terça-feira, 29 de junho de 2010

Flávio Aguiar

O Brasil é uma pedra no sapato


O Brasil passou, de repente, a ser uma pedra no sapato da União Européia. A pergunta mais patética formulada a Dilma foi: “como e por que o Brasil deu um reajuste de 7,7% aos aposentados?”. Isso vai na contramão de tudo o que está sendo programado e feito pelos governos europeus.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
Fonte: Carta Maior

Dilma Rousseff veio à Europa, passou por quatro países, alguns primeiros-ministros, e encontrou o que veio buscar: reconhecimento internacional. E mais: demonstração de que é capaz de viajar sem Lula – em todos os sentidos que a palavra viajar possa ter.

Mas colheu – e curiosamente plantou, porque colheu – mais.

Em primeiro lugar, colheu alguns epítetos (desculpem o palavrão antigo, mas cheio de charme) curiosos: “Dama de Ferro” (antes expressão reservada a Margareth Thatcher), “Delfim de Lula”, por exemplo.

Em segundo lugar, colheu uma impressão do Brasil, vigente aqui no Velho Mundo, muito peculiar, neste preciso momento em que a Zona do Euro atravessa uma turbulência sem par na história recente da Europa, pelo menos desde o fim da Segunda Guerra.

O Brasil passou, de repente, a ser uma pedra no sapato da União Européia. A pergunta mais patética formulada a Dilma foi: “como, e por que o Brasil deu um reajuste de 7,7% aos aposentados?”.

Isso vem na contramão de tudo o que está sendo programado e feito por aqui. Congelamentos de salário, ou diminuição, diminuição ou limitação de pensões e aposentadorias, suspensão de subsídios destinados ao mercado da classe média e dos mais pobres, fim de auxílios como os dados às mães solteiras, investimentos no pequeno e médio negócio: essa é a amarga receita que está sendo enfiada goela abaixo dos países – leia-se: os trabalhadores e aposentados – da U. E. Conhecemos a receita, fruto tanto do estouro do endividamento programado, como aconteceu na Ásia nos anos 90 e na América Latina no começo dos 80.

Ou seja: a presença do Brasil, que já provocava admiração ao ser um dos países que melhor saiu da crise recente, agora provoca perplexidade, inveja e um certo ar de ressentimento, além de se ter tornado um “mau exemplo”. O nosso país está se saindo bem exatamente por ter feito tudo ao contrário dessas receitas que há meio século, pelo menos, senão mais, são o vade-mecum das finanças internacionais.

Duas semanas atrás o economista Frederick Jaspersen, diretor para a América Latina no Institute of International Finance, uma organização criada em 1983 por 38 grandes bancos de atuação em escala mundial logo depois da crise da dívida latino-americana, previu a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de outubro (o otimismo/pessimismo fica por conta dele). E acrescentou que isso era péssimo, porque significava aumentos dos “gastos” públicos, política industrial centrada em estatais, pressão política sobre as agências regulatórias (ou desregulatórias, para nós). Ao contrário, disse ele, a vitória de Serra significaria endurecimento no controle fiscal (leia-se, menos investimentos sociais), ênfase no setor privado (leia-se, transferência de verbas públicas para as empresas privadas) e uma política tributária para encorajar investimentos privados (leia-se, carga tributária regressiva na renda e progressiva no consumo).

Em suma, o que os agentes das finanças internacionais temem não é apenas que um setor como o Brasil venha a permanecer fora de sua influência. É também que o exemplo comece a contaminar corações e mentes pelo mundo a fora.

O curioso é que o exemplo brasileiro não é, digamos, inteiramente original. Já na crise asiática dos anos 90, o país que melhor e mais rápido saiu dela foi a Malásia. Por quê? Porque recusou a ajuda do FMI e fez tudo ao contrário do que ele receitava: aumentou o investimento público, reforçou o mercado interno, evitou a recessão e, sobretudo, saiu de cabeça em pé. Ao contrário de Tailândia (país em que o custo político da crise e das medidas recessivas continua a se fazer sentir de modo dramático), mesmo a Coréia do Sul, Singapura e até o Japão.

Sinal de que temos muito o que aprender onde eles – os arautos das virtudes do mercado – nunca aprendem.


 

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Supachai Panitchpakdi

A geografia variável da crise mundial


Artigo de Supachai Panitchpakdi, Secretário Geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento.Panitchpakdi é ex-diretor geral da Organização Mundial do Comércio.
Tradução: Katarina Peixoto.
Fonte: Carta Maior



Há um ano a economia global chegava ao fundo da crise. Desde então, temos lido uma sucessão de opiniões otimistas nos meios de comunicação, acerca da força da recuperação, do ressurgimento dos mercados financeiros, da estabilização bancária e do retorno do crescimento econômico. Ao mesmo tempo, surgem dados que descrevem os elevados custos da crise, particularmente para os países em desenvolvimento: o incremento do desemprego, 53 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e mais de 100 milhões que se juntam às filas dos que passam fome no mundo. Por outro lado, a recuperação é geograficamente variável – conduzida principalmente pela demanda da Ásia – e segue sendo débil. Permanecem ameaças de bolhas financeiras e crises da dívida em várias regiões, assim como de baixo investimento e persistente desemprego.

A crise da dívida na Grécia, que está ameaçando toda a zona do euro, é indicativa da continuidade da intranqüilidade em várias partes da economia mundial. Nos países menos desenvolvidos e em outras nações em desenvolvimento os progressos no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio sofreram um retrocesso e agora é improvável que se alcancem as metas fixadas para 2015. Além disso, se houve algum impulso para uma reforma do governo econômico mundial, a realidade é que ele foi interrompido. Além de uma mais do que prudente regulação e de algumas ações com respeito aos lucros dos banqueiros, não foram registradas mudanças fundamentais no sistema econômico. Com efeito, algumas das mudanças mais significativas foram observadas no âmbito regional, incluindo o incremento da cooperação e da integração Sul-Sul.

É imperativo forjar uma economia global mais equilibrada e inclusiva por meio de dois canais: uma bem medida intervenção estatal nos mercados e na política estratégica nos âmbitos nacionais e uma tomada de decisões melhor coordenada e mais inclusiva no plano internacional. Esse enfoque serviria para colocar as pessoas e o desenvolvimento no centro da atividade econômica.

