sábado, 30 de janeiro de 2010

‘Em 10 anos, Fórum Social Mundial está mais vivo do que nunca’, afirma Francisco Whitaker

Para Francisco Whitaker (foto) cofundador do Fórum Social Mundial, os 10 anos do FSM mostram que o encontro não existe para indicar o caminho, mas para abrir espaços de reflexão na sociedade. A reportagem é de Júlia Assef e publicada pelo sítio Deutsche Welle, 29-01-2009.
Fonte: UNISINOS


O retorno do Fórum Social Mundial à cidade de Porto Alegre significou mais do que uma comemoração dos 10 anos de existência do Fórum. Representou um espaço para a discussão do verdadeiro propósito do encontro internacional e dos desafios para o desenvolvimento mundial no século 21.

Durante os cinco dias do evento, foram realizadas 915 atividades em sete cidades, que reuniram 35 mil pessoas de quase 40 países. Um dos idealizadores do evento, o empresário Oded Grajew, disse que as organizações ali presentes recolhem, apresentam e trocam ideias, que começam a ser colocadas em ação a partir do Fórum.

Muitos dos resultados dos debates e propostas do encontro no Brasil serão levados para Dacar, no Senegal, onde o evento será realizado em 2011, como também para sucessivos fóruns espalhados pelo mundo. Ao todo, 27 desses encontros acontecerão ao longo de 2010.

"Para nós que estamos aqui desde o começo, tentando dizer que o bom caminho é construir a união, está cada vez mais claro que não é só possível, mas fundamentalmente necessário e urgente. Entretanto, o Fórum não existe para chegar a uma conclusão e dizer qual o caminho que todos devem seguir. Ele existe para abrir esse espaço de reflexão sobre nossas próprias ações", afirmou Francisco Whitaker, cofundador do FSM e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

Desenvolvimento sustentável

Whitaker ressaltou que pontos importantes desta edição nasceram no Fórum Social de Belém, em 2009. Ele destacou a ideia do Bem-viver, conceito de um novo tipo de sociedade, de pessoas vivendo em harmonia com os semelhantes e com a natureza. "Transforma positivamente essa perspectiva solidária de gente, não de objeto da acumulação de dinheiro, é um paradigma de civilização", enfatizou.

A todo momento, surgem experiências embrionárias no Brasil e no mundo que oferecem uma nova perspectiva de manutenção da sustentabilidade. A senadora e ex-ministra brasileira do Meio Ambiente, Marina Silva, presente no painel "Novos Parâmetros para o Desenvolvimento", afirmou que o Fórum não aponta uma fórmula única, mas promove o diálogo e a análise das propostas.

"Não há como continuar destruindo as bases naturais de nosso desenvolvimento. No outro mundo possível, há que se ter sustentabilidade", disse. A senadora ainda citou como exemplo o saber popular de comunidades tradicionais ou indígenas, considerado fundamental para a proteção dos ambientes naturais.

Balanço dos 10 anos

Uma das atividades centrais do FSM 2010 foi o Seminário Internacional "10 Anos Depois: Desafios e propostas para outro mundo possível". Mais de 70 intelectuais e dirigentes sociais do mundo todo participaram da iniciativa. Muitos deles integraram o processo de criação e construção do Fórum Social Mundial na última década. Os novos desafios da sociedade civil e a projeção dos caminhos a serem trilhados pelo FSM estavam em pauta: os erros, acertos e a dinâmica institucional do Fórum.

Para Chico Whitaker, o resultado do seminário foi positivo, tendo em vista a convergência de opiniões dos participantes, engajados em diferentes lutas. "O que o balanço desses 10 anos mostrou é que a fórmula de não se centrar na identidade de ser algo sólido, monolítico e com uma agenda precisa, funciona", ressaltou. "Em 10 anos, o FSM está mais vivo do que nunca".

No entanto, talvez seja essa abertura para a diversidade, criatividade, liberdade e multiplicidade de ações que dificulte um pouco o processo da organização do FSM. Atividades são canceladas, transferidas, mudam de local ou surgem espontaneamente, o que deixa os mais tradicionais um pouco atordoados, salienta.

Com a proposta de não hierarquização na definição dos eventos, todo participante pode ser protagonista. "O FSM se propõe a fazer uma mudança cultural para que as pessoas mudem a maneira de pensar. É um espaço para atividades auto-organizadas, um processo inovador. Cada um tem seu espaço, e todos são igualmente importantes", afirma Oded Grajew.

Para onde vai o FSM

Durante o 10º Fórum Social Mundial, movimentos sociais e sindicais brasileiros – e alguns estrangeiros – defenderam a transformação do FSM em uma entidade que lute pelos ideais e propostas discutidas no encontro. A sugestão dividiu o Fórum, que funciona há 10 anos como um espaço aberto de articulações. "Ninguém aqui defende pegar em armas, mas se não fizermos grandes mobilizações de massa, não haverá como enfrentar mais nada. Temos que começar a marcar gols", disse João Felício, representante da Central Única dos Trabalhadores (CUT), entidade cofundadora do Fórum.

Os organizadores do encontro, no entanto, adiantam que a mudança significaria um retrocesso. De acordo com Francisco Whitaker, transformar o fórum numa entidade ou organização é promover divisão. "Significaria introduzir dentro desse movimento a luta pelo poder de representá-lo, de falar em nome dele. Assim nós mataríamos o FSM", alerta.

Para Grajew, o Fórum é um processo, quem deve se articular e formar alianças são as entidades. "Estamos trabalhando em algo muito difícil: a mudança das culturas. A competição e a hierarquização patriarcal estão na mente ocidental há séculos. É uma mudança muito difícil e que tentamos implementar há 10 anos, mas é a única que pode nos levar a um desenvolvimento sustentável", conclui.

Entrevista - Boaventura de Sousa Santos

O Fórum Social Mundial desafiado por novas perspectivas

Entramos no milênio com um sentimento contraditório, disse o sociólogo Boaventura de Sousa Santos para a platéia que o assistia na tarde do dia 27-1-2010, no Anfiteatro Padre Werner, no IV Seminário de Políticas Públicas, parte da programação do Fórum Social Mundial. Sem otimismo, ele assegurou que a próxima década será menos fácil para as forças progressistas e os movimentos sociais. “Venho do Equador e vejo tensões muito fortes entre o governo e o movimento indígena, justamente num país cuja a Constituição tem uma enorme influência indígena. Isto também é um mau sinal”. Por outro lado, o sociólogo apontou uma novidade no continente latino-americano: o resgate do conceito de suma causa, presente na tradição indígena, ou seja, a necessidade de pensar a natureza, a harmonia cósmica, o bem-estar social. Essa concessão holística “exclui a acumulação e o lucro como fins em si mesmo e (...) é baseada na simplicidade, nos valores comunitários (...), uma maneira completamente diferente de entender a economia”. Esse resgate está relacionado a um processo de descolonização da América Latina. “Só agora muitos países estão se dando conta disso, devido a ação dos novos protagonistas indígenas e afro-descendentes”. Depois da apresentação de sua conferência, Boaventura conversou com a IHU On-Line e falou sobre o fracasso que Copenhague representou para os movimentos sociais e mencionou suas expectativas em relação ao futuro do Fórum Social Mundial nos próximos anos.

Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da mesma Universidade e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. Entre sua vasta produção bibliográfica, citamos Epistemologias do sul (Coimbra: Edições Almedina, 2009); A universidade no século XXI. Para uma universidade nova (Coimbra: Edições Almedina, 2008); A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Porto: Afrontamento, 2007); Para uma revolução democrática da justiça (São Paulo: Cortez Editora, 2007).
Fonte: UNISINOS


IHU On-Line – Copenhague foi um fracasso, uma derrota para os movimentos sociais?

Boaventura de Sousa Santos – De alguma maneira foi um fracasso, sim. Não conseguimos impor em Copenhague uma visão coerente, alternativa àquela que estava sendo posta pelos países desenvolvidos, com alguma conivência dos países em desenvolvimento. Isso resultava do fato de que em Bali, numa conferência preparatória, os EUA declararam que não estavam preparados para impor metas para a redução do CO2. Quando os EUA disseram isso, todos os países já sabiam que não iriam se envolver em grandes metas vinculativas, porque os americanos ficariam de fora. Aliás, os EUA têm um hábito extraordinário de não participar das convenções internacionais. Portanto, Copenhague já era um fracasso anunciado. O que houve, obviamente, foi uma tentativa, e essa com êxito, de que não se assinassem documentos que mostrassem a hipocrisia total de todo o sistema. Mais vale aceitar um fracasso e ver se no México, ainda este ano, é possível fazer alguns avanços.

É evidente que os países ricos e desenvolvidos têm que ter a sua cota de responsabilidade. Em seu discurso no Gigantinho, o presidente Lula disse que quem polui há 200 anos não pode ter as mesmas responsabilidades daqueles que poluem há cinco ou dez anos. Isso é perfeitamente justo, mas muito difícil de ser compreendido pelos governantes da Europa ou dos EUA. Portanto, esse é um processo lento, até porque temos outros gigantes emergentes como a China, a qual, usando este argumento, não está disposta a desenvolver uma economia de baixo carbono. Por outro lado, temos a Coréia do Sul, um exemplo de país capitalista desenvolvido que está neste momento fazendo uma conversão notável para a economia do baixo carbono, anunciando novos modelos de produção, que podem ter algum futuro dentro do modelo capitalista.

