terça-feira, 16 de junho de 2009

Marina Silva

Síndrome de Poliana


Artigo de Marina Silva, senadora - PT-AC e ex-ministra do Meio Ambiente, publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-06-2009.
Fonte: UNISINOS





Acumulam-se as evidências de que a ação humana está mudando o clima da Terra em velocidade maior do que se pensava, acelerando a transformação de todos os ecossistemas.

Foi o que me disse há alguns dias Carlos Nobre, respeitado especialista em climatologia, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e membro do IPCC, o Painel de Mudanças Climáticas da ONU. Ele falava do encontro de cientistas de todo o mundo em Copenhague, na Dinamarca, numa reunião preparatória para a Conferência do Clima (COP-15), que acontecerá lá mesmo, em dezembro deste ano.

Segundo Nobre, as previsões estão sendo, infelizmente, revistas para pior. O mundo terá que tomar medidas enérgicas para conter o aquecimento global, cuja face mais visível é o derretimento crescente da cobertura de gelo do Ártico, no Polo Norte. A tendência é que ela se derreta completamente. "Isso é muito sério, e terá reflexos no clima de todo o planeta e em toda a biologia marinha", disse ele. "Antes, a previsão era de que isso poderia acontecer no ano 2100. Agora já se pensa em algo como 2030 a 2050".

Que no fim do século XXI a Terra será mais quente não há mais dúvidas. A questão, alerta Nobre, é de quanto será essa alteração. Há uma previsão de aumento médio da temperatura entre 1,8C e 4,5C.

Acima de 2C já poderá ser catastrófico, mas muitos, numa atitude que poderíamos chamar de síndrome de Poliana, preferem pensar que o aumento será de apenas 1,8C e tudo terminará bem. No entanto, ninguém pode garantir que não chegará a 4,5C. A hora é de precaução, o que significa reduzir drasticamente as emissões de carbono.

No encontro de Copenhague, chegou-se a falar em corte, até 2050, de 100% nas emissões dos países ricos. Na média global, essa "descarbonização", como chamam os cientistas, terá que chegar a 80% em meados do século. Para isso, países em desenvolvimento terão que reduzir as suas emissões entre 70% e 75%.

Percentuais à parte, o Brasil não pode se eximir de fazer o seu papel.

Nesse quesito, Poliana precisa ser avisada de que nem tudo vai bem.

Hoje o país faz a sua lição de casa incompleta e sem a necessária persistência. Volta atrás em caminhos penosamente percorridos e abre o flanco a riscos enormes de aumentar desmatamentos - nossa maior fonte de emissão de gases do efeito estufa-, e o Estado não induz a uma cultura de sustentabilidade.

Acorde, Poliana! A situação é grave, e hoje em dia não basta o pensamento positivo. Ele ajuda muito, mas apenas quando somado à coerência e à ação.

[grifos do blog]

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Ricardo Musse

Teoria e história do marxismo

O artigo de Ricardo Musse, professor do Departamento de Sociologia da USP.
Fonte: Agência Carta Maior








Marxismo e filosofia

Karl Korsch
Tradução: José Paulo Netto
Editora UFRJ
170 p. , R$ 30,00

"Marxismo e filosofia" foi publicado em 1923. Antes de adquirir a forma de livro, saiu no periódico editado por Carl Grünberg, o “Arquivo de história do socialismo e do movimento dos trabalhadores”, que se tornou no ano seguinte o órgão oficial do recém instalado Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt.

Nesse mesmo ano, Georg Lukács publicou História e consciência de classe. A afinidade de temas e propósitos entre os dois autores – patente na condenação em bloco de ambos no V Congresso da Terceira Internacional – permitiu que, décadas depois, esses livros fossem considerados os marcos de fundação do marxismo ocidental (ao lado de Cadernos do cárcere, de Antonio Gramsci, cuja redação é posterior).

Como o título indica, Karl Korsch debruça-se sobre a questão, até então praticamente ignorada, da relação entre marxismo e filosofia. Seu pioneirismo na escolha e desenvolvimento do tema permite que se vislumbre a dimensão do impacto, direto e indireto, do livro. Afinal, a partir de então, a discussão teórica do marxismo – e não só entre marxistas ocidentais – tornou-se inseparável da reflexão filosófica, mesmo no âmbito de disciplinas como a economia ou a história.

Korsch aborda os dois lados da questão, o lugar do marxismo na história da filosofia e o papel da filosofia na gênese e estrutura da obra de Marx e Engels. Seu ponto de partida consiste na observação de que o marxismo era ignorado ou pouco mencionado nos livros de história da filosofia. Havia uma lacuna no período entre a morte de Hegel (1831) e as correntes filosóficas posteriores a 1850. Os jovens hegelianos, e Marx entre eles, eram no máximo designados como exemplos da desintegração do sistema de Hegel.

Korsch atribui isso a uma insuficiência metodológica e ideológica. A historiografia das idéias não percebe o vínculo entre pensamento e práxis social. Trata-se de um retrocesso, concomitante ao recuo da burguesia diante da transformação social, frente às teorias do Idealismo Alemão que procuravam ressaltar a ligação entre filosofia e revolução. Desse raciocínio ele extrai uma conclusão que marcará época: “o sistema marxista, expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, deve manter com os sistemas da filosofia idealista alemã, no plano ideológico, as mesmas relações que o movimento revolucionário do proletariado mantém, no plano da práxis social e política, com o movimento revolucionário burguês”.

Por meio dessa comparação, Korsch ensaia uma explicação para a relação entre a doutrina de Marx e o Idealismo Alemão. Este movimento filosófico foi apresentado por Kautsky e Lênin – nas pegadas do último Engels – como uma das três fontes do marxismo. Mas nenhum deles chegou a desenvolver uma teoria sistemática da posição de Marx perante Hegel, cumprindo a exigência de revitalizar a dialética como método e de assinalar a diferença entre a sua versão idealista e a materialista.

A complexidade do problema – pauta ainda hoje de polêmicas e teses nos meios universitários – impõe uma questão adicional: a determinação da posição de Marx ante seus companheiros de geração, os jovens hegelianos, o que pode significar, dependendo do caminho escolhido, um atalho ou uma estrada sem fim. É notável a acuidade de Korsch ao tratar desses tópicos, principalmente quando se considera que em 1923 ainda permaneciam inéditos os Manuscritos de 1844 e os cadernos de A ideologia alemã, nos quais Marx, conforme suas próprias palavras, promoveu “um acerto de contas com sua antiga consciência filosófica”.

Sem acesso a esses textos, Korsch escapa do risco de naufragar em detalhes e nuances, e vai direto ao ponto. O esclarecimento da relação de Marx com os filósofos alemães é imprescindível, mas ao mesmo tempo incompreensível sem que se estabeleça antes o lugar da filosofia na doutrina marxista.

Essa determinação não pode ser conduzida separadamente da elucidação do estatuto teórico do marxismo, ou seja, da compreensão do que Marx entende por ciência. A definição de Engels sintetizada no slogan “socialismo científico” apenas inverteu mecanicamente os pesos da hierarquia hegeliana entre ciência e filosofia. Korsch destaca que enquanto Hegel procura elevar as ciências particulares ao patamar de reflexão filosófica, Engels reduz a filosofia a uma ciência particular, encarregada do estudo da lógica formal e da dialética.