Para os países em desenvolvimento da África e de outros continentes, que têm recursos limitados para estabelecer pacotes de estímulo econômico ou para mobilizar recursos domésticos, é indispensável o apoio da comunidade internacional. Esse respaldo deveria incluir melhor acesso aos mercados multilaterais e regionais e apoio para fortalecer e diversificar as capacidades produtivas dos países em desenvolvimento. A Índia é uma das maiores economias emergentes que concederam a esses países o acesso ao mercado livre de impostos e quotas. O desafio para os países em desenvolvimento africanos é o de utilizar as preferências comerciais a sua disposição.

Mas o acesso ao mercado é só um elemento para uma bem sucedida estratégia de desenvolvimento desses países: construir uma forte base produtiva em matéria de agricultura, indústria e serviços que possam competir internacionalmente é outro ingrediente essencial. Para isso se requer tanto a ação dos governos como a ação multilateral. As indústrias internacionalmente competitivas não se estabelecem automaticamente por si mesmas, mas sim exigem investimentos governamentais que apóiem jovens indústrias estratégicas, assim como a intervenção dos governos para corrigir as imperfeições do mercado.

Como vimos durante a atual crise econômica, o mercado nem sempre fixa os preços adequados nem proporciona sempre às empresas igualdade de condições para competir. Portanto, os governos devem criar mercados justos através do uso prudente de políticas macroeconômicas, assim como de outros mecanismos reguladores e de leis e políticas que mantenham um ambiente saudável no qual possam florescer as empresas e o desenvolvimento econômico.

Inspirada por experiências bem sucedidas na América Latina, a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) decidiu estabelecer um programa regional sobre leis e políticas de competição denominado Africomp para apoiar as nações da África na formulação de leis e políticas sólidas neste tema. Com generosos recursos financeiros e humanos aportados por Noruega, Suécia, Suíça e Alemanha, a Unctad foi capaz de criar a Africomp para atender a cinco países africanos. Além disso, outros sócios cooperadores, incluindo a França e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), estão proporcionando fundos para os projetos de assistência técnica da Unctad aos países africanos. Conjuntamente, essas áreas de cooperação podem contribuir para um intercâmbio mais maduro e próspero entre países do Sul e seus sócios para o desenvolvimento.

Gilson Caroni Filho

A condenação do Cristo marxista


Gilson Caroni Filho é colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil.
Fonte: Carta Maior



Que estranhos desígnios inspiraram o "L'Osservatore Romano" a atacar,em editorial, o escritor José Saramago, falecido recentemente na Espanha? Chamá-lo de populista extremista, que se referia “com comodidade a um Deus no qual jamais acreditou por considerar-se todo poderoso e onisciente”, não revela apenas uma atitude fria e inflexível com um humanista ateu. Vai além. Reforça apreensões em relação aos objetivos políticos do Vaticano e suas consequências éticas.

Se a eleição do cardeal Ratzinger como supremo pontífice da Igreja Católica constituiu um acontecimento cuja gravidade poucos subestimaram, a superação integrista das contradições do Concílio Vaticano II já se delineava claramente no pontificado de seu antecessor, João Paulo II, quando as bases sociais da Teologia da Libertação foram firmemente atacadas.

Em 1983, ao visitar a América Central, suas homilias mantiveram fina sintonia com o projeto do governo Reagan para a região. Em Manágua, o papa não apenas não correspondeu às expectativas do povo nicaraguense de condenação clara às agressões incentivadas pelo imperialismo estadunidense, como também deu ênfase ao que mais dividia o governo sandinista e a hierarquia eclesiástica, à época: o da fidelidade dos sacerdotes e religiosas à igreja e à exigência de não participarem na responsabilidade da gestão governamental. Uma declaração de guerra aos partidários de um cristianismo progressista. Reafirmação classista de uma instituição multissecular.

Na Guatemala, um dos países em que a repressão dos governos militares fez mais vítimas entre os religiosos, João Paulo II não só visitou o presidente Ríos Montt, conhecido por ordenar massacres contra a oposição, como permitiu que o general lhe pedisse o afastamento de sacerdotes da política. Nos discursos papais não houve qualquer protesto contra fuzilamentos sistemáticos; apenas menções genéricas a Direitos Humanos. O Cristo do Vaticano, ao contrário do de Saramago, não deu ouvido a comunidades indígenas e camponesas tratadas como estrangeiras em seus próprios países.

Embora saiba muito bem que estão implícitas, na violência que se expande, a questão do poder, dos interesses econômicos nacionais e internacionais, além das considerações geopolíticas, o Jesus do "L'Osservatore" ignora que a promessa anunciada só se efetivará provocando uma transformação radical da condição social do homem. No livro de Saramago, Jesus, filho de José e amante de Madalena, vive a Paixão dos novos sujeitos. Seu sacrifício é a labuta das populações negras, o sofrimento das índias e o sangue camponês que jorra nos latifúndios.

A coexistência de um papado ultra-reacionário com governos de extrema-direita, como foi o de Bush, implica uma luta mundial de idéias que, não duvidem, será muito intensa. A crítica a uma religião de mercado, que exige o sacrifício de vidas humanas e o aniquilamento de natureza é a batalha da esquerda de nosso tempo.

Nessa guerra, ao contrário do que afirma o Vaticano, o Cristo de Saramago é aliado fundamental. Nas páginas do “Evangelho segundo Jesus Cristo", a grande heresia não está no fato de o personagem pedir perdão pelos pecados de Deus. O que o Vaticano não pode perdoar é a denúncia corajosa a um cristianismo imperial e colonialista. Um sistema de crenças que, para validar a opressão, necessita de uma metafísica negativa sobre os homens e sua história.

Saramago provocou a ira da cúpula da Igreja Católica ao reafirmar a modernidade e os valores de igualdade e liberdade. Foi isso que seu Cristo Marxista proclamou. Não de maneira idílica, mas de forma dialética, como reafirmação de vidas que devem transcender a si mesmas, eliminando práticas e relações que geram opressão e miséria.