IHU On-Line – Qual será o papel político e social do Fórum Social Mundial nos próximos dez anos? Que futuro o senhor vislumbra para o encontro?

Boaventura de Sousa Santos – O Fórum Social Mundial, que teve um impacto notável nesta última década, vai ser cada vez mais relevante se forem tomadas algumas medidas. A primeira, no meu entender, é que ele deve ser verdadeiramente mundial. Da perspectiva sociológica ou social-política, o Fórum foi, sobretudo, latino-americano. Foi na América Latina que ele conquistou a imaginação dos movimentos sociais, dos lideres políticos que aqui vieram certos de que estavam diante de um evento importante. Não conseguimos fazer isso na Europa, nem na Ásia, nem na África, apesar de termos realizados fóruns sociais nesses continentes.

Penso que deve haver mudanças e o fato de o próximo Fórum Social Mundial ser em Dakar, pode já anunciar a possibilidade de algo mais forte neste sentido. Em segundo lugar, penso que o Fórum Social Mundial tem que se preparar para, em áreas consensuais, poder apresentar publicamente e internacionalmente posições do Fórum Social Mundial. Teria sido bom se, por exemplo, em Copenhague nós tivéssemos tido a posição do Fórum Social Mundial. Estiveram lá algumas organizações que fazem parte do Fórum, só que elas atuaram como organizações e não como organizações do Fórum Social Mundial. Mas aí é preciso haver alguma evolução. Em terceiro lugar, o Fórum deve tentar promover algumas ações coletivas de formação como, por exemplo, a minha proposta da universidade popular dos movimentos sociais, ou outras sugestões de articulação de ações coletivas. Hoje, o Fórum é a melhor opção para se tentar uma nova articulação entre partidos e movimentos. Ele nasceu num período de crise dos partidos com o objetivo de mostrar que há outras formas de representação. O interessante é que hoje temos partidos novos no continente que querem ver como é possível ter uma relação diferente com os movimentos sociais, articulando-se com eles, respeitando sua autonomia, mas trabalhando juntos para políticas progressistas.

IHU On-Line – Por que a próxima década será menos fácil para os movimentos sociais e forças progressistas?

Boaventura de Sousa Santos – Os avanços nunca são irreversíveis e os retrocessos nunca são finais. O que digo é que a conjuntura política internacional dá alguns sinais que podem ser positivos para este continente, mas também sinaliza aspectos que podem ser negativos. O mais negativo de todos é o fato de os EUA terem se virado para a América Latina. Quando isso acontece geralmente temos más notícias, sobretudo quando o país não decide abandonar a sua obsessão com os recursos naturais e a sua segurança. Os EUA são hoje um país que está cada vez mais isolado. Um cidadão europeu viaja por todo o mundo sem precisar de visto para entrar em muitos países. Um cidadão estadunidense, contudo, precisa de visto, hoje, para entrar em 93 países. É muito difícil um norte-americano conseguir obter um visto para entrar no Brasil, porque é muito complicado para um brasileiro obter o visto para entrar nos EUA.

Essa preocupação com a segurança fez com que tenhamos o problema do Haiti. As informações que temos mostram que os EUA transformaram o Haiti numa zona de ocupação e, sobretudo, numa zona segura, para não se repetir o que aconteceu na Somália. Com base nisso, não deram a ajuda humanitária que deveriam dar. Esses são maus sinais. Por outro lado, nem sempre os governos progressistas souberam manter a ligação com a sociedade civil e os movimentos sociais. Venho do Equador e vejo tensões muito fortes entre o governo e o movimento indígena, justamente num país cuja Constituição tem uma enorme influência indígena. Isto também é um mau sinal. Vejo que há sinais também de separação entre o presidente Chávez e os movimentos sociais. Não sabemos o que vai acontecer nas próximas eleições na Venezuela: golpe de Estado? Não imagino. Mas, como digo, as previsões não pertencem aos sociólogos.

Por outro lado, os governos progressistas, além de não terem criado condições de ter uma relação com a sociedade civil melhor, também não tiveram políticas inovadoras no modelo econômico. Ainda hoje, como eu disse, não temos nenhuma política nova a não ser essa do Equador, que, em sua Constituição valoriza a filosofia ancestral do sumak kawsay (bem viver) e os direitos da Pachamama. Essa é uma das poucas formas que pode ser apontada para outro modelo de desenvolvimento. Portanto, muitas das políticas adotadas pela esquerda podem ser apropriadas por governos de direita, sem problema nenhum. De todo modo, esses são indicativos de preocupação.

IHU On-Line – Qual vai ser o papel do Fórum Social Mundial nesse contexto de dificuldade?

Boaventura de Sousa Santos – Penso que o Fórum Social Mundial vai ser muito importante para permitir uma solidariedade internacional e continental para os fatos que ainda podem acontecer. Penso que nenhuma tentativa de desestabilizar os países pode ser feita. Podem dizer que em Honduras não houve uma grande solidariedade. Mas, lá, os movimentos sociais da América Latina foram paralisados por uma atitude inicial dos EUA, os quais achavam que não era necessária a organização dos movimentos sociais, porque o país iria respeitar Zelaya, presidente eleito, e como tal não aceitaria o golpe de Estado. Portanto, quando os cidadãos de Honduras sentiram necessidade de fazer manifestações, o fizeram sozinhos. De fato não houve uma grande solidariedade continental. Penso que o Fórum Social Mundial tem de se preparar para ser mais ativo nas capacidades organizativas da solidariedade continental.

O Fórum também pode ter a função de participar de debates que são novos no continente e que tem a ver com duas questões: justiça ambiental e justiça intercultural. É preciso apresentar-se diante dos dilemas ambientais e da questão indígena e afro-descendente, porque os políticos são muito produtivistas, não tem uma consciência ambiental.

O Fórum Social Mundial, na área ambiental, da interculturalidade e da democracia participativa e comunitária, tem um papel muito forte no sentido de dinamizar estas áreas a nível continental e global. Como vamos fazer? Não sabemos muito bem. Evidente que há a lógica do consenso, de que não devemos assumir condições que façam perder este caráter inclusivo do Fórum Social Mundial. Portanto, vamos ver o que o futuro nos reserva.

IHU On-Line – Como o conceito de suma causa pode ser aplicado na conjuntura atual?

Boaventura de Sousa Santos – O conceito de suma causa, que quer dizer viver bem, apresenta um modelo social e econômico, aliás, essa distinção não faz muito sentido porque ela é uma concepção holística, e como tal envolve movimentos culturais, sociais, econômicos e religiosos, inclusive. Realmente é uma concepção que não se assenta na ideia do progresso no sentido ocidental, mas na ideia do desenvolvimento das pessoas, do florescimento dos indivíduos e da comunidade, ou seja, é um conceito que não se baseia num princípio individualista de pessoa, mas no conceito coletivo: a pessoa e sua sociedade. Não exclui, obviamente, as relações mercantis que sempre estiveram nas comunidades indígenas. Entretanto, exclui a acumulação e o lucro como fins em si mesmo e, portanto, é uma economia que mesmo quando tem algum elemento que pudesse ser semelhante a uma economia capitalista, centra-se sempre na unidade familiar. É uma concessão que parte da família e, normalmente quando a família não a apóia, ela desaparece. Portanto, é outro tipo de concepção, de construção de vida e de sociedade, baseada na simplicidade, nos valores comunitários. É uma maneira completamente diferente de entender a economia daquela que nós conhecemos como convencional.

IHU On-Line – O senhor alerta para a necessidade de assegurarmos todos os direitos conquistados até o momento. Como mantê-los e ampliá-los num período em que o diálogo entre movimentos sociais e os representantes do neoliberalismo é tão estreito?

Boaventura de Sousa Santos – Penso que uma luta não exclui a outra. Não podemos “embandeirar em arco”, isto é, ficarmos todos triunfalistas acerca das conquistas que temos como se elas fossem irreversíveis. Conquistou-se a democracia e isso é muito importante, mas não é irreversível. Temos que aprofundá-la e radicalizá-la. A única maneira para que isso ocorra é avançar para as novas conquistas, mas ter entendimento de que aquelas que já temos também não são perdidas. Não faz sentido consolidarmos, para dar um exemplo, a Conferência Nacional, onde os movimentos sociais e o Estado se juntam e, portanto, isso é muito importante. Essa é uma política do governo brasileiro, que cria conferências nacionais de articulação com a sociedade civil organizada. Isso não impede que se lute contra a criminalização dos movimentos sociais e, nomeadamente, do MST. Portanto, aqui está a defesa daquilo que temos: a legalidade dos movimentos sociais e, por outro lado, o avanço para outras lutas e um diálogo constante.