Korsch, no entanto, não considera que a definição da dimensão teórica do marxismo seja passível de discussão. Ela constitui um dos marcos de identidade do marxismo, um dos pilares da estrutura que permite concebê-lo como uma unidade que se desenvolve ao longo do tempo. Mas como é possível localizar aí uma essência se historicamente o marxismo apresentou-se em figurinos teóricos e práticos diversos e até mesmo contraditórios?

A solução proposta por Korsch é simples, mas engenhosa. Primeiro, ele escolhe e adota como padrão um momento determinado, o Manifesto do partido comunista (1848), no qual Marx apresenta sua doutrina como “expressão teórica de uma prática revolucionária”. Em seguida, reconstitui a trajetória do marxismo como um relato das variações a que foi submetida essa fórmula.

A novidade do livro assenta-se, portanto, no ato de associar o desvio político da diretriz revolucionária às alterações na delimitação do estatuto “científico” do marxismo. Desdobra assim um tópico rotineiro do arsenal retórico das correntes contrárias ao reformismo da social-democracia, substituindo, no entanto, a usual condenação moral e voluntarista por uma explicação teórica e histórica.

No Manifesto, a esfera teórica, concebida como “teoria da revolução social”, organiza-se como uma “totalidade viva”, impossível de ser compartimentada em disciplinas específicas como a história, a economia, a política, os estudos de cultura etc. Na obra de maturidade de Marx, os elementos desse todo adquirem certa autonomia, sejam as diversas ciências uma em relação às outras, seja a teoria perante a práxis social.

Nos epígonos, no entanto, ocorreu a fragmentação da “teoria unitária da revolução” em “uma soma de conhecimentos puramente científicos sem nenhuma relação imediata – política ou outra – com a práxis da luta de classes”. Um desdobramento simultâneo à prevalência do reformismo, expressão das reivindicações econômicas dos sindicatos e da linha política da Segunda Internacional. Essa situação, supõe Korsch, seria remediada por um movimento de retorno à obra de Marx, capitaneado por Lênin e Rosa Luxemburg, ao qual Marxismo e filosofia propõe apenas aduzir alguns novos elementos.

A dimensão teórica da “teoria da revolução” manifesta-se, portanto, como uma determinação que concebe o “marxismo como totalidade”. Com isso, Korsch apresenta uma explicação convincente para o lugar da filosofia na doutrina marxista. Ela não só constitui um dos elementos mobilizados no conhecimento da totalidade, mas a própria conjugação das diversas ciências específicas exige a superação da divisão intelectual do trabalho, algo próximo da modalidade de filosofia que se praticava nos anos 1920, antes desse saber seguir o augúrio de Engels e se reduzir a ciência especializada.

A partir de uma nova interpretação da “XI tese sobre Feurbach” e do lema jovem-hegeliano “não podeis superar a filosofia sem realizá-la”, Korsch reabilita a crítica filosófica – para além de seu papel na gênese da doutrina de Marx – como momento decisivo da luta de classes. Considera imprescindível ampliar o combate econômico e político pela via da incorporação da dimensão cultural. Trata-se de um dos muitos pontos em comum entre Korsch, Lukács e Gramsci.

O marxismo ocidental surgiu em meio a um vigoroso movimento de transformação social, reapresentando a doutrina de Marx como uma “teoria da revolução”. Paradoxalmente, a explicitação da dimensão teórica dessa concepção, em particular a revalorização da crítica da ideologia, transmutada a partir de História e consciência de classe em crítica da reificação, possibilitou involuntariamente que seus procedimentos se mostrassem os mais adequados por ocasião da estabilização do capitalismo e da integração do proletariado.






A origem do comportamento social humano moderno

O comportamento social do homem moderno tem a ver com questão demográfica e as guerras dizem pesquisadores. A reportagem é de Alicia Rivera e publicada no jornal El País, 10-06-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS








Os grupos humanos com comportamento cultural moderno surgem na pré-história em lugares e momentos diferentes. Por quê? Esse salto é determinado pelo aumento das capacidades cognitivas da espécie humana? Não necessariamente, segundo pesquisadores da University College de Londres. Para eles, a chave, ou pelo menos uma chave importante, está na estrutura demográfica das populações. Podem ter sido a sua densidade, as migrações e as interações entre os subgrupos sociais o que provocou o surgimento da complexidade simbólica e tecnológica no comportamento humano – primeiro na África e depois na Europa –, e não necessariamente as mudanças biológicas na capacidade cognitiva, dizem.

Outro estudioso, este dos EUA, também aborda a questão demográfica na origem do comportamento social humano moderno, porém o faz a partir das perspectiva dos custos e benefícios da guerra na evolução de um traço social importante como o altruísmo. Os dois trabalhos foram publicados na revista Science. Em ambos os casos, como não poderia deixar de ser na ciência contemporânea, Darwin é bastante citado e a comparação com os dados genéticos torna-se essencial pelo menos para validar as conclusões demográficas.

A origem do comportamento humano complexo, registrado primeiro na Europa e na Ásia ocidental (cerca de 45 mil anos) e depois no sudeste e leste asiático, Austrália e África, se caracteriza por um manifesto salto cultural e tecnológico, lembram Adam Powell (University College, Londres) e seus colegas. Inclusive surge um comportamento simbólico que se manifesta na arte abstrata e realista, assim como na decoração dos próprios corpos. Ferramentas de pedra, tecnologias avançadas de caçadores (lanças, bumerangues, redes), artefatos rituais de osso e marfim e musicais (flautas de osso) são restos arqueológicos que testemunham o fato.

O que Powell e seus colegas pesquisam é a dispersão espacial e temporal da origem da modernidade. Além disso, deve-se levar em conta que os humanos anatomicamente modernos surgem na África entre 160 mil e 200 mil anos atrás. Então, se o motor do comportamento moderno fosse uma mudança biológica hereditária, não deveriam ter surgido sociedades complexas frequentemente e logo depois de sua diáspora do continente ancestral? Além disso, os cientistas britânicos indicam que, para muitos de seus colegas, os neandertais, embora biologicamente diferentes dos novos humanos, também tinham comportamento e capacidades cognitivas notáveis.

Powell e seus colegas consideram o problema com modelos que levam em conta os grupos populacionais, a estrutura dos subgrupos e suas relações, a migração e, é claro, os recursos que oferecem o entorno e as estratégias sociais para explorá-los.

"Nossos resultados demonstram que a influência da demografia nos processos de transmissão cultural ajuda a explicar três características chaves da emergência do comportamento moderno observável no registro arqueológico: o aparecimento precoce e o posterior desaparecimento de traços modernos no sul da África; a heterogeneidade geográfica e temporal do surgimento do comportamento moderno e o atraso entre a anatomia moderna e os traços de comportamento modernos", concluem os pesquisadores.

Os estudos de DNA permitem fazer estimativas sobre densidades de população pré-históricas cujos resultados são compatíveis, em geral, com os dessas simulações demográficas. É preciso levar em conta, diz Ruth Mace, também na Science, que "tanto os traços genéticos quanto culturais são hereditários e estão sujeitos a processos evolutivos, embora os segundos não sejam transmitidos de modo mendeliano e possam ser herdados inclusive entre pessoas que não compartilham genes". Isso pode produzir resultados evolutivos inexistentes em outros animais.