[grifos do blog]

terça-feira, 15 de junho de 2010

Martin Granovsky

Um documentário sobre o coração


O artigo é de Martín Granovsky, publicado no Página 12. Tradução: Katarina Peixoto.
Fonte: Carta Maior



Há certas cenas graciosas, irônicas, grotescas e tristes, mas as melhores imagens de Capitalismo: uma história de amor são as que Michael Moore mostra, pisando a realidade. “Pisando” é literal. Em um trecho do documentário se vê ele com seu pai. Não estão em uma casa. Caminham por um descampado, os dois com seus gorros de beisebol. Michael alto e gordo. O senhor Moore, baixo e magro, com certo lamento no olhar quando observa que no descampado havia a fábrica de velas onde trabalhava. A fábrica vendia autopeças para a General Motors, coração econômico dos Estados Unidos nos anos 50 e 60.

Este parece ser o tema do novo documentário de Moore: o coração. Neste caso, o coração desolado pela perda daqueles Estados Unidos de Moore ainda criança. Como disse um desempregado da General Motors, “antes com um emprego na GM era possível sustentar uma família, incluindo quatro semanas de férias e uma visita a Nova York no verão, no meio”. E além disso “mamãe não precisava trabalhar”.

À primeira vista Capitalismo: uma história de amor parece uma crítica ao capitalismo. Errado. Aqui há zero de Marx. Não há uma interpretação da mais-valia. Nada de censurar o direito de propriedade de, por exemplo, uma grande fábrica. Antes, Moore rememora esses tempos. O seu filme tem um sabor surrealista, em variante documental. Se há uma crítica, parece-se à de Full Monty, a história dos metalúrgicos demitidos de Sheffield, que se convertem em strippers para sobreviver. É uma crítica à perda dos velhos tempos de pleno emprego e seguridade social, épocas em que, junto aos mecânicos estadunidenses, os metalúrgicos ingleses poderiam conhecer bem um ferroviário de Tafi ou um operário de Valentin Alsina.

No caso de Moore, a história tem um acréscimo. Trata-se de uma família católica com acesso a sacerdotes que não têm problemas em dizer – e assim aparecem, filmados – que o capitalismo é o diabo. Esclarecimento: para uma parte da teologia católica o problema é a usura ou a ganância financeira e o discurso sobre o dinheiro, só o discurso, é distinto do que os cristãos calvinistas esgrimem. Por isso, Moore chega a se perguntar em que momento da Bíblia (porque ele não sabe) Jesus Cristo teria se tornado capitalista. Um ponto interessante na visão histórica é o enfoque sobre a Segunda Guerra. É clássico dizer que a guerra ajudou aos Estados Unidos porque impulsionou a fabricação de bens, em boa parte bélicos, e acelerou a saída da Grande Depressão dos anos 30. No filme a ênfase é posta no período do pós-guerra, com a tese de Moore de que as empresas automotoras alemãs tinham colapsado por causa da guerra e as estadunidenses avançaram com vantagens sem competição externa por muitos anos.

Outro dado da crítica de Moore: no filme tanto a Alemanha como o Japão aparecem várias vezes. E, num certo momento, como modelo. São apresentados como um exemplo de países em que “os líderes conservadores, quando governam, não destroem a classe média” e onde “os trabalhadores têm voz no comportamento dos executivos da empresa”.

As preferências políticas de Moore estão mais claras. “Um dia os ricos escutaram que algo se aproximava, e pela primeira vez não era outro Martini Seco, mas o condenado norte-americano”, lê-se quando aparece Barack Obama na campanha.

E, ao mostrar esse Michigan que ama, Moore recorda quando Franklin Delano Roosevelt mandou o exército reprimir. Só que, desta vez, não aos operários que haviam tomado uma fábrica; disparou contra a polícia e os capangas que golpeavam as famílias dos operários.

O documentário não parece se alinhar com os radicais, a esquerda norte-americana, mas com os liberais, o progressismo que, com Moore, está dotado de um forte compromisso com o mundo do trabalho concreto como fonte de bem estar e de uma desigualdade razoável. Em sintonia com a opinião do nobel de economia Paul Krugman, mudar essa sociedade por uma muito mais desigual foi uma decisão política das classes dirigentes. Ronald Reagan, duas vezes presidente desde 1981, foi o grande vendedor do novo modelo.

Reagan encabeçou a destruição industrial para obter lucros no curto prazo e para destruir sindicatos”, disse Moore. O mote dos Estados Unidos? Seguramente. O mote do documentário, sem dúvida: o nome da companhia produtora é traduzido: “o cachorro que come o cachorro”.

É um documentário contra a brutalidade impiedosa que se tornou muito visível desde o começo da década de 1980.

Já não existe meio-termo, não entendo – disse um grandote. Aqui estão os que têm tudo e os que não têm nada”. O xerife entra numa casa depois de arrombar a porta e pegar a fechadura com uma mão. Um negro é desalojado enquanto uma senhora grita: “Agora até tapumes eles põem nas casas! Nunca se tinha visto isso!”. O carpinteiro que prega os tapumes diz que era só o seu trabalho. O desalojado explica: “Faz 41 anos que vivo nesta casa. É a casa de meus pais”.

Quem acha estranho o fato de que Moore incomoda para ser incomodado e faz jornalismo dessa situação o terão. O gordo Michael sobe num caminhão de carga e recorre ao Goldman Sachs e a AIG, as primeiras firmas quebradas em 2008 depois da bancarrota do Lehman Brothers. Com uma bolsa, pede apenas que lhe devolvam o dinheiro que lhe foi levado ao Tesouro, porque ele é de todos os cidadãos.

E há grandes cenas de capitalismo explícito. “O abutre é um oportunista que chega para limpar um cadáver”, diz um abutre que se dedica a confiscar propriedades a preço vil depois da crise das hipotecas-lixo. O senhor, nada distinto do advogado da argentina Carancho, é executivo da empresa Condo Vultures. Condo é uma contração de condomínio. Vultures, traduzido, significa abutres.

Alguém me perguntou qual era a diferença entre um abutre e eu”, diz o abutre. “Eu não vomito em cima de mim”, sorrie. “Nada pessoal”, diria Don Corleone.