IHU On-Line – Como os três modos de democracia (representativa, participativa e comunitária) são capazes de radicalizar a democracia? A experiência dos povos indígenas é um exemplo a ser seguido nesse sentido?

Boaventura de Sousa Santos – Precisamente porque são formas diferentes de trabalhos democráticos, onde uma democracia indígena não exclui, inclusive, a democracia representativa e participativa. Ou seja, os povos indígenas, que, no âmbito de sua comunidade, em formas de liberação democrática por consenso, tomam decisões locais, são também aqueles que irão votar nas eleições nacionais. Então, articula a democracia comunitária com a democracia representativa. Não temos até agora formas ricas e criativas de democracia participativa além da nacional. Nós temos essas formas de democracia comunitária, participativa no âmbito municipal. Já tivemos no Rio Grande do Sul uma experiência de democracia participativa a nível estadual, com o Orçamento Participativo.

IHU On-Line – O senhor diz que o Estado é o novo movimento social. Pode nos explicar essa ideia?

Boaventura de Sousa Santos – Fundamentalmente é uma metáfora que uso para distinguir os velhos movimentos sociais, os sindicatos, dos novos movimentos que surgiram como o das mulheres, os ecológicos e dos direitos humanos. Digo que agora há um novíssimo movimento social que é o próprio Estado. Vimos os movimentos sempre fora do Estado, e esquecemos um pouco dele. Realmente o Estado, entregue a si mesmo e a sua lógica, é capturado pela burocracia e pelos interesses econômicos dominantes. Portanto, é preciso que os movimentos sociais saibam que o Estado é um recurso importante e, neste país, temos uma boa lição: o MST, que trabalha fora do Estado e dentro dele. Mantém a sua autonomia, faz as suas ocupações, mas ao mesmo tempo seus assentamentos recebem financiamento do Estado, negociam com ele uma reforma agrária.

Tem que ser assim, complexo, porque o Estado é hoje uma relação social contraditória. Nós estamos numa altura em que apontamos o Estado como capitalista e como tal não podemos intervir nas suas lutas. Há hoje grupos sociais, os anarquistas, sobretudo, que continuam a pensar assim. Penso que não é isso que está em jogo. O Estado é uma relação contraditória e uma relação que pode ser apropriada pelas classes populares, se não totalmente, pelo menos, parcialmente. É isso que está ocorrendo no continente latino-americano.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Venício Lima


Quem perde é a democracia


O artigo é de Venício Lima, Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília - NEMP - UNB
Fonte: Carta Maior


Nos últimos meses, ainda mais do que nas últimas décadas, temos assistido a uma crescente intolerância dos principais grupos de mídia – Estadão, Folha, Globo e Abril – e das associações por eles controladas – ANJ, ANER e ABERT – em relação ao debate sobre as comunicações no Brasil.

Um dos princípios básicos da democracia é exatamente que qualquer tema pode e deve ser discutido pela cidadania. É assim, dizem os liberais, que se forma a opinião pública esclarecida, responsável, em última instância, pela escolha periódica e legítima dos dirigentes políticos do país.

Na democracia praticada pela grande mídia brasileira, no entanto, as comunicações devem ser permanentemente excluídas desse debate.

Qualquer pré-projeto, projeto, estudo, carta de intenções que se encontre em alguma gaveta de um ministério que inclua ou insinue o debate sobre a mídia será, automática e irreversivelmente, rotulado de “ameaça autoritária” e/ou “ataque à liberdade de expressão”.

A rotina é sempre a mesma: um jornalista encontra um desses pré-projetos, projetos, estudos e/ou carta de intenções; o jornalão dá manchete de primeira página alertando para o mais novo ataque do governo à liberdade de expressão e/ou à liberdade de imprensa; os outros jornalões (revistas e emissoras de rádio e televisão) repercutem a matéria entrevistando as mesmas fontes de sempre – pessoas e/ou entidades. Em seguida, todos publicam editoriais e/ou artigos de “analistas” sobre “as ameaças” autoritárias. Está armado o cenário.

Constituição não é parâmetro?

A quem interessa a permanente interdição da mídia como tema da agenda pública de debates? O que realmente querem e esperam os grupos empresariais que controlam a grande mídia no nosso país?

As normas adotadas unanimemente em democracias consolidadas do planeta e a Constituição Federal não servem mais de parâmetro para que se “permita” ou “admita” o debate. Até mesmo propostas de regulamentação de dispositivos Constitucionais têm sido entendidas, sem mais, como significando um “ardil” e/ou uma “armadilha” do governo para instalar um regime autoritário no país e, portanto, são automaticamente desqualificadas.

Ou não foi exatamente isso que ocorreu em relação às propostas da 1ª. Confecom – boicotada pela grande mídia; às diretrizes do III PNDH – ignorado ao longo de todo seu processo de construção; e, mais recentemente, ao documento-base da 2ª Conferência Nacional de Cultura que será realizada em março?

Despreza-se inteiramente a necessidade de leis federais, vale dizer, de um marco regulatório, que regulem a atividade de mídia, inequivocamente expressa na Constituição. Está escrito:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

(...)
§ 3º - Compete à lei federal:

I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;


II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:


I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;


II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;


III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;


IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

E a democracia?

Na verdade, a grande mídia tem se colocado acima das leis, da Constituição e das decisões do Judiciário, apesar de se apresentar como defensora suprema das liberdades.

Ao mesmo tempo, se recusa a discutir ou a negociar, boicota conferências nacionais, distorce e omite informações, sataniza movimentos sociais, partidos, grupos e pessoas que não compartilham de seus interesses, projetos e posições. Dessa forma, estimula a intolerância, a radicalização política e o perigoso estreitamento do debate público.

Como explicar, então, a atitude cada vez mais intolerante da grande mídia? Onde encontrar hipóteses e/ou explicações para um comportamento que, tudo indica, é deliberadamente articulado?

Acuar o governo e impedir que ele tome qualquer iniciativa no setor? Intimidar os movimentos sociais? Garantir a manutenção de interesses ameaçados? Estratégia de combate para o ano eleitoral?

Seja qual for a explicação, a principal derrotada é a democracia, exatamente o valor que a grande mídia simula defender.

Eduardo Galeano


Os pecados do Haiti

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental. Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. O artigo é de Eduardo Galeano.
Fonte: Carta Maior


A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca idéia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito com um voto sequer.

Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:

– Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi demográfico

Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Port-au-Prince, qual é o problema:

– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado... de artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis da invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses".

O Haiti fora a pérola da coroa, a colónia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das Leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro".

Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".

A humilhação imperdoável

Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos tinham conquistado antes a sua independência, mas meio milhão de escravos trabalhavam nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém comprava do Haiti, ninguém vendia, ninguém reconhecia a nova nação.

O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar conseguiu reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma idéia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. A essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indemnização gigantesca, a modo de perda por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Agemiro Ferreira


O Haiti antes e depois da tragédia

Artigo de Agemiro Ferreira
Fonte: Blog do Agemiro Ferreira


Certas coisas que nos atormentam tornam-se menores, até insignificantes, diante de uma tragédia como a que golpeou o povo haitiano. Acompanhamos o quadro chocante também por estarmos mais próximos desse país graças ao papel relevante do Brasil na força de paz da ONU, onde são elevadas nossas baixas – ainda que seja bem mais dramático o custo em vidas humanas dos própros haitianos.

A morte da dra. Zilda Arns (foto postada por este blog) emocionou o Brasil por sua história de vida e pelo trabalho humanitário ao longo de muito tempo. Nas últimas horas o secretário geral Ban Ki-Moon confirmou as mortes do tunisino Hedi Annabi, Representante Especial da ONU no Haiti, e de seu adjunto e número dois à frente da missão, Luiz Carlos da Costa, um dos brasileiros mais graduados e experientes nos quadros da ONU.
Os dois estavam familiarizados com as missões em pontos conturbados do mundo. Antes cabia a Da Costa (como era chamado) na sede de Nova York planejar cada uma delas conforme a situação específica do país, criando os cargos e escolhendo, dentro ou fora da ONU, pessoas capazes para ocupá-los. O desaparecimento dele no dia do terremoto já levara o secretário geral a nomear, para o lugar de Annabi, Edmond Mulet, que o antecedera.

O nível dos três no quadro é de secretário geral assistente. Curiosamente, nos últimos dias emails estavam sendo disparados por um grupo político no Brasil com ataques levianos à missão de estabilização no Haiti, Minustah – criticada como ineficaz e inoperante. Na verdade, seus prédios tinham sido destruídos no terremoto e suas autoridades maiores, Annabi e Da Costa, já estavam mortos.

Como Peter Sellers em “Being There”

Convivi alguns anos no prédio da ONU com gente dedicada que serve em tais missões. A jornalista brasileira Sonia Nolasco, esteve em Timor Leste e depois no Haiti. Já não estava lá no dia do terremoto. Em resposta a um email, explicou: “Por acaso estou aqui em Nova York, rezando por meus colegas. Nosso prédio desabou”. Antiga colega de redação no Rio, foi para os EUA em 1973, onde casou com Paulo Francis, seu namorado na juventude.