Mais radical que o de Powell é o segundo estudo, também de corte demográfico. Samuel Bowles (Instituto Santa Fe dos EUA) introduz informação etnográfica e arqueológica a seus modelos para concluir que a estrutura demográfica nos grupos de caçadores e coletores pré-históricos favoreceu a transmissão de traços genéticos de influência social nos humanos.

O ponto forte do trabalho é o altruísmo, embora o que estude seja a guerra, entendida como conflitos violentos e inter-grupais. As práticas bélicas, sugere Bowles, puderam favorecer a sobrevivência de grupos humanos que continham mais indivíduos altruístas dispostos a pôr em risco sua própria vida se isso trouxesse benefícios para seu grupo.

"O nível estimado de mortalidade em conflitos inter-grupais deve ter tido um efeito substancial, favorecendo a proliferação de comportamentos favoráveis ao grupo mesmo que fossem muito custosos em nível pessoal para o indivíduo altruísta", afirma, com um enfoque darwinista. Ou seja, na guerra venceu evolutivamente o altruísmo.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Professor relata ação violenta da tropa de choque na USP

O professor Pablo Ortellado, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, da Universidade de São Paulo, relata com indignação a ação da tropa de choque da Polícia Militar no campus da USP.
Fonte: Agência Carta Maior


O ato foi organizado por alunos, professores e funcionários da universidade que pedem, além da pauta oficial de reivindicações, a saída imediata da Polícia Militar do campus e a aparição da reitora, Suely Vilela, para negociar. Durante toda a tarde desta quarta-feira, os manifestantes distribuíram flores e bloquearam o portão principal da instituição com gritos de "Suely, a culpa é sua, hoje a aula é na rua". No início da tarde, cerca de 50 policiais montaram uma linha de bloqueio do lado de fora do campus para fiscalizar a manifestação. Indignados, alguns estudantes jogaram rosas quando a PM se aproximou. Os confrontos tiveram início por volta das 17h20.
Fonte: Notícias Terra





Prezados colegas,

Eu nunca utilizei essa lista para outro propósito que não informes sobre o que acontece no CO (transmitindo as pautas antes da reunião e depois enviando relatos). Essa lista esteve desativada desde a última reunião do CO porque o servidor na qual ela estava instalada teve problemas e, com a greve, não podia ser reparado. Dada a urgência dos atuais acontecimentos, consegui resgatar os emails e criar uma lista emergencial em outro servidor. O que os senhores lerão abaixo é um relato em primeira pessoa de um docente que vivenciou os atos de violência que aconteram poucas horas atrás na cidade universitária (e que seguem, no momento em que lhes escrevo – acabo de escutar a explosão de uma bomba). Peço perdão pelo uso desta lista para esse propósito, mas tenho certeza que os senhores perceberão a gravidade do caso.

Hoje, as associações de funcionários, estudantes e professores tinham deliberado por uma manifestação em frente à reitoria. A manifestação, que eu presenciei, foi completamente pacífica. Depois, as organizações de funcionários e estudantes saíram em passeata para o portão 1 para repudiar a presença da polícia do campus. Embora a Adusp não tivesse aderido a essa manifestação, eu, individualmente, a acompanhei para presenciar os fatos que, a essa altura, já se anunciavam. Os estudantes e funcionários chegaram ao portão 1 e ficaram cara a cara com os policiais militares, na altura da avenida Alvarenga. Houve as palavras de ordem usuais dos sindicatos contra a presença da polícia e xingamentos mais ou menos espontâneos por parte dos manifestantes. Estimo cerca de 1200 pessoas nesta manifestação.

Nesta altura, saí da manifestação, porque se iniciava assembléia dos docentes da USP que seria realizada no prédio da História/ Geografia. No decorrer da assembléia, chegaram relatos que a tropa de choque havia agredido os estudantes e funcionários e que se iniciava um tumulto de grandes proporções. A assembléia foi suspensa e saímos para o estacionamento e descemos as escadas que dão para a avenida Luciano Gualberto para ver o que estava acontecendo. Quando chegamos na altura do gramado, havia uma multidão de centenas de pessoas, a maioria estudantes correndo e a tropa de choque avançando e lançando bombas de concusão (falsamente chamadas de “efeito moral” porque soltam estilhaços e machucam bastante) e de gás lacrimogêneo. A multidão subiu correndo até o prédio da História/ Geografia, onde a assembléia havia sido interrompida e começou a chover bombas no estacionamento e entrada do prédio (mais ou menos em frente à lanchonete e entrada das rampas).

Sentimos um cheiro forte de gás lacrimogêneo e dezenas de nossos colegas começaram a passar mal devido aos efeitos do gás – lembro da professora Graziela, do professor Thomás, do professor Alessandro Soares, do professor Cogiolla, do professor Jorge Machado e da professora Lizete todos com os olhos inchados e vermelhos e tontos pelo efeito do gás. A multidão de cerca de 400 ou 500 pessoas ficou acuada neste edifício cercada pela polícia e 4 helicópteros. O clima era de pânico. Durante cerca de uma hora, pelo menos, se ouviu a explosão de bombas e o cheiro de gás invadia o prédio. Depois de uma tensão que parecia infinita, recebemos notícia que um pequeno grupo havia conseguido conversar com o chefe da tropa e persuadido de recuar. Neste momento, também, os estudantes no meio de um grande tumulto haviam conseguido fazer uma pequena assembléia de umas 200 pessoas (todas as outras dispersas e em pânico) e deliberado descer até o gramado (para fazer uma assembléia mais organizada). Neste momento, recebi notícia que meu colega Thomás Haddad havia descido até a reitoria para pedir bom senso ao chefe da tropa e foi recebido com gás de pimenta e passava muito mal. Ele estava na sede da Adusp se recuperando.

Durante a espera infinita no pátio da História, os relatos de agressões se multiplicavam. Escutei que a diretoria do Sintusp foi presa de maneira completamente arbitrária e vi vários estudantes que tinham sido espancados ou se machucado com as bombas de concusão (inclusive meu colega, professor Jorge Machado).

Escutei relato de pelo menos três professores que tentaram mediar o conflito e foram agredidos. Na sede da Adusp, soube, por meio do relato de uma professora da TO que chegou cedo ao hospital que pelo menos dois estudantes e um funcionário haviam sido feridos. Dois colegas subiram lá agora há pouco (por volta das 7 e meia) e tiveram a entrada barrada – os seguranças não deixavam ninguém entrar e nenhum funcionário podia dar qualquer informação. Uma outra delegação de professores foi ao 93o DP para ver quantas pessoas haviam sido presas. A informação incompleta que recebo até agora é que dois funcionários do Sintusp foram presos – mas escutei relatos de primeira pessoa de que haveria mais presos.

A situação, agora, é de aparente tranquilidade. Há uma assembléia de professores que se reuniu novamente na História e estou indo para lá. A situação é gravíssima. Hoje me envergonho da nossa universidade ser dirigida por uma reitora que, alertada dos riscos (eu mesmo a alertei em reunião na última sexta-feira), autorizou que essa barbárie acontecesse num campus universitário.