Para ver o trailer oficial do documentário legendado, clicar aqui

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Samuel Pinheiro Guimarães

Crescer a 7%


O artigo é de Samuel Pinheiro Guimarães, atual Ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos.
Fonte: Carta Maior





1. O subdesenvolvimento, situação em que a esmagadora maioria da população de um país não pode desfrutar dos bens e serviços que o avanço tecnológico e produtivo moderno permitem, é sempre uma questão relativa. Nenhum país é subdesenvolvido isoladamente; esta é sempre uma situação comparativa entre países e sociedades, desenvolvidas e subdesenvolvidas, em diferentes graus, em distintos momentos históricos.

2. Naturalmente, há indicadores objetivos de subdesenvolvimento: a exploração ao mesmo tempo insuficiente e predatória dos recursos naturais; a baixa escolaridade e qualificação média da mão de obra; a desintegrada rede de transportes; o pequeno consumo per capita de energia; a reduzida diversificação das exportações; o pequeno número de patentes registradas; o acesso restrito da população a saneamento básico; as precárias condições de saúde, educação e cultura; o alto percentual da população que se encontra abaixo da linha de pobreza etc.

3. A heterogeneidade é uma característica central do subdesenvolvimento. Regiões avançadas ao lado de regiões paupérrimas e de baixa produtividade. A ignorância ao lado da cultura. A moderna eficiência tecnológica convive com o uso de tecnologias do passado. A riqueza vizinha da miséria. E assim por diante. Essa heterogeneidade, ainda atual, é resultado da evolução de um sistema produtivo que se forma a partir de enclaves modernos, vinculados a centros econômicos externos, cuja maior produtividade não se difundiu para o resto do sistema nem deu origem a processos de geração e distribuição de renda devido à estrutura social, cuja base era o latifúndio agrícola, ou o enclave minerador, e o regime de mão-de-obra escrava ou servil.

4. O conjunto dessas deficiências leva a uma produção de bens e serviços por habitante relativamente pequena, o que, em termos monetários, se expressa por um baixo produto per capita e, em termos sociais, por uma precária qualidade de vida para a imensa maioria, ao lado de uma riqueza da qual pouquíssimos desfrutam.

5. A produção per capita representa o conjunto de bens e serviços a que o habitante médio de um país teria acesso por ano. Esta média hipotética será tanto mais representativa da realidade quanto mais igualitária for a distribuição de renda em uma sociedade, o que não ocorre no Brasil.

6. Por todos os critérios acima, o Brasil é um país subdesenvolvido, ainda que com importantes bolsões de riqueza e de produção moderna. Apesar dos esforços das últimas décadas, com significativas flutuações e longos períodos de estagnação, o Brasil continua a ser um país subdesenvolvido. Em relação a quem?

7. A situação de desenvolvimento do Brasil não pode ser comparada com a de países que, pelas características de território, população e PIB, não enfrentam os mesmos desafios que a sociedade brasileira. Pequenos e médios países europeus, asiáticos e sul-americanos, ainda que às vezes ostentem níveis de produto per capita ou indicadores sociais importantes, superiores aos brasileiros, não têm o mesmo potencial do Brasil nem têm de enfrentar desafios semelhantes aos nossos.

8. O Brasil é um país continental. Se fizermos três listas de países segundo o território, a população e o PIB, somente três países estarão entre os dez primeiros de cada uma dessas três listas: os Estados Unidos, a China e o Brasil.

9. Os países com quem o Brasil tem de ser comparado são países como os Estados Unidos, a China, a Rússia, a Índia, a Alemanha e a França. Esses têm de ser o nosso referencial e esses são os nossos competidores (e eventuais colaboradores) na dinâmica do sistema internacional e na disputa por poder político e pela apropriação de riqueza.

10. Todavia, a China e a Índia têm um produto per capita muito inferior ao do Brasil, enfrentam desafios sociais muito maiores e dispõem de recursos naturais inferiores aos nossos o que dificulta sua árdua tarefa de se tornarem países desenvolvidos. A Rússia, apesar de seus recursos naturais e do avanço tecnológico em certas áreas, enfrenta dificuldades extraordinárias em termos sociais e de reestruturação de sua economia. A Alemanha e a França, com todo o avanço que já alcançaram, enfrentam importantes dificuldades devido a suas limitações de território e de população e, portanto, apresentam vulnerabilidades decorrentes da necessidade de importar insumos e da dependência excessiva de sua economia em relação ao mercado internacional.

11. Talvez o melhor paradigma para o Brasil sejam os Estados Unidos. Nossas características territoriais e demográficas são semelhantes, enquanto que nosso PIB é muito distinto. Os Estados Unidos são o país mais poderoso do mundo em termos militares, de PIB e de tecnologia. Nossas sociedades democráticas, multiculturais e multiétnicas são semelhantes e grande é a diversidade de recursos naturais e a capacidade agrícola de ambos os países.

12. O produto per capita dos Estados Unidos em 1989 era 22.100 dólares e o do Brasil 3.400. A diferença era, portanto, naquela data de 18.700. Ora, o Brasil e os Estados Unidos cresceram em termos reais à mesma taxa nos últimos 20 anos: os Estados Unidos a 2,5% a.a. e o Brasil a 2,5% a.a.. Nos Estados Unidos, esta taxa de crescimento poderia ser considerada razoável e adequada mas, no caso do Brasil, ela reflete a estagnação da economia brasileira, da produção e do emprego, no período de 1989 a 2002. Esta situação se modificou entre 2002 e 2009, no Governo do Presidente Lula, período em que o Brasil cresceu à taxa média de 3,4% e os Estados Unidos à taxa média de 1,4% a.a..

13. Essas taxas de crescimento, devido às bases de PIB muito distintas de que partiam e às taxas diferentes de crescimento demográfico, fizeram com que a produção per capita americana passasse de 22.100 dólares, em 1989, para 46.400 dólares, em 2009, enquanto a do Brasil aumentou de 3.400 dólares para 8.200 dólares. Assim, o hiato de produto per capita entre os Estados Unidos e o Brasil aumentou entre 1989 e 2009, passando de 18.700 dólares para 38.200 dólares. O atraso relativo, o subdesenvolvimento, aumentou.

14. Se o objetivo central da sociedade brasileira for vencer o subdesenvolvimento, a economia terá de crescer a taxas mais elevadas do que as que têm ocorrido no passado recente, enquanto que as políticas de distribuição de renda terão de ser mais vigorosas para incorporar ao sistema econômico e social moderno as imensas massas que se encontram em situação de grave pobreza: cerca de 60 milhões de brasileiros.