Os dois sempre moraram a uma quadra da sede da ONU, frequentado por Sonia como correspondente de jornais do Brasil. Algum tempo depois da morte do marido, ela decidiu servir em missões que exigiam sacrifício pessoal. Outro brasileiro, Manoel de Almeida e Silva, foi porta-voz muito tempo do secretário geral Kofi Annan e depois serviu mais de três anos na também caótica missão do Afeganistão.

O departamento de operações de manutenção da paz (peacekeeping) é um dos mais ativos da ONU. O jornalista James Traub, especialista em política externa que escreve para o New York Times, sabia bem como atuava com Annabi e Da Costa. Em artigo para o website Daily Beast observou: “Num filme, George Clooney poderia interpretar Sérgio Vieira de Mello. Mas não Annabi, tunisino seco, às vezes obscuro e cético mas nunca cínico. Seria um papel mais para o Peter Sellers de Being There”.

Traub uma vez ouviu o relato de Annabi sobre encontro com delegação dos EUA após o Conselho de Segurança decidir em 2000 despachar soldados contra os assassinos psicopatas que tentavam depor o governo de Sierra Leone. “O que o senhor fará naquela confusão?”, perguntou alguém. E Annadi: “Vocês vieram me dizer como consertar aquilo com tropas que não estão me dando ou vão me ajudar a encontrar um meio de resolver a coisa? Se for o primeiro caso, a reunião será curta”.

Aquela maldição de Pat Robertson

A visita da secretária de Estado Hillary Clinton ao Haiti neste fim de semana busca dar ênfase ao empenho do presidente Barack Obama, que tem falado ao país diariamente sobre a tragédia e chamou Bill Clinton e George W. Bush para um esforço extra. Mas nos EUA é notória e chega a ser constrangedora a insensibilidade de personalidades, políticos e profissionais da mídia em relação ao Haiti. Quatro nomes destacaram-se negativamente nos últimos dias.

O primeiro foi o conspícuo tele-evangelista Pat Robertson. Criador da notória Coalizão Cristã, esse reverendo fundamentalista disputou em 1988 as primárias do Partido Republicano como candidato à Casa Branca. Não emplacou. Mas como ex-dono de um canal de cabo o pastor Robertson continua influente no partido graças a seu programa de TV “Clube dos 700”, financiado por milionários republicanos.

Apesar de se julgar teólogo, filósofo e sábio, Robertson é capaz de asneiras monumentais. No último dia 13 declarou que a causa da pobreza e das tragédias do Haiti é um pacto com o diabo feito há dois séculos pelos escravos negros: em troca da vitória deles na rebelião de 1804 contra a escravidão e o controle dos colonos franceses, segundo a versão, passaram a servir ao senhor das trevas – e por isso foram amaldiçoados.

Tal idiotice virou tema de debates em talk shows das redes de TV a cabo dos EUA. No passado o mesmo Robertson vendeu milhares de fitas VHS acusando o casal Clinton de homicídio, conclamou ao assassinato de Hugo Chávez, chamou o profeta Maomé de terrorista, ganhou mina de ouro do ditador liberiano Charles Taylor (hoje acusado de crimes de guerra) e disse que o 11/9 foi castigo divino por causa das feministas, dos gays e do aborto.

Os ‘iluminados’ e uma velha receita

Há mais “iluminados”, além de Robertson, determinados a sabotar na mídia a campanha em favor de doações às vítimas do Haiti. Rush Limbaugh, extremista de direita e rei dos talk shows de rádio, conclamou as pessoas a negarem doações. “Já doamos antes. (…) Chega de jogar dinheiro fora”. E dois conservadores – Bill O’Reilly, da Fox News, e David Brooks, do New York Times – apresentaram suas próprias receitas mágicas.

A receita de O’Reilly é risível, digna do mau jornalismo do império Murdoch. Para ele, a cura dos problemas econômicos e sociais do Haiti consiste em impor disciplina aos haitianos. “Metade da população é analfabeta, o desemprego é 50%, as pessoas vivem com menos de US$2 por dia. Nenhuma caridade será suficiente e boas intenções não resolvem. O Haiti continuará caótico até se impor disciplina a eles”.

Já a receita “civilizada” de Brooks é contra a “cultura resistente ao progresso”. Ele explicou: “É hora de promover ali o ‘paternalismo dirigido’. Tentamos primeiro o combate à pobreza espalhando dinheiro, tal como fizemos em outros países. Depois, os esforços microcomunitários, como também fizemos em outras partes. Mas os programas que realmente funcionam envolvem paternalismo intrusivo”.

Ao expor esses dados o crítico de mídia Steve Rendall apelou para um grupo de direitos humanos, que ofereceu esta conclusão: “a receita do ‘paternalismo intrusivo’ para ‘consertar a cultura’ foi a política dos EUA no Haiti nos últimos 100 anos: ocupação militar brutal (1915-34); apoio à ditadura (1957-86); e, recentemente, a imposição de políticas comerciais que empobreceram ainda mais o povo. É preciso consertar não a cultura haitiana mas as políticas dos que só ajudam a si próprios. Elas é que deixaram milhares de haitianos literalmente enterrados vivos”.

Alguns textos e fotos permeiam o artigo acima e não foram aqui colocadas; eles  podem ser lidos e vistas no blog do autor acima linkado. Os grifos são meus.
Enoisa

Vinícius Torres Freire


Como se faz um Haiti?


Artigo de Vinícius Torres Freire, jornalista, publicado no jornal Folha de S. Paulo, 17-01-2010.
Fonte: UNISINOS




O Haiti era um lugar tão miserável como tantos outros da América Central em meados do século XX. Mas talvez já estivesse pronto para se tornar um dos piores buracos do inferno sobre a Terra.

Sua agricultura comercial se degradara desde a independência. A reforma agrária dos anos 1820 criou uma extensa classe de pequenos agricultores, de culturas pouco produtivas, em solos destroçados por técnicas primitivas, estrutura fundiária que resiste até hoje. A cleptocracia escancarada é uma forma de governo estabelecida desde meados do século XIX, quando também se firmou a estratificação social racista, a divisão entre mestiços e negros que, no entanto, vem do tempo das guerras revolucionárias. Também enraizado era o analfabetismo imenso.

Os dados mais antigos confiáveis, dos anos 1970, dão o Haiti como um dos países mais iletrados da região. Seja qual for o motivo mais profundo, o Haiti tornou-se definitivamente a retaguarda do atraso latino-americano a partir dos anos 1960. A data coincide com o início do regime dos Duvalier (1957-86), apoiados pelos EUA.

Mas outros países da região tiveram ditadores dementes e genocidas, a começar pela vizinha República Dominicana de Rafael Trujillo, que roubou e aterrorizou o país de 1930 a 1961.

Como de costume na América Central, os haitianos foram vítimas de golpes patrocinados por comerciantes europeus e americanos, que bancavam o aventureiro político da ocasião a fim de ganhar uns trocados.

Invasões americanas também foram normais na região. O Haiti foi ocupado pelos Estados Unidos de 1915 a 1934, que tomaram conta das finanças do país até 1941. Mas esse foi um período de rara estabilidade no Haiti. Os americanos fizeram obras de infraestrutura e puseram ordem na economia.

Os haitianos mais educados começaram a fugir em meados do século XX. Segundo o dado mais recente do Banco Mundial, 140 mil pessoas deixaram o país em 2005 (os haitianos são 9,5 milhões).

A remessa de dinheiro dos expatriados equivale a 17% do PIB. A receita de impostos do governo é de 11% do PIB, mas o governo gasta o equivalente a cerca de 20% do PIB - doações internacionais etc. completam a diferença, segundo uma comissão conjunta do FMI e do governo haitiano.

Cerca de 55% da população vive com menos de 40 gourdes por dia, o equivalente a US$ 1 ou R$ 1,75. O quinto da população mais "rica" fica com 70% da renda; os 20% mais pobres, com 1,4%, uma das piores distribuições de renda do planeta (parecida com a do Brasil nos anos 1990).

Na década seguinte à queda dos Duvalier, o PIB per capita recuou 4,6% ao ano (1987-97). De 1997 a 2007, 1,3% ao ano. Os golpes e lutas entre 1987 e 2001 destroçaram o país. O embargo econômico de 1991 a 1995, imposto por EUA e ONU, acabou com quase todo o resto.