Estou cercado de colegas que estão chocados com a omissão da reitora. Na minha opinião, se a comunidade acadêmica não se mobilizar diante desses fatos gravíssimos, que atentam contra o diálogo, o bom senso e a liberdade de pensamento e ação, não sei mais. Por favor, se acharem necessário, reenviem esse relato a quem julgarem que é conveniente.

Cordialmente,

Prof. Dr. Pablo Ortellado
Escola de Artes, Ciências e Humanidades
Universidade de São Paulo

sábado, 6 de junho de 2009

Maria da Conceição Tavares

Análise de Maria da Conceição Tavares, economista, professora Emérita da UFRJ, professora Associada da Unicamp publicada pela Carta Maior, 05-06-2009.
Fonte: UNISINOS





I – As raízes da atual crise

A financeirização da riqueza passou a ser, deste a década de 1980, um padrão sistêmico globalizado em que a valorização e a concorrência no capitalismo operam sobre a dominância da lógica financeira. Esta lógica originou-se nos EUA e transferiu-se para Londres, no Euromercado na década de 70. Regressou à Nova York na década de 80 com a diplomacia do dólar forte e tornou-se a lógica da globalização financeira.

Ao alcançar Tóquio, no final da década de 80, acabou pondo em risco o capitalismo organizado japonês e o seu “produtivismo triunfante”, levando o Japão à maior crise do pós-guerra, na década de 90. Finalmente a lógica da financeirização está sendo posta em tela de juízo na atual crise mundial.

A aliança entre o grande capital financeiro globalizado e as políticas frouxas do FED durante à década de 90 levaram a economia americana a uma expansão do consumo e do investimento, com alto grau de endividamento do Estado, das famílias, das empresas e dos bancos, que se manteve muito além das expectativas da maioria dos seus próprios economistas, até às vésperas da crise atual (1).

As preocupações centrais de alguns macro-economistas eram com o déficit, o crescente do balanço de transações correntes e com o endividamento externo gigantesco do Estado americano, os quais, segundo eles, terminariam minando o dólar como moeda reserva, forçando a economia americana a um ajuste (monetário, fiscal e de balanço de pagamentos) muito mais grave que o praticado no início da década de 80.

O novo presidente do FED do governo Clinton, Alan Greenspan, um dos defensores e promotores do novo sistema, tinha muito claro o papel financeiro do dólar na economia mundial globalizada (2). O déficit de transações correntes não o preocupava, já que a absorção externa de recursos por parte da economia americana era funcional à sustentação do crescimento através do comércio internacional das economias mais abertas como algumas da América Latina e, sobretudo, dos países do Leste Asiático. Estes fortemente superavitários com o dólar, tinham de aceitá-lo como moeda reserva.

Greenspan pode ser acusado, porém, de ter feito vista grossa aos efeitos que a desregulamentação bancária radical e a política monetária e de supervisão frouxas, provocaram no funcionamento altamente especulativo das instituições financeiras dentro do próprio mercado americano (3).

A partir da segunda metade da década de 90 sucederam-se uma série de crises cambiais e financeiras em vários países periféricos, que deram lugar a uma fuga de capital para os EUA, onde a valorização dos ativos financeiros confirmava a supremacia indiscutível do mercado de capitais de Nova York. A explosão acionária de Wall Street levou a um ciclo de fusões e aquisições em que os grandes bancos americanos tornaram-se mega-instituições à escala mundial, superando de longe todos os seus antigos concorrentes europeus e japoneses. Não havendo mais segmentação formal das instituições do mercado financeiro, os bancos americanos converteram-se em verdadeiros supermercados financeiros que operavam nos mercados futuros e em novos derivativos de crédito com a criação de instrumentos de securitização que permitiam a alavancagem desvairada do crédito no mercado financeiro interno. Foi assim, com créditos alavancados de curto prazo, que várias companhias americanas financiaram o investimento de longo prazo em áreas estratégicas como em energia e na nova economia da tecnologia de informação e de comunicações.

As primeiras ações a estourar em bolsa foram as das empresas da “nova economia”, a chamada crise das “.com”, seguida poucos anos depois pela crise do setor elétrico na qual o estrondo maior foi a falência da Enron. Como as ações dos bancos e das grandes empresas tradicionais se recuperavam rapidamente, estimulando o consumo através do “efeito riqueza”, Greenspan limitou-se a criticar a “euforia especulativa” e a reafirmar que o FED não podia controlar as operações financeiras “off the records” e “off shore”. Na verdade a maioria dos grandes movimentos especulativos de então não eram “off shore”, mas nos mercados financeiros internos desregulados, sobretudo em derivativos e “hedge funds”, a maioria dos quais operava “off the records”.

A multiplicação de derivativos especiais de crédito e a criação de fundos de securitização (hedge funds), sem base de sustentação e sem supervisão bancária deram lugar a um vasto “sistema financeiro sombra”. As instituições deste “sistema” operam nos mercados monetários como se bancos fossem (tomando a curto e emprestando a longo prazo) só que a um nível de alavancagem muito superior, sem possuírem seguro para os seus depositantes (investidores) nem, obviamente, qualquer emprestador de última instância que lhes garantisse liquidez em momentos de crise. Foi este sistema que entrou em colapso a partir da crise do “sub-prime”.

Apesar da crise do sub-prime, um derivativo especial do mercado de hipotecas, ter ocorrido já na gestão de Ben Bernanke, ela foi apenas o detonador de uma crise financeira mais geral que se vinha gestando lentamente, através de uma excessiva expansão da liquidez, do endividamento e de sucessivas bolhas de preços de ativos, processados pela desregulação e complexidade do novo sistema financeiro privado, montado no governo Clinton e continuado no governo Bush.

A elevada oferta de financiamento, a taxas de juros baixas, não impulsionaram apenas o endividamento geral do setor privado (empresas, bancos e famílias). As condições favoráveis e descontroladas de oferta de crédito levaram também vários Estados da União a financiarem seus déficits fiscais crescentes no mercado privado interno. Só quando a crise financeira geral eclodiu violentamente em setembro de 2008 com a quebra da Lehman Brothers, foi possível perceber a profundidade da crise fiscal de importantes estados americanos que estão a beira da insolvência (a Califórnia é apenas o caso mais notório).

II – As medidas do Governo Bush e a generalização da Crise Financeira.

A crise financeira começou a ficar visível, com o estouro do mercado de derivativos especiais de crédito hipotecário, os chamados sub-prime, em agosto de 2007, quando os fundos que consolidavam posições de alto risco em novos títulos no mercado secundário passaram a ser rejeitados no mercado monetário e atingiram violentamente as instituições do mercado hipotecário, em particular a Fannie Mae e Freddie Mac.

O FED tomou providências rápidas no que se refere à taxa básica de juros (que caiu de 5% para 0,5% em poucos meses) e criou programas gigantescos de liquidez para tentar evitar a generalização da crise. Entre eles podem-se destacar: U$ 600 bilhões para a compra de títulos visando apoiar os investidores dos “fundos do mercado monetário”; U$500 bilhões para a compra de títulos lastreados em hipotecas; U$100 bilhões em dívidas da Fannie Mae e da Fred Mac.