15. Se o PIB dos Estados Unidos crescer a 2% a.a. até 2022 (inferior à sua taxa de 2,5% a.a. entre 1989 e 2009, e assim essa hipótese leva em conta os efeitos da crise atual sobre a economia americana), o PIB per capita americano alcançará 53.100 dólares; se, neste mesmo período, a economia brasileira crescer à taxa de 5% a.a. o PIB per capita brasileiro atingirá 14.200 dólares. O hiato de produção per capita aumentaria em 700 dólares.

16. Se o PIB dos Estados Unidos daqui até 2022 crescer a 2% a.a. e se o Brasil crescer a 6% a.a., a diferença de produto per capita se manterá praticamente igual entre os dois países: os Estados Unidos atingirá 53.100 dólares e o Brasil 16.000 dólares. O hiato, que em 2009 era de 38.200 dólares, se reduziria para 37.100 dólares. Uma melhora de 1.100 dólares em 12 anos: cem dólares por ano...

17. Assim, o Brasil em 2022, no bicentenário de sua Independência, continuaria tão subdesenvolvido quanto é hoje, apesar de seu produto per capita ter atingido 16 mil dólares e apesar dos enormes esforços para retirar da pobreza a maioria de sua população e para realizar amplos programas de construção de sua infra-estrutura e de financiamento a grandes investimentos.

18. Somente na hipótese de os Estados Unidos crescerem a 2% a.a. e o Brasil a 7% a.a., atingindo os Estados Unidos 53.100 dólares e o Brasil 18.100 dólares, a diferença de produção, de bem-estar, de desenvolvimento, entre os dois países se reduziria de 38.200 dólares para 35.000 dólares. Poderíamos então afirmar que o Brasil estaria iniciando o processo de se tornar um país desenvolvido. Isto caso fosse mantido este esforço nas décadas seguintes e caso a perversa dinâmica de distribuição de renda e de riqueza no Brasil for firmemente enfrentada. Aliás, esses 7% a.a. correspondem à taxa média de crescimento do PIB brasileiro entre 1946 e 1979...

19. Caso contrário, caso cresçamos à uma taxa anual média inferior a 7% a.a., apesar de todos os esforços bem intencionados, o senso comum e a prudência monetarista (a qual, aliás, teria impedido a integração territorial brasileira e a transformação do Brasil em uma grande economia industrial, já que teria vetado o Plano de Metas de Juscelino Kubitscheck pois o teria considerado inflacionário) que nos quer obrigar a crescer a uma taxa de 4,5% a.a., farão com que o Brasil continue a ser em 2022 uma sociedade subdesenvolvida, caracterizada pela extraordinária disparidade de renda e de riqueza. Nela, continuaremos a nos defrontar com a extrema pobreza, a ignorância profunda, a exclusão perversa e a violência anômica ao lado de uma riqueza ostensiva, suntuária, nababesca e excessiva, desfrutada por 0,04% da população brasileira (cerca de 80.000 pessoas) cuja renda mensal, em 2009, era superior, às vezes muito superior, a 50.000 reais.

20. Há, sempre, colocados pelos prudentes, três obstáculos ao crescimento da economia brasileira a taxas superiores a 4,5% a.a. ou 5% a.a.. O primeiro diz respeito ao suposto retorno da inflação a taxas superiores às que seriam “toleráveis”, com todos os seus efeitos sobre preços relativos e, em especial, porque a inflação prejudicaria principalmente os pobres. Esta preocupação generosa com a situação dos pobres não leva em conta, em primeiro lugar, que o que afeta os pobres de forma mais grave é o desemprego, a miséria, a violência, a exclusão e a falta de oportunidades que resultam do baixo crescimento em uma economia subdesenvolvida e tão díspar como o Brasil. Em segundo lugar, que a tendência inflacionária está presente em qualquer processo de desenvolvimento acelerado e que é possível preservar os segmentos mais pobres da população dos efeitos sobre os preços de um desenvolvimento mais rápido.

21. Uma palavra sobre a inflação. O processo de superação do subdesenvolvimento, devido aos grandes investimentos na infra-estrutura de energia, de transportes, de prospecção e exploração mineral, de pesquisa tecnológica, de comunicação, que são essenciais porém de longa maturação e de retorno incerto, e em programas sociais, também de longa maturação e também de retorno incerto, como em saúde, educação e cultura, provocam, necessariamente, aumentos de demanda sem o correspondente e imediato aumento de produção.

Como esses investimentos na infra-estrutura física e social têm de se suceder em períodos de décadas, para superar o atraso relativo do país, a pressão pelo aumento de preços passa a ser constante. Todavia, o crescimento do PIB a 7% a.a., quando sustentado a médio e longo prazos, significa que está havendo uma ampliação da capacidade instalada, da formação bruta de capital fixo, o que é feito por empresas que decidem investir, isto é, decidem ampliar suas unidades de produção, suas fábricas, suas lavouras, etc. E que o Estado decidiu investir diretamente por suas empresas (poucas, no caso do Brasil somente no setor financeiro e no setor de energia) ou indiretamente, contratando empresas privadas para a construção de obras de infra-estrutura ou financiando investimentos privados para produzir bens de consumo e de capital.

Ora, o crescimento, o desenvolvimento, à taxa de 7% a.a. significa a expansão das empresas, do capitalismo no Brasil, do emprego e dos lucros. Quanto menor o crescimento econômico menores as oportunidades de lucro, menores os investimentos, menor a geração de emprego (para absorver a mão-de-obra que ingressa no mercado todos os anos, cerca de 2 milhões de novos jovens trabalhadores) maior a violência e a exclusão social. Por outro lado, a demanda gerada pelos investimentos na infra-estrutura econômica e social é uma demanda em parte por bens de consumo o que estimula a ampliação da produção e o investimento privado, investimento cujo prazo de maturação é mais curto, o que reduz a pressão inflacionária. Aliás, a China e a Índia têm crescido a taxas superiores a 7% a.a. sem que tenha ocorrido inflação significativa.