Para piorar, houve a alta do preços das commodities pré-crise. O Haiti importa 33% do valor do PIB, muita comida e petróleo. Exporta 12% do PIB. Cerca de 90% das exportações saem das maquiladoras, montadoras de manufaturas baratas em zonas francas, as mesmas empresas que foram trucidadas na crise do embargo dos anos 1990. Quatro furacões em 2008 completaram o estrago. O Haiti quase não existe.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Aloisio Milani


Haiti e o “estado de sítio” permanente. Não foi só ontem, não é só hoje. O Haiti vive um “estado de sítio” constante


Aloisio Milani é jornalista e assina um blog especializado em Haiti
Fonte: Brasil de Fato


Não foi só ontem, não é só hoje. O Haiti vive um “estado de sítio” constante. Quando não “treme” pela pobreza extrema – aqui entendida como desemprego epidêmico, fome crônica e a ausência de saúde e educação públicas -, é a vez das crises políticas e das tragédias naturais: tempestades tropicais, enchentes e furacões. Para dar um exemplo, quatro furacões deixaram cerca de mil mortos e 18 mil desabrigados em 2008. Corpos apodreciam na água das enchentes, não havia estrutura de socorro, o dinheiro e a ajuda humanitária chegavam lentamente. Há pouco, semanas atrás, acabou a temporada de furacões na América Central e, agora, o país se debate com um surpreendente terremoto de magnitude inédita nos últimos 200 anos.

Aliás, dois séculos atrás é aproximadamente o tempo histórico da vitória da única rebelião de escravos que levou à independência de uma nação desde a Antiguidade clássica. Um passado glorioso que vem sendo ofuscado por um presente de pobreza e crises. Desde a deposição do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, em 2004, a situação política oscilava entre momentos de paz, violência e fragilidade política. Mas a pobreza resistia. E a cada fenômeno natural, o espectro da destruição pairava sobre eles. A diferença é que desta vez, a tragédia une brasileiros e haitianos. Haverá mais confirmações de mortes entre os brasileiros capacetes azuis e diplomatas da ONU. A médica Zilda Arns teve ironicamente sua vida ligada ao país do continente americano com um dos piores índices de desnutrição e mortalidade infantil, onde queria implantar as bases da Pastoral da Criança.

O impacto do terremoto sobre o Haiti é brutal porque seu epicentro foi muito próximo de uma das regiões mais populosas, a capital Porto Príncipe. O país tem um território comparável ao de Alagoas, com cerca de 8 milhões de pessoas. Mais ou menos 3 ou 4 milhões vivem só na capital, em favelas de tijolos frágeis, de estruturas baratas, improvisadas. Na cidade, onde os ricos moram nos morros e os pobres na parte plana próxima ao mar, o impacto foi maior em bairros com construções de mais de um piso. A região do Palácio do Governo, vizinha da favela de Bel Air, foi destruída. A situação se repete em bairros mais horizontais, como Carrefour, Delmas e Cité Militaire. Na região de Cité Soleil, de barracos de zinco e tijolos finos, os danos não foram menores.

O distrito de Petion-Ville, no alto da cidade, onde ficam as sedes das embaixadas e organizações internacionais, sofreu grande impacto. Até o Hotel Montana foi atingido, um quatro estrelas versão haitiana, onde morreu o general brasileiro Urano Bacellar em 2006. Passarão semanas para as contagens dos mortos e desaparecidos. O Palácio do Governo, que desmoronou quase completamente, era um centro político e uma espécie de residência do presidente. No hall revestido de mármore sob a cúpula central do palácio, ficavam as estátuas de Simon Bolívar e Alexandre Petion. Frente a frente. A poucos metros da vista ampla da planície da praça. Esses símbolos foram completamente soterrados no terremoto.

Um país imóvel

Vale lembrar que, em novembro de 2008, uma pequena tragédia se abateu sobre o distrito de Petion Ville. Ali, sem temporal, sem vento, sem terremoto, a escola primária La Promésse desabou. Simplesmente veio abaixo pela precariedade de sua construção. Matou cerca de 100 crianças e feriu outras 150. O presidente haitiano, René Préval, disse na época que a fragilidade e a debilidade do Estado permitia a existência de construções precárias e ocupações ilegais, o que aumenta a possibilidade de vítimas. O Haiti tentava reestruturar seu Estado com a ajuda da quinta missão de paz da ONU nas últimas décadas. Mas ainda não havia um sistema de defesa civil estruturado, o que vai piorar a situação agora no socorro e atendimento a feridos. Quem não morreu diretamente pelo terremoto corre o risco de morrer por falta de estrutura de bombeiros ou atendimento médico.

Porto Príncipe já possuía uma infra-estrutura precária. Energia elétrica era luxo. Quem tinha convivia com apagões diários. A distribuição de água era feita, muitas vezes, por caminhões-pipa e fontes de água. Em bairros inteiros, a população se abastecia com baldes. Cité Soleil, a maior favela da cidade, era um exemplo. Agora, com o terremoto, a estrutura de abastecimento de água também sofreu. Num país que importava mais da metade da comida para manter as necessidades básicas da alimentação de seu povo, a água voltou a ser escassa. Todo o combustível do país também é importado. Dificilmente um plano de emergência, com o envio de maquinário pesado, conseguirá colocar em prática um mutirão de salvamento em grande escala para evitar mais mortes. O país está quase imóvel dois dias após o abalo principal.

A ajuda da ONU e a dívida externa

O número de mortos – ouve-se agora uma estimativa do governo haitiano de cerca de 50 mil – seria pelo menos cinco vezes maior do que o total de brasileiros enviados à missão de paz das Nações Unidas nos últimos seis anos. O terremoto deve aproximar mais Haiti e Brasil. Nos últimos tempos, nossos enlaces com o país caribenho aumentaram. Além dos capacetes azuis, ativistas, acadêmicos e religiosos procuravam estreitar relações com o povo. A estrutura da ONU no país sempre esteve longe de mudar o perfil da pobreza e das necessidades básicas para o país se reerguer: trabalho, saúde, educação. Iniciativas como a da médica Zilda Arns eram um pedido de entidades haitianas desde a chegada da ONU por lá, há seis anos. Envio de médicos, engenheiros agrônomos, professores, gestores públicos, entre outros. Tudo que vai faltar em dobro agora.

Do fim da vida de Zilda Arns no Haiti, cabe ainda um recado, acredito. A mudança no perfil da missão da ONU no Haiti é urgente mais uma vez. O estágio relacionado à segurança pública pode ter sido questionável, mas há tempos foi superado. Temos a oportunidade agora de ajudar com menos tropas militares e mais parcerias para a reconstrução e desenvolvimento do Haiti. A começar pelo perdão da dívida externa de cerca de 2 bilhões de dólares, uma porcentagem ínfima na comparação com os rios de dinheiro que os países ricos gastaram para socorrer o sistema financeiro internacional da gana de seus próprios especuladores.

Dra. Zilda Arns - Homenagem de Mauricio de Sousa


quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Hildegard Angel


Artigo de Hildegard Angel publicado no Jornal do Brasil (08/01/2010).
Fonte: Marco Weissheimer - Política, Economia, Cultura Et Outras Amenidades




CHEGA UMA hora em que não aguento, tenho que falar. Já que quem deveria falar não fala, ou porque se cansou do combate ou porque acomodou-se em seus novos empregos… POIS BEM: é impressionante o tiroteio de emails de gente da direita truculenta, aqueles que se pensava haviam arquivado os coturnos, que despertam como se fossem zumbis ressuscitados e vêm assombrar nosso cotidiano com elogios à ação sanguinária dos ditadores, os quais torturaram e mataram nos mais sórdidos porões deste país, com instrumentos de tortura terríveis, barbaridades medievais, e trucidaram nossos jovens idealistas, na grande maioria universitários da classe média, que se viram impedidos, pelos algozes, de prosseguir seus estudos nas escolas, onde a liberdade de pensamento não era permitida, que dirá a de expressão!… E AGORA, com o fato distante, essas múmias do passado tentam distorcer os cenários e os personagens daquela época, repetindo a mesma ladainha de demonização dos jovens de esquerda, classificando-os de “terroristas”, quando na verdade eram eles que aterrorizavam, torturavam, detinham o canhão, o poder, e podiam nos calar, proibir, censurar, matar, esquartejar e jogar nossos corpos, de nossos filhos, pais, irmãos, no mar… E MENTIAM, mentiam, mentiam, não revelando às mães sofredoras o paradeiro de seus filhos ou ao menos de seus corpos.

Que história triste! Eles podiam tudo, e quem quisesse reclamar que fosse se queixar ao bispo… ELES TINHAM para eles as melhores diretorias, nas empresas públicas e privadas, eram praticamente uma imposição ao empresariado — coitado de quem não contratasse um apadrinhado — e data daquela época esse comportamento distorcido e desonesto, de desvios e privilégios, que levou nosso país ao grau de corrupção que, só agora, com liberdade da imprensa, para denunciar, da Polícia Federal, para apurar, do MP, para agir, nos é revelado…

DE MODO cínico, querem comparar a luta democrática com a repressão, em que liberdade era nenhuma, e tentam impedir a instalação da Comissão da Verdade e Justiça, com a conivência dos aliados de sempre… QUEREM COMPARAR aqueles que perderam tudo — os entes que mais amavam, a saúde, os empregos, a liberdade e, alguns, até o país — com aqueles que massacraram e jamais responderam por isso.