O Congresso aprovou, por iniciativa democrata, a Lei de Estimulo Econômico de fevereiro de 2008 cujas principais medidas foram de renúncia fiscal. De abril, quando começou a devolução de impostos, até dezembro de 2008, foram devolvidos milhões de cheques no valor total de U$96 bilhões. Foi também proposta renúncia fiscal para estimular os investimentos e a ampliação no valor das hipotecas com cobertura financeira semi-oficial. Logo em seguida, em julho de 2008, foi promulgada a Lei de Habitação e da Recuperação da Economia que prometida recapitalizar as instituições para-estatais (sobretudo as duas grandes Fannie Mae e Freddie Mac) que atendiam os financiamentos de habitação para as famílias de baixa e média renda. A Lei criou um órgão para regulá-las (FHFA) e autorizou o Tesouro a comprar seus ativos e assumir seus passivos.

Depois de setembro de 2008, quando ocorreu a quebra do Lehman Brothers, várias instituições financeiras internacionais ficaram à beira da falência e a crise financeira tornou-se global, produzindo um violento aperto de crédito (credit crunch) no mercado interbancário de todos os países relevantes, mesmo os que tinham um sistema bancário sólido. As quedas nas bolsas mundiais e nos preços dos imóveis liquidaram cerca de U$30 trilhões de riqueza financeira até o final do último trimestre de 2008.

Em outubro de 2008, o governo americano encaminhou ao Congresso, em regime de urgência, o TARP (Programa de Alívio de Passivos Problemáticos) cuja concepção original era justamente comprar os “ativos tóxicos” dos bancos para melhorar sua situação estrutural. Como a resistência foi enorme a essa medida - uma vez que o governo não tem instrumentos de intervenção legal nos bancos - o enfoque mudou substancialmente. Dos U$700 bilhões do TARP a metade ficou carimbada para injetar diretamente capital nos bancos através do programa de Compra de Capital (CPP), a outra metade não foi autorizada. Na verdade foi o FED que teve de encarregar-se de parte da tarefa de reciclar os “ativos tóxicos” através de programas de liquidez e de empréstimos de última instância aos bancos mais atingidos.

A decisão do governo de não socorrer o Lehman Brothers e a quebra da AIG, a maior seguradora dentro e fora do país, levou a economia americana à paralisia em Novembro. O governo americano teve de criar o subprograma para “entidades sistemicamente relevantes” para conceder um empréstimo de U$85 bilhões à AIG e injetar U$40 Bilhões de capital ainda em 2008 (em março de 2009 o Tesouro teve de intervir novamente injetando mais U$30 bilhões para impedir a falência da seguradora). Teve de auxiliar também o Citigroup e o Bank of America que entraram em dificuldades tremendas e socorrer as empresas automobilísticas.

A extensão e profundidade da crise financeira no núcleo central do sistema capitalista estendeu-se a toda a economia mundial a partir do último trimestre de 2008. Os grandes bancos europeus que também se tinham globalizado e alavancado de forma análoga aos americanos, sofreram de imediato os efeitos do aperto de crédito no mercado interbancário e seus governos tiveram de socorrê-los em algum casos mediante estatização explícita. Os mecanismos de retração do crédito e a recessão nos países centrais contaminaram o comércio internacional tanto em preços como em quantidades.

O comércio de matérias primas sofreu um baque profundo com a queda dos preços de commodities que vinham de um ciclo especulativo fortíssimo nos mercados futuros globais. Os preços do petróleo foram os que sofreram a queda mais violenta atingindo com força países como a Rússia e todos os países emergentes dependentes da exportação de petróleo e gás.

Verificou-se também uma queda no comércio de manufaturas que atingiu fortemente os países do Leste Asiático já com grande capacidade ociosa e mais dependentes do comércio para os EUA e para a Europa. A China teve uma forte desaceleração do crescimento, que rebateu através da queda das importações, nos tigres asiáticos e em particular no Japão. Este país, recém saído de uma depressão, teve a sua economia violentamente atingida pela crise global, entrando em recessão aberta numa velocidade superior à dos EUA e da Europa.

O crédito bancário internacional aos países periféricos, mais frágeis, colapsou, levando vários deles, sobretudo os do Leste Europeu e alguns da América Latina à uma crise de pagamentos e a pedir socorro ao FMI. O crédito dos bancos para o conjunto dos países emergentes segundo estimativas do Institute of International Finance caiu de U$ 410 bilhões em 2007 para U$ 106 bilhões em 2008 e deve ser fortemente negativo em 2009.

As filiais mais lucrativas dos bancos nos países emergentes remeteram lucros aceleradamente para suas matrizes para ajudá-las na crise. Isso ocorreu tanto na Ásia quanto na América Latina, região onde até agora não se registraram crises bancárias e é forte a presença de filiais européias e americanas lucrativas. Da participação dos capitais internacionais a que se manteve melhor, embora com queda acentuada, foi a participação do Investimento Direto Estrangeiro nas filiais produtivas dos países emergente, sobretudo aqueles cujo mercado interno apresentam melhores perspectivas, como a China, a Índia e o Brasil.

III – As medidas anunciadas pelo novo governo democrata dos EUA

O novo Presidente Barack Obama, assumiu o governo com a economia americana numa situação crítica. Do ponto de vista estrutural pode dizer-se que: o seu sistema financeiro está falido; os três entes federativos enfrentam uma crise fiscal sem precedentes; parte de sua infraestrutura encontra-se sucateada e a outra está obsoleta (sobretudo energia e telecomunicações); e, finalmente, o seu sistema de seguro de saúde não dá cobertura suficiente e adequada à população. Do ponto de vista “conjuntural” o desemprego é elevado e crescente e a recessão é aberta e tende a aprofundar-se.

Face a este diagnóstico, muito mais grave do que o imaginado durante a campanha, a equipe econômica propôs um combate à crise em todas as frentes: financeira, fiscal, investimento público em infraestrutura e políticas sociais ativas. A Lei de Recuperação e de Reinvestimento Americanos (ARRA) transitou no Congresso em tempo recorde, com o apoio de três senadores republicanos, e foi assinada pelo Presidente em 17 de fevereiro de 2009.

O pacote fiscal do governo Obama previu inicialmente gastos e renúncias fiscais da ordem de U$787 bilhões, muito superiores aos do pacote do governo Bush. Os principais componentes da Lei ARRA são os seguintes: U$288 bilhões em renúncia fiscal, U$144 bilhões de transferências para estados e municípios, U$111 bilhões para infraestrutura e ciência, U$81 bilhões para proteção aos segmentos sociais mais vulneráveis, U$59 bilhões para a Saúde, U$53 bilhões para a educação e treinamento de mão de obra e apenas U$43 bilhões para energia (que era uma das metas estratégicas da campanha).

O item mais importante é o da Renúncia Fiscal que, ao contrário do governo Bush, tem restrições para os declarantes de faixas de renda mais elevadas. Assim os U$237 bilhões de renúncia fiscal para pessoas físicas beneficiam as pessoas de classe média, com crédito tributário aos contribuintes em 2009 e 2010, aumento do limite de isenção de imposto de renda, aumento do desconto por número de crianças e despesas escolares. Tratamento favorecido e também concedido para quem comprar o primeiro automóvel, aos que se utilizaram do seguro desemprego e às famílias de baixa renda com três filhos ou mais. Várias deduções são concedidas para estimular a eficiência energética das residências e para a compra de automóvel, para faixas de renda abaixo de U$250 mil. Os restantes U$51 bilhões são dedicados a renúncias fiscais para empresas, que vão de incentivos à produção de energia renovável, ao desconto de perdas correntes para compensar os lucros tributados nos últimos cinco anos, passando por beneficiar empresas contratadas pelo governo até anular as medidas do tesouro envolvendo aquisição, fusão de empresas financeiras que estejam tendo prejuízo (para entrar em efeito em 2012 por um horizonte de 10 anos).