22. Um segundo obstáculo, segundo os prudentes, seria que a economia brasileira não teria como gerar a poupança necessária à realização dos investimentos. Aí, há quatro respostas possíveis: a primeira, que o próprio Estado brasileiro, através de uma política de juros mais adequada, disporia de recursos adicionais significativos para investir direta ou indiretamente. A segunda, que ainda há vasto espaço para ampliação do crédito para investimento. A terceira, que não se pode afastar, tendo em vista o elevado grau de desconhecimento dos recursos do subsolo brasileiro, a possibilidade de descoberta de recursos naturais importantes, como foi o caso das descobertas no pré-sal que colocarão o Brasil entre os seis maiores produtores mundiais de petróleo. A quarta, que uma economia em expansão dinâmica, com as características do Brasil, atrairá como já se verifica, capitais externos em volumes significativos, como ocorreu e ocorre com a China. Aliás, os investimentos chineses (que têm 2,3 trilhões de reservas) estão chegando em volumes muito expressivos ao Brasil, na compra de sistemas de transmissão, na construção de hidroelétricas e na exploração do petróleo, tornando a China o terceiro maior investidor no Brasil.

23. O terceiro obstáculo ao desenvolvimento a taxas mais elevadas seria a escassez de mão de obra qualificada, em especial de engenheiros, nos mais diversos setores, que já estaria sendo detectada. Aí há duas soluções possíveis, pelo menos: a primeira, expandir os programas de formação e de retreinamento de engenheiros o que poderia ser feito rapidamente a custo baixo já que estudos recentes indicam a existência de grande número de vagas disponíveis nas escolas de engenharia; a segunda, “importar” mão de obra qualificada sem prejudicar a mão de obra nacional, bastando exigir o respeito aos padrões salariais da categoria, aproveitando, inclusive, a situação de crise em que se encontram os países desenvolvidos, onde há abundância de mão de obra qualificada, desempregada.

24. Porém, finalmente e por outro lado, caso se deseje manter o Brasil como país pobre e subdesenvolvido, basta crescer a taxas modestas, obedecendo a todas as metas e a supostos potenciais máximos de crescimento, e, assim, lograr manter a economia estável porém miserável. Este baixo crescimento corresponderá a um custo humano e social elevadíssimo para a imensa maioria da população, exceto para os super-ricos, que se transformarão, cada vez mais, em proprietários rentistas e absenteístas, distantes e alheios aos conflitos que se agravarão cada vez mais na sociedade brasileira.

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segunda-feira, 7 de junho de 2010

Luís Carlos Lopes

Valores e a atual fase da modernidade
Luís Carlos Lopes é professor e escritor.
Fonte: Carta Maior


Y mis manos son lo único que tengo
Y mis manos son mi amor y mi sustento
Y mis manos son lo único que tengo
Y mis manos son mi amor y mi sustento
Violeta Parra – Lo único que tengo


Parece insólito cantar com Violeta Parra e seus mais doces intérpretes, destacando-se Victor Jara e Mercedes Sosa. Lembrar a grande poetiza popular chilena do século XX, falecida em 1967. Reafirmar que é nas mãos de cada ser humano, onde se concentram, tanto suas possibilidades de amar como a de trabalhar, produzindo algo para além de si mesmo. Tais versos de incrível beleza vão à contramão de um tempo de desvalorização do que é humano e sensível em cada pessoa.

Valorar o trabalho seja ele manual ou intelectual está absolutamente fora de moda. Na atual fase histórica, infelizmente, para muitos o que importa não é mais o que se faz e se sabe fazer ou se pode aprender. A vida social valoriza bem mais a posição alcançada do que a competência, bem como, o dinheiro obtido no lugar a contribuição social. Diplomas e cargos foram colocados no lugar da capacidade profissional.

O amor próprio de hoje é muito mais alimentado por que se consegue amealhar em propriedades (mesmo que sejam dívidas) e em recursos financeiros (mesmo que apenas potenciais). A fama também substitui ou relativiza o orgulho profissional. Ser reconhecido pela imagem e atributos físicos ganhou um espaço antes desconhecido. O protótipo construído da imagem pessoal, mesmo que esconda o que se passa realmente, é o que importa.

Valorar o amor em todas as suas formas e variações - dentre elas, o carinho pelo outro e o respeito mútuo - caiu no vazio da lógica de interesses e de falsidades nas relações interpessoais. O aperto de mão e a tapinha nas costas que herdamos de nossos patrícios portugueses podem não transmitir nada de mais concreto, restando em uma formalidade. O abraço, com o qual terminamos nossos e.mails não é necessariamente algo que realmente desejamos. Não é diferente no que se refere às carícias entre os amantes, amigos, pais e filhos.

No deserto do real, criado pelo desenvolvimento do capitalismo, a velha comunidade desaparece, levando consigo a humanidade de seus membros. A admiração transforma-se em inveja, o comentário banal, em intriga. Instala-se, facilmente, um clima de desconfiança e se faz a apologia do ódio a quem estiver mais próximo. Há um esforço desmedido para neutralizar a velha luta de classes, substituindo-a pelas disputas interpessoais fratricidas e sem nenhum conteúdo apreciável.

Neste contexto, a ignorância campeia com a mais absoluta liberdade. Em vários ambientes, quase ninguém mais ama o trabalho e nem gosta de seus semelhantes, o que interessa é o que se pode lucrar. A lógica do sistema penetra o conjunto do tecido social, corrompendo-o, criando impossibilidades. Os grupos contaminados tornam-se arredios a qualquer solução ou compreensão racional, apenas, seguem o que é transmitido pelas grandes mídias. Estas pilotam consciências prestando inestimáveis serviços aos poucos que já têm poder de sobra.

Obviamente, tal quadro dantesco não se aplica a todos os entes sociais brasileiros e universais. Há poderosos núcleos de resistência que não aceitam as regras do jogo. Estes fazem tudo o que podem para reverte-las, buscando alternativas em seus trabalhos e demais fazeres sociais. Há muita gente que continua amando o trabalho e seus semelhantes. Eles não aceitam, como quem escreve este artigo, que este mundo seja imutável e que não existam saídas. Não se calam e persistem. Na verdade, só existe uma meta: jamais capitular frente ao inimigo.