Um país com impunidade gera impunidade. A história estará sempre fadada a se repetir, num país permissivo, que não exerce sua indignação, não separa o trigo do joio… TODOS OS países no mundo onde houve ditadura constituíram comissões da Verdade e Justiça. De Portugal à Espanha, passando por Chile, Grécia, Uruguai, Bolívia e Argentina, que agora abre seus arquivos daqueles tempos, o que a gente, aqui, até hoje não conseguiu fazer… QUE MEDO é esse de se revelar a Verdade? Medo de não poderem mais olhar para seus próprios filhos? Ou medo de não poderem mais se olhar no espelho?…

sábado, 9 de janeiro de 2010

Entrevista - Plinio Arruda Sampaio


''O Psol é um partido socialista e a Marina não é socialista''.

"Ela demorou demais e teve que engolir coisas que não são aceitáveis: ela assinou o decreto dos transgênicos, assinou o decreto que libera as florestas, ela foi contra o Dom Cappio, ela apoia a transposição do São Francisco. Como é que nós podemos ter uma candidata que tem pontos contrários ao nosso programa?" A afirmação é de Plínio Arruda Sampaio (foto) sobre Marina Silva em entrevista a Hamilton Octavio de Souza e Tatiana Merlino e publicada pelo sítio da Caros Amigos, janeiro 2010. Plínio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) é pré-candidato à presidência da República pelo Psol. Fonte: UNISINOS

Qual a importância do Psol se lançar com uma candidatura própria?

A importância está estreitamente relacionada com o objetivo da burguesia em relação a esse processo eleitoral. Há um script montado para essa campanha, para fazê-la de uma maneira suave, morna, fazer da discussão apenas uma coisa técnica e fugir dos verdadeiros problemas e das verdadeiras soluções. Há um processo de distorção do processo eleitoral para que ele não debata nada. E é fundamental desfazer essa farsa, é fundamental que exista uma voz capaz de dizer: “olha, isto aí foge da realidade, não é uma visão real do que está acontecendo no Brasil”. Qual é a dificuldade e a necessidade disso? É que toda a realidade social tem dois planos. Um plano é o da superfície dos eventos, onde estão acontecendo as coisas. E há um plano embaixo, onde estão os processos, as tendências. Esse não se vê sem instrumentos de análise.

Em cima, na superfície, as coisas melhoraram para o homem simples do povo porque o Lula é menos perverso do que o Fernando Henrique, ele tira menos dos pobres. E porque a conjuntura externa favorece a entrada de capitais aqui. Então, como há uma entrada enorme de capitais, pode se remunerar a burguesia com tudo que ela quer, e sobrar umas migalhas para soltar para o povo. As Casas Bahia estão vendendo, tem lan house em tudo quanto é lugar da periferia, o pobre está começando a ter automóvel porque há uma produção brutal da indústria automobilística e os usados caem na mão dos mais pobres por um preço razoável. Mas o ritmo da melhoria é tão lento que não sei quando vamos deixar de ter pobre na rua. E, dados os processos que acontecem embaixo, provavelmente essa melhoria acaba logo adiante. O primeiro problema econômico que tiver, essa melhoria vai para o buraco.

O que está acontecendo embaixo é grave, porque o preço dessa aparente abonança superficial é a entrega do país, o aprofundamento de processos gravíssimos, como a educação, que está sucateada, a escola que não ensina, a saúde está uma desgraça. O quadro social está ficando impossível. Há zonas do Rio de Janeiro em que não há mais soberania do Estado brasileiro, é o bandido que manda lá. Na periferia daqui de São Paulo é a mesma coisa. Há um processo perverso embaixo, que afeta a moral do povo, essa ideia de que não tem solução. É preciso que isso venha à tona. A campanha é exatamente para isso, para denunciar essa farsa e propor soluções reais. Essa é uma campanha socialista na medida em que aponta as soluções reais, com um programa anti-capitalista. São questões que geram indagações sobre a viabilidade do capitalismo e colocam concretamente a questão do socialismo.

E quais seriam as consequências para o partido caso o Psol apoiasse a Marina Silva?

Seria a negação do Psol, porque esse é um partido socialista e a Marina não é socialista. O PV é um partido do governo. A Marina cria uma dificuldade enorme de palanque para a nossa gente. Como é que você sobe num palanque junto com um cidadão que apoia um governo que nós combatemos dia e noite? O problema da Marina é o seguinte: ela levantou uma questão muito importante, tornou-se um símbolo disso, mas ela perdeu o timing da demissão. O político precisa saber assumir um cargo e se demitir desse cargo. Ela demorou demais e teve que engolir coisas que não são aceitáveis: ela assinou o decreto dos transgênicos, assinou o decreto que libera as florestas, ela foi contra o Dom Cappio, ela apoia a transposição do São Francisco. A contrariedade à transposição do rio São Francisco é ponto do nosso programa. Como é que nós podemos ter uma candidata que tem pontos contrários ao nosso programa? Por isso há uma reação muito forte na base do partido contra a candidatura Marina. E nessas alturas, dificilmente ela passará.

E por que o senhor é o nome ideal para candidato do partido?

Não sou eu quem acha, acharam. Vários grupos vieram me procurar, sobretudo por algumas características: eu tenho uma linha de coerência há muito tempo sobre essas coisas todas. Segundo, eu tenho uma possibilidade de unidade da esquerda muito grande porque tenho um diálogo muito bom com as outras forças socialistas. Aí eu fui procurado por pessoas do Psol e autorizei a usar o meu nome. Eu tenho uma história em todos esses campos, como na reforma agrária. Eu posso, tenho condições objetivas para fazer essa campanha de denúncia da farsa e de proposição do avanço. É uma campanha para o futuro. Não é uma campanha saudosista nem moralista. É uma campanha ideológica no sentido bom da palavra, de que ela se funda em valores do socialismo, mas é concreta para colocar os problemas e as soluções de hoje. Por exemplo, o nosso programa diz “reforma agrária anti-latifundiária”. É uma formulação genérica. O que eu penso que deveríamos fazer na nossa campanha é pegar essa formulação genérica e ir falar com o MST. “Como é que vocês estão vendo a questão agrária, e qual é a solução que vocês vêm?”. São várias, tem que melhorar o crédito, aumentar o programa de compras antecipadas, melhorar assistência técnica e dar uma forte radicalizada, o movimento social, não nós. O MST junto com a CNBB e vários movimentos do campo estão fazendo uma campanha para que ninguém possa ter mais do que 1500 hectares de terra no Brasil. Isso é revolucionário, mas não tem nada de socialista, isso é capitalismo. Só que é anti-capitalista no sentido de que o capitalismo não suporta isso. Esse é o tipo de trabalho que temos que fazer para apresentar o programa do partido.

Como tem sido o apoio interno dentro do Psol à sua pré-candidatura?

O Psol tem umas três correntes majoritárias que são muito fortes e uma série de outras correntes pequenas. As menores praticamente estão todas comigo, e as maiores estão divididas. As cúpulas favorecem uma candidatura mais ampla e as bases querem uma candidatura mais nítida. Então, nesse momento, o grande problema é discutir qual é a tática. Acho até que eles tem certa razão, sem dúvida o partido precisa eleger deputados para que o povo tenha uma voz no Congresso e para ter um mínimo de representação institucional necessária para existir. É legítima a preocupação, mas é equivocada no seguinte sentido: este é um valor, mas há outro valor, que é a imagem do partido. Que é a esperança que o partido traz. Se ele se coliga com figuras que o povo está rejeitando, vão perguntar: “mas então, que partido é esse?”. Eu acho que esse é o primeiro equívoco. O segundo é: esta ideia de que uma campanha mais nítida não traz votos é equivocada. Você pode ter uma campanha nítida e eleger representantes, e essa é uma das minhas preocupações. Eu organizarei a a campanha não só para dar esse recado maior, mais amplo, mas também para favorecer a eleição de deputados, mas sem abrir mão da nitidez da imagem do partido, da nitidez do programa.

Se o Psol se diluir agora não haverá nenhuma força socialista na disputa?

Nada, além do que isso provocará uma dispersão da esquerda e aí três candidatinhos com muito pouco voto não resolvem nada.

Quais seriam as alianças que estariam dentro desse campo e que permitiriam uma disputa sem essa perda de imagem?

Esse é um ponto a favor da minha pré candidatura. É a unidade das esquerdas. Se eu for candidato, é quase certo que marcharemos unidos os três, Psol, PCB e PSTU. Eles já lançaram candidatos, mas isso é normal e também não é uma coisa final. Uma vez acertada a minha candidatura, vamos fazer a unidade da esquerda. Se dirá que os três são fracos, mas dispersos são mais fracos, e juntos têm uma certa sinergia. E depois tem os movimentos populares, que também estão divididos. A divisão é um traço da época, que é de incerteza muito forte. Todo mundo está inseguro, o pobre, a classe média e o rico. Na era de incerteza é normal que um grupo vá para cá e o outro vá para lá...É normal que MST, CPT, MAB, MPA estejam divididos. Mas eu tenho a impressão que se tivermos uma candidatura unitária da esquerda, no primeiro turno esse grupo estará fechado conosco. No segundo turno, provavelmente tomarão posições eventualmente distintas. Isso se não formos para o segundo turno, o que é bem provável.