Dos Programas Sociais, o mais importante é o da Saúde U$147,7 bilhões com uma multiplicidade de medidas. As maiores são as que cobrem o Medicaid (o programa para a população de baixa renda) os seguros de saúde dos desempregados, pesquisa e aperfeiçoamento tecnológico e construção do Instituto Nacional de Saúde. Seguem-se os setores de Educação (incluindo transferências) com cerca de U$91 bilhões e o de proteção social aos trabalhadores de baixa renda com U$82,5 bilhões. A ênfase do governo Obama nos desprotegidos cumpre as promessas de campanha do candidato e reverte completamente a visão republicana.

Como terceira prioridade aparecem os gastos em Infraestrutura com cerca de U$81 bilhões para Transportes e U$49,7 bilhões para Energia. Apesar destas prioridades básicas que elevam o déficit fiscal da União de uma estimativa de aumento de cerca de U$1 trilhão em 2008 para cerca de U$1,7 trilhão em 2009, tendendo a aumentar em 2010, o governo americano continua tratando do núcleo central da crise – o setor financeiro – e anunciou um Plano de Estabilidade Financeira (FSP) que prevê a criação de três instrumentos novos, com recursos gigantesco e novas funções.

O FSP consiste basicamente na criação de:

1) um fundo fiduciário (Financial Stability Trent) através do qual o governo pretende reforçar o capital dos bancos; com recursos adicionais ao U$350 bilhões do programa aprovado em 2008. Com estes recursos o governo está conduzindo um “Teste de Stress” nos vinte maiores bancos para medir a capacidade de resistência aos vários cenários da crise e o Tesouro aumentará a sua participação nos que estiverem mais vulneráveis (o programa está em curso, mas os resultados ainda não eram conhecidos em abril de 2009).

2) A criação de um fundo de participação público-privado no qual o banco devolverá os seus ativos podres (tóxicos). O problema deste Fundo é de como avaliar o valor “contábil” destes ativos que não tem preço de mercado. O governo espera atrair investidores privados para este Fundo, deixando que eles façam um leilão entre si do valor dos títulos “tóxicos” adquiridos, e entrando o Tesouro com uma participação acionária minoritária. Com isso esperam que o fundo atinja um patrimônio de U$500 bilhões a U$ 1 trilhão. Como era de se esperar este “Fundão” deu lugar a críticas severas, tanto no Congresso como na opinião pública, por ser considerado um movimento de alto risco e pouca transparência.

3) Finalmente deverá ser criado uma linha (facility) para comprar divida securitizada nova, boa, que permita aos bancos e outras instituições financeiras recompor sua liquidez e estabilizar o crédito emprestando para novos clientes.

Como o Plano de Estabilização Financeira não contempla o setor mais atingido pela crise – o setor imobiliário – o governo desenhou um pacote para apoiá-lo. O Plano de Apoio aos Mutuários e de Estabilização (HASP) prevê três linhas de ação:

a) Flexibilizar as regras para permitir o financiamento de contratos imobiliários, aproveitando as baixas taxas de juros em vigor. Com isso pretende beneficiar de quatro a cinco milhões de mutuários.

b) Inclui incentivos aos credores para aliviar a situação de três a quatro milhões de devedores em situação de inadimplência, evitando a retomada das moradias pelas financiadoras.

c) Amplia o papel das instituições paraestatais de fomento imobiliário (as Fannie Mae e Fred Mac) injetando mais U$100 bilhões em cada uma e permitindo-lhes ampliar suas carteiras hipotecárias.

Uma avaliação preliminar da “opinião pública” revela-se contrária às medidas financeiras que contemplam apenas os interesses de “Wall Street” e acham insuficientes os programas que beneficiam o “main street”, frente ao tamanho da crise que afeta um número alto e crescente de desempregados.

Dado que as autoridades monetárias não têm efetivo controle dos bancos, nem instrumentos jurídicos de intervenção (que ainda está em estudos no Congresso) entende-se a irritação de grande parte da opinião pública. Por outro lado destacados economistas (favoráveis aos democratas) consideram que o Programa de Resgate Financeiro sem instrumentos de regulação pode considerar-se apenas a versão ampliada e igualmente ineficiente dos programas do governo republicano. Entre eles conta-se economistas de renome como Paul Krugman, Joseph Stiglitz e outros. Por outro lado vários analistas e jornalistas especializados da imprensa inglesa como Martin Wolf continuam acreditando que o desequilíbrio fundamental entre a China e os EUA está na raiz da crise financeira americana e que enquanto ele não for atacado a crise não estará resolvida.

IV – O impacto da crise sobre a América Latina e em particular sobre o Brasil.

Começamos com uma citação síntese de José Juan Ruiz, economista da Divisão América do Banco Santander:

Graduados en infinidad de crisis, los países latinoamericanos cuentan hoy con una banca saneada y una política económica fortalecida. El mayor obstáculo es el poco margen que ofrece la política fiscal en la región. El mayor riesgo, un fuerte ajuste en los tipos de cambio (4).”

Um ano depois de instalada a crise financeira das hipotecas sub-prime nos EUA, no verão de 2007, o continente latino-americano continuava crescendo 4% em média e o Brasil 5,8% nos três primeiros trimestres de 2008, enquanto se assistia a problemas crescentes de liquidez e queda de crescimento nos países do G7. A maior dúvida dos principais bancos centrais e do FMI era a respeito das crescentes tensões inflacionárias com a forte elevação nos preços do petróleo e principalmente nos alimentos. A resposta dos principais bancos centrais – Brasil, México, Chile, Colômbia e Peru – foi endurecer a política monetária, subindo a taxa de juros sob fortes aplausos dos mercados. O Brasil e o Peru ganharam então a outorga do grau de investimento concedido pelas “rating companies” globais.

Entre dezembro de 2007 e junho de 2008, a taxa de câmbio média apreciou-se, os mercados de valores entraram em ebulição e o valor das empresas cotizadas em bolsa aumentaram o equivalente a U$247 bilhões, alcançado U$2,4 bilhões, cerca de 85% do PIB regional. Estes acontecimentos, em tempos de crise financeira global, eram fatos inéditos na região que pareciam confirmar a tese do “desacoplamento” dos países emergentes em geral e da América Latina, em particular.

A quebra da Lehman Brothers, em setembro de 2008, mudou radicalmente as expectativas dos principais agentes do mercado internacional sobre a profundidade da crise. O contágio foi imediato a todos os mercados, sobretudo os de crédito e de capitais, que atingiu mais fortemente os países emergentes mais endividados e, de uma modo geral, afetou violentamente o comércio exterior de todos os exportadores de commodities que é o caso geral da América Latina, grande exportador de matérias primas cujos preços despencaram em 50%.