Por isto tudo é preciso continuar cantando com Parra, Jara, Sosa e seus homólogos de toda parte. Insistir que continuamos a ter nas mãos o poder de decidir a vida que queremos ter. Um sozinho muda alguma coisa, quanto mais formos mais teremos a chance de viver uma sociedade mais justa e fraterna, vencendo a ignorância. Felizmente, ainda conseguimos nos emocionar ao ouvir os versos citados. Eles não param de ecoar em nossos cérebros e de nos levar à busca de novos caminhos.
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Pierre Charasse

A geopolítica da desaparição do Euro


Pierre Charasse, diplomata de carreira, ex-embaixador, trabalhou no Ministério de Relações Exteriores da França, entre 1972-2009.Tradução: Katarina Peixoto.
Fonte: Carta Maior



Na massa de informações que circula sobre a crise do euro, não é fácil detectar os fenômenos de fundo que se estão produzindo. Por isso, é importante adotar alguma distância, situar essa crise no curso dos acontecimentos dos últimos 20 anos, depois da queda da União Soviética, e projetar uma perspectiva geopolítica de médio a longo prazo. A crise grega confirmou, como se fosse necessário, que a Europa como união política não existe mais.

Nas últimas semanas, a União Européia (UE) revelou ao resto do mundo sua extrema debilidade. O euro não resistiu às ofensivas de todo tipo que sofreu nos últimos meses, apesar de ser a moeda de uma das regiões mais ricas e industrializadas do mundo.

A primeira grande crise financeira mundial da era da globalização evidenciou que a moeda européia não podia aguentar as turbulências do mercado e os ataques especulativos, exatamente porque não tinha um respaldo político sólido e coerente. Os ideólogos ultraliberais que inventaram a moeda européia decidiram aplicar com rigor o princípio do laisser-faire, proibindo aos governos de intervirem nas políticas do Banco Central Europeu (BCE).

Os governos da zona do euro se auto-mutilaram, quando aceitaram o dogma da independência do BCE, renunciando a qualquer possibilidade de submeter as políticas financeiras a condições políticas. Depois de muitas discussões, apresentaram como um grande avanço a decisão de constituir um fundo de resgate de 440 bilhões de euros. E nenhum governo, vendo o desastre social que os planos de ajustes impostos pelo BCE e pelo FMI, quis opor políticas concorrentes à doxa ultraliberal.

O que o público europeu não vê em geral é que, com a intervenção do FMI, os Estados Unidos agora têm direito de intervir na economia européia. Todas as decisões do FMI requerem necessariamente a aprovação do governo estadunidense, se é que não vêm inspiradas diretamente por esse país. Na reforma dos direitos de voto no FMI, anunciada na última Cúpula do G20, os EUA conserva intacta a minoria de controle com 16% dos votos. Pediu-se a UE que reduzisse sua parte para que a cota de países emergentes aumentasse. O presidente Obama exerce plenamente o poder que lhe dá a nova arquitetura financeira internacional, chamada governança mundial, e exige da Grécia e de outros países europeus que baixem os salários de seus funcionários, que reformem o regime de aposentadorias e que diminuam o gasto público em geral. E os europeus obedecem.

Com a crise financeira européia, está se dando um passo a mais no avassalamento da Europa. Com o Tratado de Lisboa, a Europa entregou sua defesa à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN): acabou-se o velho sonho de uma defesa européia independente. E agora, com uma política financeira controlada pelo FMI, a UE renunciou a um pilar essencial de sua independência. Sem a defesa e a moeda, não lhe resta nada para afirmar sua independência dentro do bloco ocidental e frente ao resto do mundo.

Neste contexto, parece lógico que o euro tenda a se aproximar da paridade com o dólar. Fala-se, nos círculos financeiros, de uma possível dolarização da zona do euro. Tecnicamente convém aos países industrializados da Europa, para recuperarem sua competitividade econômica, castigada na última década por um euro forte. Politicamente convém aos Estados Unidos eliminar uma moeda rival do dólar frente a China e a outros países emergentes. Os novos membros da União Européia vêem com muito bons olhos a dolarização da Europa, que seria para eles uma garantia suplementar com que contar, um guarda-chuva estadunidense, como para sua defesa frente a Rússia, seu inimigo de sempre.

O diretor do FMI, Dominique Strauss Khan refere-se com frequência à necessidade de uma moeda mundial, consequência lógica da globalização econômica e financeira. Em Zurique, em 12 de maio, ele fez um chamado a favor da criação de um banco central mundial, com uma moeda mundial. Na França, o Secretário de Estado para a Europa, Pierre Lellouche, militante atlantista incansável, anunciou triunfalmente que no plano monetário se chegou a um mecanismo de solidariedade automática idêntico ao que prevê o artigo 5 do Tratado da OTAN. Com isso, dá-se o último toque à construção de um espaço europeu subsidiário do território estadunidense para formar um bloco perfeitamente homogêneo sob a liderança de Washington. Desde a sua eleição, o presidente Barack Obama pede a seus aliados que cerrem filas para enfrentar as novas ameaças mundiais.

Outro efeito da crise, os planos de ajuste estrutural impostos como remédio, terão como consequência a curto prazo a tatcherização da Europa continental, ou seja, o fim do modelo social europeu. A Grã Bretanha, aliado incondicional dos Estados Unidos, não membro da zona do euro com a libra esterlina, será o grande vencedor dessa crise, com a imposição de seu modelo econômico e financeiro a toda a Europa, e com o fortalecimento da City como praça financeira impermeável a todos os intentos de regulação que se sugere para prevenir novas catástrofes financeiras mundiais.

Com a dolarização da Europa vai se fechar um capítulo da história moderna aberto com a derrubada do campo socialista. Para a corrente atlantista européia, atualmente majoritária, a desaparição da Europa como ator político e financeiro autônomo é o preço a pagar para que o Ocidente continue controlando o mundo frente aos países emergentes.

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Flávio Aguiar

Do Consenso de Washington ao de Bruxelas

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
Fonte: Carta Maior


* Disciplina fiscal.
* Redução dos gastos públicos.
* Reforma tributária.
* Juros de mercado.
* Câmbio de mercado.
* Abertura comercial.
* Investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições.
* Privatização das estatais.
* Desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas).
* Direito à propriedade intelectual.