O discurso do PT dessa ampla frente que está no governo é o da luta contra o retrocesso, representado pelo PSDB, pelo DEM, o grupo que já esteve no governo e já demonstrou ser pior do que esse. Como entrar no contraponto desse discurso, que é muito forte?

É o discurso do mau menor, que é um discurso circular. Você não vai adiante de jeito nenhum com esse discurso, apenas reduz a perda, coisa que também tem um fundamento sociológico profundo. Toda vez que uma nação sofre um golpe muito grande, para a geração seguinte é terrível. Na primeira guerra na França, a geração que se seguiu não tinha filhos. Ela se fechou, não procriava de medo do filho ir para a guerra. A geração espanhola que viveu a guerra da Espanha, enquanto o Franco não morria, morria de medo, não fazia nada. É preciso apontar um futuro, trazer ânimo. Por isso que a campanha nítida é importante. Ela é uma campanha que pode ser feita com vistas a uma afirmação muito forte de coragem, coerência e de apontar um futuro mesmo, dizer: “não fiquem com essa coisinha de reduzir o prejuízo. Pensa grande, vai para a frente”. É uma campanha que pode atingir muito a juventude, pela sua própria idade, configuração, ela vê o futuro. Essa é a estratégia que eu pretendo usar se for candidato.

E quais seriam as principais diferenças da política programática do Psol com uma candidatura única e do Psol apoiando a Marina?

Como é que nós vamos falar no transgênico, como é que vamos falar na transposição? Ela assinou tudo. Tudo que nós contestamos ela assinou. Então é uma dificuldade enorme e por isso que a base do partido está dizendo “não, isso não é possível”. Somos um partido socialista. A base do partido quer a afirmação do nosso projeto. E essa seria uma campanha de um outro projeto, que não é o nosso.

Como o senhor avalia o Psol hoje, depois de sete anos de existência?

O Psol é uma força. Há no país uma porcentagem relativamente pequena de pessoas que não aceitam o que está acontecendo, com valores distintos, mas de maneira geral, com valores sociais, coletivos, visão de nação, de coesão nacional. Em várias camadas sociais. Esse pessoal é naturalmente Psol. Porque os outros dois partidos à esquerda tem uma penetração, mas uma forma de atuar muito mais estrita, de modo que caminham mais lentamente. O Psol é um pouco o desaguadouro, naturalmente. Mas o Psol precisa – e essa campanha é importantíssima para isso – nuclear e organizar esses setores dispersos para começar uma caminhada. Ninguém tem grandes ilusões de que nós temos condições de muito sucesso a curto prazo. Isso é uma ilusão. A derrota sofrida pelo povo foi imensa. Nós estamos juntando os cacos para recomeçar.

Um apoio à candidatura da Marina, que está num partido que não é de esquerda não seria uma derrota para um partido que se afirma socialista?

É isso que eu estou dizendo para o pessoal. Isso não é uma avanço, é uma acomodação. E o partido socialista não se acomoda. A característica do socialista é a não acomodação a qualquer coisa.

É pegar o ônibus errado...

Exatamente, vai para outro bairro. A ideia é essa, fundamentalmente. Chegar, ouvir os movimentos populares, fazer um programa sólido, é um programa ainda com base na sociedade de produção de mercadorias, porém esticando essa realidade e criando uma dinâmica de transformação social.

Qual é o seu calendário para os próximos meses?

Eu vou correr o país, é uma pré candidatura. O país todo está me chamando para fazer reuniões, pequenos núcleos que nós temos. Segundo, estou montando um forte esquema de internet porque nessa campanha a Internet vai dar um grande passo.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Entrevista - Mauro Magatti


O capitalismo tecno-niilista

Uma liberdade ilimitada, absoluta, indiferente a normas e a freios. Uma liberdade muitas vezes aparente, quebrada, que limita os homens, mais do que estimulá-los a se realizar, que os isola, mais do que os ajuda a criar solidariedade. É a liberdade do capitalismo tecno-niilista, o mundo marcado pela racionalidade científica e vontade de poder – econômico, político, existencial – relatado por Mauro Magatti em "Libertà immaginaria. Le illusioni del capitalismo tecno-nichilista" (Editora Feltrinelli, 432 p.). A reportagem é de Roberto Festa, publicada no jornal La Repubblica, 06-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Mauro Magatti, como o capitalismo tecno-niilista se afirma?

As duas alas desse capitalismo são historicamente o neoliberalismo thatcheriano, reaganiano, que se afirma no início dos anos 80, combinado com a herança dos movimentos juvenis e libertários dos anos 60, marcados por fortes estímulos antiautoritários, pela ideia de que existe um espaço de subjetividade que deve ser protegido e ampliado o máximo possível. Esses mundos criticam o equilíbrio institucional e econômico que havia se imposto no segundo pós-guerra. Afirmam a ideia de que todos são capazes de dar um sentido individual à própria vida, que todos podem ser livres por conta própria.

Por que o capitalismo, que, a partir do segundo pós-guerra havia oferecido uma certa estabilidade de figuras sociais e valores, tem a necessidade de, em um certo ponto, colocar o acento no indivíduo?

Porque é um capitalismo que evade do quadro das fronteiras nacionais, que se dá objetivos de crescimento globais, supranacionais: em termos de descoberta de matérias-primas, de organização da produção, de busca de novos mercados. O capitalismo tecno-niilista leva a uma redução da integração social, em base nacional. Ele acredita que os significados podem ser alocados apenas no plano subjetivo.

O sujeito social que deriva daí é muito mais isolado, fragmentado, descolado do contexto?

Mais do que a imagem da solidão, usaria a da desobediência. As sociedades avançadas criaram um sujeito social que se assemelha sempre mais ao adolescente, que sai de casa e vive a embriaguez de estar longe do olhar opressivo dos pais. Como o adolescente, o cidadão do Ocidente democrático também acredita que liberdade significa fazer aquilo em que se acredita. O problema não é voltar à fase anterior, a da autoridade paterna. Mas conseguir gerir a liberdade sabendo que há limites, sem os quais a liberdade é destrutiva.

Todos nós queremos ser mais livres. Conseguiremos?

Não me parece. A nossa liberdade se tornou abstrata, indiferente ao fato de que a liberdade é sempre historicamente fundada, que a liberdade nunca está separada da oportunidade, da ética da responsabilidade, do respeito às liberdades dos outros. Acreditamos ser mais livres. O título do meu livro, Liberdade imaginária, permite que muitas dúvidas surjam.

Pode dar um exemplo?

O trabalho precário. Há anos, para o meu trabalho de sociólogo, realizei uma pesquisa entre os precaristas italianos. Partes inteiras desse mundo eram subjugadas pela ideia de que o trabalho flexível não era tão mal assim, que aumentava a liberdade individual, a possibilidade de mudar e de escolher. Porém, não acho que a flexibilidade tenha aumentado as oportunidades. O fato é que a liberdade, despojada das suas características individuais, históricas, se tornou o discurso fundador das nossas sociedades. Quem controla esse imaginário vence.

A direita o controla?

Bem, sempre me pareceu muito significativo que Silvio Berlusconi tenha escolhido o termo "liberdade" para marcar o seu povo. Administrar o discurso sobre a liberdade significa gerir a hegemonia.

Quais grupos sociais sentiram mais esse duplo processo: exaltação – e esvaziamento – do conceito de liberdade?

Seguramente, a classe média-baixa. Os recursos subjetivos, culturais, necessários para navegar na época do capitalismo tecno-niilista são enormemente superiores às que devem ser colocadas efetivamente à disposição. Daí surgem os êxitos neomágicos que essa cultura tem sobre a classe média-baixa. A ideia é que a liberdade pode se realizar por meio de eventos extraordinários, fora de todo controle: a vitória em um quis, como no filme "The Millionaire", ou a entrada em um mundo dourado – como o dos condomínios e festas dos poderosos – que te fazem dar um salto imediato, econômico e social.

Que tipo de liberdade é essa que pedem hoje no Irã?

A minha análise, obviamente, se refere ao mundo ocidental. Daquilo que posso ler e ver na televisão, me parece que no Irã também está emergindo um modelo já experimentado. Da mesma forma que as sociedades crescem – sob o perfil institucional, econômico, da educação –, surge também uma instância subjetivista. O indivíduo exige um espaço de liberdade mais amplo, as instituições autoritariamente construídas vão se chocar contra a tomada de consciência do indivíduo.

A crise financeira dos últimos meses é produto dessa cultura da liberdade?

As finanças internacionais, nestes anos, foi guiada sobretudo por um conceito: fazer tudo o que for possível, tecnicamente, sem levar em conta toda consideração de sustentabilidade. Também aqui a vontade de poder, evocada como verdadeira energia que sustenta o crescimento, levou a riscos impressionantes e à subavaliação de regras e limites.

A crise encerra o ciclo do capitalismo tecno-niilista?