O choque financeiro foi de tal força que o indicador de risco do EMBI latinoamericano aumentou 438 pontos básicos, voltando a níveis absolutos que não se viam desde os anos da crise argentina. Em 12 de dezembro o Equador anunciou o repudio da sua divida externa. A Argentina e a Venezuela estão com riscos altíssimos, equivalentes a níveis de default, e o México para evitar uma crise de pagamentos solicitou U$40 bilhões ao FMI em começo de abril de 2009. O mesmo acaba de ocorrer com a Colômbia. Os mercados de capitais continuam fechados. A única exceção relevante do meu conhecimento foi o credito internacional obtido pela Petrobras que continua uma empresa de risco soberano.

As expectativas de crescimento médio do PIB para a America Latina tornaram-se negativas para 2009, embora no Brasil as estimativas do Governo ainda sejam ligeiramente positivas. A resistência da America Latina a esta crise parece ser bastante maior do que na crise da divida externa de 1982-83 quando todos os países estavam fortemente endividados e não resistiram ao fechamento do crédito internacional que ocorreu a partir dos choques simultâneos de petróleo e de juros em final de 1979. A maioria dos países da região tem hoje reservas internacionais importantes e os seus governos não se encontram endividados no exterior.

No caso do Brasil, as reservas de quase U$200 bilhões tem permitido inclusive financiar as exportações e rolar parte da divida externa do setor privado nacional. Quase todos os países tendem também a adotar políticas anticíclicas praticadas nos demais países, desenvolvidos e emergentes, basicamente as políticas monetárias, creditícias e fiscais internas, desta vez recomendado pelo próprio FMI.

O Brasil está entre os países que se encontra em melhor situação na America Latina, dadas as elevadas taxas de juros que vinha praticando e a maior carga tributária de toda região, o que lhe permite maiores incentivos pelos meios tradicionais. O superávit primário de 3,8% acaba de ser reduzido, em particular no que toca ao investimento em infraestrutura, sobretudo em energia (elétrica e petróleo). A dívida interna é a mais baixa das ultimas décadas e deve continuar baixa se as taxas de juros continuarem caindo acentuadamente durante o ano, dadas as expectativas favoráveis de inflação e câmbio.

Essa deve ser também a opinião do mercado financeiro internacional, pois desde março voltaram a entrar capitais de portfólio e aumentou o saldo liquido na conta de capitais do balanço de pagamento. O Brasil possui um sistema financeiro hígido, com altos lucros e que representa cerca de 2/3 dos negócios de toda a região. Além de fortes bancos privados nacionais e estrangeiros, conta com três bancos públicos (um comercial e dois de fomento). Os três maiores bancos brasileiros (dois privados e um publico) encontram-se hoje entre os vinte maiores do mundo e estão em condições de reciclar as dividas dos seus maiores clientes. Espera-se também que os bancos públicos possam expandir o credito às pequenas e médias empresas e que a queda dos spreads bancários e a ajuda aos bancos menores volte a restabelecer o crédito para o mercado interno.

Finalmente o Brasil é auto-suficiente em energia e alimentos e possui programas sociais compensatórios para cerca de dez milhões de famílias. Tem o mercado interno mais forte da America latina e seu coeficiente de dependência do comercio exterior encontra-se entre os menores do mundo. Apesar destas condições favoráveis, o Brasil, a igual que os demais países da América Latina, não ficou imune à crise que se manifestou por uma forte retração da produção industrial no último trimestre de 2008, em particular nos setores exportadores e que se manteve até o final do primeiro trimestre de 2009. A arrecadação fiscal caiu também fortemente atingindo União, Estados e Municípios. Os primeiros indícios de recuperação econômica começaram apenas em abril deste ano, mas é difícil estimar a taxa de crescimento para 2009 e 2010.

V – A Gravidade e a Duração da Crise Mundial

A Crise global que se originou no sistema financeiro norte-americano continua agravando-se e é impossível que se resolva enquanto o governo dos EUA não tiver os instrumentos de poder para fazer frente à “oligarquia de Wall Street”. A expressão “oligarquia financeira” não é mais apenas um slogan de esquerda e já foi utilizada recentemente pelo professor do MIT Simon Johnson, ex-economista chefe do FMI para expressar a conivência entre instituições poderosas que se recusam a admitir perdas e um governo cúmplice sob domínio de “cambistas”. O Prof. Johnson argumenta que o peso do setor financeiro, ao não aceitar demonstrar a sua inadimplência, está evitando a solução da crise.

A visão de que não existe nenhuma instituição suficientemente grande e complexa que não possa ir à falência, é uma versão neoliberal extrema de que todas as soluções devem ser buscadas pelo “livre” funcionamento do mercado. A visão oposta é da estatização bancária para salvar os bancos da própria crise. A solução adotada pelo governo Bush, de deixar o Lehman Brotters ir à falência, provocou porém uma reversão violenta de “expectativas” no mercado, ameaçando levar as demais grandes instituições financeiras à falência. A situação de pânico reverteu rapidamente a política neoliberal, passando o FED a despejar centenas de bilhões de dólares nos caixas dos bancos. Como o aumento brutal da liquidez primária não se revelou a solução para um buraco que parece sem fundo, passou-se a propor a compra de “ativos tóxicos”, além de realizar sucessivas capitalizações ad hoc das principais instituições financeiras americanas.

O sentimento de que o Estado americano está servindo à elite de Wall Street, tem levado a “main street”, violentamente atingido pelo desemprego, a protestar com veemência contra a política financeira do governo, que também tem sido francamente criticado à esquerda e à direita pelos formadores de opinião. A situação, entretanto continua se agravando mesmo depois de empossado o novo governo democrata.

Enquanto uma proposta consensual de intervenção legal do governo para reestruturar e regular o sistema financeiro não for alcançada no Congresso, a situação americana se aproxima cada vez mais da “doença japonesa”. O Japão levou cerca de dez anos para sair da crise bancária do começo da década de 90, pressionado entre a possibilidade de falência dos grandes bancos e o repúdio popular ao resgate que, lá também, montou a trilhões de dólares.

Enquanto a situação financeira dos EUA não se resolve as perspectivas dos demais países desenvolvidos do G7 vão-se deteriorando. As projeções da OECD de fim de março para o ano de 2009 contemplam o aumento da recessão aberta, com uma queda de cerda de 4% para as economias americana e da União Européia e de 6,6% para a economia japonesa. A Organização Mundial do Comércio por sua vez prevê uma redução do volume do comércio internacional de 9% para 2009 (independente de que ocorra com a deflação de preços).

A situação fiscal também é preocupante nos EUA e na União Européia. O déficit previsto pelo FMI para 2009 seria de 12% e 10% dos respectivos PIBs. No caso americano com os programas adicionais de incentivo fiscais e financeiros do governo Obama o déficit pode alcançar cerca de 17% na execução fiscal de 2009. Apesar destes déficits monumentais, o FMI continua recomendando programas fiscais anticíclicos que exigiriam uma expansão fiscal global programada de U$5 trilhões para obter um impacto positivo estimado em 4% do PIB mundial, até o final de 2010.

A ânsia de obter resultados convergentes e positivos até o fim de 2010 deu à reunião de Londres do G20 um caráter histórico de boa vontade política das lideranças fundamentais do mundo desenvolvido e dos países emergentes. Evidentemente o caráter simbólico desta aliança não é desprezível para melhorar as expectativas dos principais agentes político-econômicos da economia mundial. Os acordos, em princípio sobre políticas anticíclicas e algumas poucas promessas de medidas de regulação com vistas à estabilização dos sistemas financeiros globalizados (regulação dos fundos hedge e controle dos paraísos fiscais com o fim do sigilo bancário) encontram, no entanto, dificuldades práticas não triviais. No que diz respeito às políticas anticíclicas, o problema está na assimetria, tanto das situações fiscais como da capacidade de financiamento externo aos devedores por parte dos grandes países credores.

Paradoxalmente a situação continua mais favorável nas relações devedor-credor dos EUA e da China, apesar de que a assimetria entre a situação dos dois países é considerada por muitos analistas como o cerne do desequilíbrio da economia mundial, quando não a raiz última da atual crise (5).

Não quero entrar a fundo nesta discussão, mas convém lembrar rapidamente o caráter contraditório da relação EUA-China (6). Até a recente crise ela era considerada de mútuo benefício direto por ambos os países e por quase todos os que se beneficiavam indiretamente do seu crescimento mais rápido a partir da década de 90 (em particular os continentes americano e asiático).

O “matrimônio” de mútua conveniência parece ter acabado quando o comércio acoplado ao forte investimento direto das filiais americanas desacelerou bruscamente e não existe outro credor no mundo com reservas suficientes para financiar a atual situação deficitária do governo dos EUA. A alternativa do Tesouro americano seria financiar o gigantesco déficit fiscal através das emissões do FED sem fundamento em reservas internacionais disponíveis. Esta situação, que levaria certamente a uma forte depreciação do dólar, não parece ser desejada por nenhum dos países detentores de reservas em dólar.

A decisão do G20 de triplicar os recursos do FMI de U$250 bilhões para U$750 bilhões com contribuições dos países dispostos a fazê-lo e a expansão das emissões de Direitos Especiais de Saque, não resolve evidentemente o dilema do financiamento externo entre os EUA e a China. O FMI só pode socorrer alguns países periféricos que enfrentam crises de pagamentos de suas dívidas (como os países da Europa Oriental, da Colômbia, do México e do Caribe).

Assim não foi por acaso que às vésperas da reunião do G20, o presidente do Banco Central da China declarou seu descontentamento com o privilégio de “senhoriagem” dos EUA de ter o dólar simultaneamente como a mais importante moeda reserva da economia mundial e ao mesmo tempo de “livre emissão” do seu Banco Central. Obviamente sua proposta de substituí-lo por direitos especiais de saque do FMI não tem qualquer viabilidade, tanto pela oposição dos EUA quanto pelo montante irrisório de recursos disponíveis em DES frente ao volume em dólares das reservas internacionais. Essa contradição ficou manifesta na reunião do G20 quando a própria China se dispôs a contribuir para o FMI com uma quantia mínima em proporção às suas reservas em dólar.

Por sua vez a declaração de Obama de que o mundo vai ter que se acostumar a viver sem o “excesso de consumo” é igualmente paradoxal. Salvo se, além de ironizar a China que teria também de se “ajustar”, ele estivesse ignorando o impacto, não apenas de curto prazo, mas também de longo, que uma queda acentuada do consumo americano teria sobre a sua própria economia. Enfim ameaças ou ironias à parte é indiscutível que essa crise pode se converter em depressão duradoura quanto mais forte for o tipo e a duração do ajuste das duas economias mais importantes do planeta.

Quando ainda se falava em “desacoplagem” dos países emergentes da crise, o comportamento de países como a China e o impacto de suas relações internacionais no Leste Asiático era uma das grandes esperanças. A desaceleração industrial e do comércio exterior da China atingiu, porém fortemente os países do Leste da Ásia, de modo que a recessão aberta atingiu até agora todos os países da economia mundial com exceção da China e da Índia.

A discussão mais recente entre os macroeconomistas anglo-saxões centra-se em estimar a profundidade desta crise quando comparada com a de 1930. Paul Krugman usa um gráfico da evolução da produção industrial dos EUA para demonstrar que a atual recessão é bem menor que a de 1929 (7). Eichengreen e O’Rourke apresentam resultados diferentes em um trabalho ainda progresso (8). Segundo eles, como as quedas na produção são muito maiores na Europa, Japão, outros países asiáticos e na América Latina, se fizermos a comparação dos índices de produção industrial mundial nos dois casos, as conclusões são muito diferentes do que tomando apenas os EUA. Nos últimos nove meses da atual crise a recessão seria tão aguda quanto nos primeiros nove meses depois da Crise de 29 e a queda no valor global das ações seria ainda maior.

Como a liquidez atual é imensa, com taxas de juros reais praticamente nulas e políticas anticíclicas generalizadas (ao contrário do ocorrido na crise de 30), as possíveis implicações de uma análise deste tipo seriam extremamente pessimistas. O que mais me preocupa, porém não é este tipo de exercício, mas o fato de que nem a crise bancária americana, nem a crise de crédito global se encontram perto de solução e que o efeito de contágio da crise de 30 era menor que o da atual crise, dada a situação de globalização financeira e as profundas assimetrias na economia mundial.

É esse tipo de comparação estrutural, que piora o meu pessimismo sobre a atual crise. Em contrapartida estou relativamente otimista por não estar à vista “como solução” uma nova guerra mundial. Em relação ao Brasil não posso deixar de estar também moderadamente otimista, tendo em vista o seu baixo grau de inserção na globalização financeira, a sua pequena dívida de origem fiscal e a proporção tão alta entre o mercado interno e o mercado de comércio exterior. Tudo isso dá ao país um maior grau de autonomia e torna os seus governantes altamente responsáveis pelo destino de nossa recuperação.

Notas:

(1) Na verdade o período de crescimento e a duração do dólar flutuante como reitor do sistema financeiro global ultrapassou de muito o período “virtuoso” do regime de taxas fixas de Bretton Woods que terminou em 1973. A tal ponto foi achado funcional o “dólar flexível” e a globalização financeira, que o novo regime foi apelidado por alguns de “II Bretton Woods”.

(2) Ver M. C. Tavares e L. E. Melin, “A Reafirmação da Hegemonia Americana”, in Poder e Dinheiro – uma economia política da globalização, Vozes, Petrópolis, 1997.

(3) Desta parte, A. Greenspan, fez recentemente autocrítica, respondendo ao coro de vozes acusatórias.

(4) Ver artigo “Latinoamerica 2009: el privilegio de ser como todos”, in Política Exterior, nº 128. Marzo/Abril 2009.

(5) Ver Stephen Roach, “Como evitar a depressão enquanto cai o consumo”, Valor Econômico, 16/04/2009.

(6) Ver M. C. Tavares e L. G. Belluzzo, A mundialização do capital e a expansão do poder americano. in: Fiori, J. L. (org) O poder americano. Petrópolis: Vozes, 2004.

(7) Ver Krugman, P., “The Great Recession versus The great Depression” (20/03/2009) -
http://krugman.blogs.nytimes.com/2009/03/20/the-great-recession-versus-the-great-depression/

(8) Ver "A Tale of Two Depressions", com um resumo em www.voxeu.org

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