Sim, acho que há sinais disso. A eleição de Barack Obama é um deles. Obama faz aos americanos um discurso de crescimento ordenado, de desenvolvimento duradouro e sustentável. Ele imagina poder unir a ideia da produção, do desenvolvimento, a objetivos dotados de sentido. A pergunta é: somos capazes de colocar sob controle a nossa vontade de poder, técnica e existencial, orientando-a a alguns grandes objetivos coletivos?

O senhor tem uma resposta?

As democracias têm grandes recursos. Mas é um processo longo e complicado.

Há alternativas?

Bem, há quem defenda que a crise destes meses não se assemelham à de 1929, mas sim à de 1907, que desembocou na Primeira Guerra Mundial. A desembocadura do capitalismo tecno-niilista poderia ser um grande conflito internacional. A vontade de poder, o mito da liberdade absoluta, criou opiniões públicas famélicas, incapazes de qualquer tipo de autolimitação. Muitas vezes, quando você não consegue mais sustentar o crescimento interno, você se une a alguém no exterior.

Francesco Antonelli


Tecno-niilistas: na prisão do princípio do prazer

Uma liberdade que tem o sabor agridoce da coação ao consumo. Um longo e comprometido ensaio de Mauro Magatti (foto) repropõe a secular e às vezes conflituosa relação entre a técnica e a formação das subjetividades coletivas à luz de um capitalismo que elevou a comunicação a "medium" das relações sociais A reportagem é de Francesco Antonelli, publicada no jornal Il Manifesto, 29-12-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Uma das perguntas mais frequentes que nos colocamos sobre o celular ou sobre o computador conectado à Internet é se a contínua acessibilidade que permitem não transformou a vida em uma contínua obsessão. Da mesma forma, a todos nós, ao final de uma longa jornada de trabalho, ocorrerá que nos sentiremos engrenagens de um grande mecanismo que não somos capazes de controlar e que condiciona irremediavelmente a nossa vida.

"Técnica" e "Sujeito": toda a vez que nos encontramos em situações semelhantes às descritas, ressurge a secular questão das relações entre essas dimensões constitutivas da modernidade. Além de toda banalização exemplificativa, a questão é verdadeiramente central. Para esclarecer, enquanto do lado da "Técnica" encontramos a ciência experimental, a tecnologia e a racionalidade instrumental da qual a burocracia, por exemplo, é filho, do lado do "Sujeito" traçamos a liberdade, a igualdade e a racionalidade substancial da qual derivam, de 1789 em diante, as grandes lutas pela emancipação de homens e mulheres.

O positivismo, ideologia oficial do Ocidente, retraçou no desenvolvimento da técnica o melhor modo para promover a emancipação, enquanto Marx, Nietzsche e Freud ("os três mestres da suspeita") contribuíram para difundir a ideia de uma inconciliação crescente entre "Técnica" e afirmação do "Sujeito". O trágico da modernidade e da pós-modernidade reside na convivência dessas posições dentro de uma mesma cultura e de uma mesma sociedade que é incapaz de controlar e conciliar as forças desencadeadas pela "Técnica" e pela emancipação subjetiva.

A luta contra o sistema

O longo e inteligente texto de Mauro Magatti "Libertà immaginaria. Le illusioni del capitalismo tecno-nichilista" (Ed. Feltrinelli, 432 páginas) se insere no interior dessa controvérsia de vocação "universalista" que investe tanto sobre a nossa vida cotidiana ("o celular melhora a minha vida?"), quanto a "grande história" (o movimento operário contra a reificação da fábrica, do escritório e, hoje, do call center). Na realidade, o livro de Magatti parte de duas releituras complementares da relação Técnica/Sujeito: a primeira opõe a utilização massificante da tecnologia própria do capitalismo social (fordismo) ao uso microfísico, personalizado e hermético da Técnica, próprio do atual modelo de desenvolvimento.

A homologação dos gostos é substituída pelas obsessões e pelas mutações antropológicas geradas por tecnologias personalizáveis e por sistemas organizativos, institucionais, científicos e culturais que funcionam por inércia, sem aspirar a uma meta ideal mais alta a não ser o próprio desenvolvimento e a apropriação total da vida humana (biopolítica). A segunda, mais original, baseia-se na leitura dos movimentos sociais dos anos 60 feita por Berman, Luc Boltanski, Manuel Castells e Pekka Himannen: especialmente nos Estados Unidos, as instâncias libertárias contribuíram para demolir a sociedade massificada própria do fordismo, relançando a centralidade da autodeterminação individual.

Individualismo e massificação

Da luta contra o autoritarismo, surgiu assim um sujeito que imagina a sua própria liberdade como gozo total e libertação dos laços mais fortes, um imaginário difundido que, desde o fim dos anos 70, o neoliberalismo soube formalizar politicamente, e o capitalismo, subsumir, relançando sobre novos fundamentos o seu próprio desenvolvimento (flexibilidade do trabalho e das organizações, pós-fordismo, consumos personalizados, valorização do imaterial).

O capitalismo tecno-niilista, etiqueta com a qual Magatti designa o modelo atual, baseia-se justamente na insensatez de uma técnica onipotente que encontra uma multidão de subjetividades hiperestimuladas no seu hedonismo. "Vontade de poder" e "desejo" são as duas faces desse niilismo que o sistema capitalista global produz para se alimentar: a crítica se transforma em mecanismo de reproposição; a libertação sexual e dos costumes, em consumismo personalizado; as instituições, em sistemas voltados a tornar as pessoas eficientes e eficazes; a ética da estética ("farei de minha vida uma obra de arte") substitiu a ética do dever.

Na análise de Magatti, a mudança cultural, sob forma de crítica, precedeu a mudança material e institucional. Se, por meio de um gigantesco efeito imprevisto, também o favoreceu, se até reforçou aquele capitalismo objeto da crítica do 68, isso se deveu à capacidade do sistema de dominar as instâncias de liberdade que haviam surgido precedentemente, por meio de um poderoso desenvolvimento da técnica (particularmente da comunicação).

Esse mundo, que como uma massa gosmenta parece quase absorver e abranger tudo, é só aparentemente um hegeliano "fim da História": não tanto porque os modelos de subjetividade presente são um simulacro vazio que não permite a humanidade das pessoas. Mas sim porque o niilismo do capitalismo contemporâneo, com a sua centralidade exasperada do "princípio do prazer", não consegue se desfazer completamente do "princípio de realidade" em três frentes fundamentais da experiência humana: o sofrimento, a importância dos laços sociais, o desejo de reencontrar um sentido mais profundo por trás da vida das pessoas e o desenvolvimento das sociedades. Sobre esses três tópicos indomáveis do poder do sistema, é possível e obrigatório agir para reconstruir uma coletividade mais humanizada e com maiores oportunidades de emancipação.

Mostrando um extraordinário realismo que o aproxima da sensibilidade expressada por Alain Touraine nos seus últimos trabalhos, Mauro Magatti reconhece que o imaginário da liberdade, os percursos de autodeterminação como fundamento da subjetividade contemporânea e, portanto, a ruptura definitiva da ideia do século XVIII de "Sociedade" ordenada não são processos reversíveis. É preciso redefini-los, valorizando os elementos positivos que eles contêm: a partir dessa nova mudança cultural, será possível promover também uma mudança do sistema econômico e institucional, favorecendo assim novos percursos de autêntica emancipação subjetiva que reinvestem o sentido da técnica.

A fé na liberdade

Trata-se, portanto, de uma chave de leitura e de uma intervenção sobre a realidade "culturalista", coerente com a análise desenvolvida, que encontra as suas condições de aplicabilidade neste momento de crise, mas que, porém, não parece plenamente compartilhável: a centralidade do conflito e dos movimentos, a recíproca influência entre eles e a ação das classes dirigentes, dos partidos, é deixada totalmente de lado. Para Magatti, de fato, intelectual de primeira linha daquela cultura católica mais atenta às instâncias de justiça social, os atores da mudança não podem ser mais os habitantes da "sociedade político-partidária", com a sua dureza, rigidez e incorporação no sistema. São, pelo contrário, os pertencentes à "sociedade civil instituinte", isto é, "todos os sujeitos que pensam a sua própria liberdade em relação a outros".

A partir dessa dimensão, é possível esclarecer aquela que Magatti define como a "ação deponente", novo percurso de reproposta e redefinição de uma subjetividade centrada na liberdade. A ação deponente é, de fato, testemunho e momento de mudança ao mesmo tempo, gradual nos modos de construção e radical nos conteúdos. Essa modalidade de ação, coletiva e individual ao mesmo tempo, deve mostrar como uma liberdade mais humanizante é possível por meio de uma relançamento da responsabilidade, da generatividade, da socialidade e de um sentido mais profundo a ser atribuído às próprias ações, por meio do fato de ter fé.

O empenho na construção de um mundo que não religue a segunda modernidade à epifania de uma técnica desumanizante se torna, portanto, o campo sobre o qual, defende Mauro Magatti, podem se encontrar, tanto hoje quando ontem, todas as culturas, laicas, católicas e socialistas, que colocam no seu centro a emancipação (global) das subjetividades sociais. Motivo suficiente para meditar longamente sobre o trabalho do estudioso de Milão.

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