Este é o decálogo do Consenso de Washington, criado inicialmente sob a batuta do FMI, do Banco Mundial e do Tesouro dos EUA. Passou a ser a receita básica do FMI, primeiro, para a América Latina, depois para outras nações “em desenvolvimento” ou em crise nas suas finanças públicas. A seguir, tornou-se uma espécie de “Maravilha Curativa do Dr. Humphreys” ou de “Regulador Gesteira” para as economias mundiais. Curava de tudo, das dores de cabeça às unhas encravadas das finanças públicas; da prisão de ventre às diarréias nas bolsas do planeta. Era capaz de fazer um organismo engravidar ou, ao contrário, de servir-lhe de contraceptivo, conforme necessitasse de crescimento (sempre comedido) ou de desinchaço recessivo (sempre excessivo).

As conseqüências desse receituário são conhecidas. Entre outras coisas, pulverizou as economias da Argentina, do México, empobreceu mais ainda as populações já pobres dessa e de outras regiões, atolou a Rússia recém saída do comunismo num pântano de privatizações e corrupção, comprometeu seriamente a capacidade de ação e reação do Estado brasileiro diante das sucessivas crises mundiais, e destroçou as economias asiáticas nos anos de 1997/1998. Pode-se dizer também que nas bordas desse consenso os Estados Unidos criaram seu maior contingente de pobreza, em termos absolutos, de toda a sua história.

Houve reações contra ele e seu império. Não só surgiu o Fórum Social Mundial, como ele se implantou enquanto seu congênere financeiro e financista de Davos via sua influência declinar. No continente asiático, a República da Malásia, que fez tudo ao contrário do que o FMI recomendava, se recuperou antes e de modo mais firme do que a Coréia do Sul e a Tailândia. Um dos resultados daquela crise é hoje o conflito, que só tende a se aprofundar, na Tailândia, entre a população campesina pobre, setores de classe média que querem uma maior participação nas esferas de poder, e a elite que se apóia na brutal repressão dos movimentos pelas Forças Armadas e por uma monarquia constitucional de fachada que disfarça a ditadura. O Brasil só não afundou completamente e até mesmo saiu mais depressa da recente crise de 2007/2008 porque não seguiu completamente a receita, preservando, ainda que não de todo, a Petrobrás e o setor bancário público. Uma curiosidade: o bloqueio orquestrado pelos Estados Unidos ao Irã preservou os bancos iranianos dessa recente crise, o que agora aumenta as dores de cabeça da secretária Hillary Clinton.

O consenso sobre o Consenso de Washington se implantou pari passo a uma crescente em proporção geométrica, depois estratosférica financeirização da economia mundial, concebida como uma brutal transferência de dinheiro público para capitais privados, sob a forma do (des)controle das dívidas federais, estaduais e municipais, e como um modo de (des)regradamente ganhar dinheiro com a especulação pura e simples, numa espiral que, como efeito colateral, formou uma casta dentro desse sistema através dos bônus e recompensas pagas por quem o administrava para enriquecer poucos e empobrecer ou privar de serviços essenciais muitos.

Esse circo explodiu, como já vinha se esperando, em 2007 e 2008, semeou escombros nas principais economias do mundo em 2009 e preparou uma inflação de desgraças na Europa em 2010. A primeira vítima dessa situação no que antes era vista como uma verdadeira Arca de Noé frente ao dilúvio universal foi a Grécia. Ou melhor, foram os trabalhadores gregos, convocados a pagar a conta dos estragos e rombos produzidos por anos de desregramento nas finanças, sonegação e desconstrução da capacidade de fiscalização por parte do Estado. Tudo isso ficou na conta de que “o sistema de seguridade social grego era custoso demais”. Para recuperar a “confiança” do mercado e dos investidores, chamou-se não só a receita do FMI como o próprio para dentro da arena da União Européia.

Num expressivo artigo publicado no New York Times em 6/5, Peter Boone e Samuel Johnson (este último tendo sido um dos principais economistas do FMI), os autores, depois de analisarem que a aplicação da receita recessiva do FMI ao paciente grego pode matá-lo de inanição, recomendam uma solução alternativa que envolveria:

1) Promover a paridade do euro com o dólar, o que poderia favorecer o crescimento em toda a zona do euro.
2) A queda do euro poderia provocar uma crise nas letras do tesouro na sua periferia; para conter o pânico, seria necessário criar um fundo de amparo emergencial [essa parte a União Européia pôs em pôs em prática, depois de um dramático confronto entre Sarkozy e Ângela Merkel];
3) Através de um acordo com o G-20 [indispensável nessa altura] manter o euro desvalorizado; sempre que houver risco de insolvência na periferia, comprar as letras desses países.
4) Somente nessa altura, promover a reestruturação das dívidas e da administração dos países mais endividados.
5) Recapitalizar os bancos europeus [que é o que está acontecendo desde agora, com a transferência de fundos da União Européia e do FMI da ordem de quase 90 bilhões de euros para o sistema bancário através da Grécia e da “honra” de sua dívida], mas desde que suas diretorias fossem substituídas. A crise veio de uma incapacidade conceitual do “grupo do euro”, inclusive dos políticos, mas [para os autores] é inegável que os executivos dos bancos foram irresponsáveis e deveriam ser demitidos em massa.

Para finalizar, dizem os autores: “Na medida do possível, as perdas decorrentes deveriam ser compartilhadas com os bancos credores. No entanto, tenham cuidado; os banqueiros são poderosos por uma razão: eles construíram estruturas vitais, mas frágeis no coração das nossas economias. Essas estruturas devem ser desmanteladas, mas com cuidado”.

Mas esse crivo conceitual é muito difícil de implantar e deixar crescer. Vai completamente no sentido contrário de tudo o que se firmou como consenso quando se criou a União Européia, com sede em Bruxelas, e se implantou o euro como moeda única preferencial. O receituário de Bruxelas para a crise, que já está sendo aplicado, além de à força na Grécia, “voluntariamente” na Espanha, na Itália e em Portugal, vai na direção dos cortes orçamentários, congelamentos e reduções de salários, aposentadorias e pensões, e da adoção de políticas claramente recessivas, “para reconquistar a confiança nos mercados”.

Saneamento do ralo financeiro em que se transformou o sistema bancário e financeiro? Por ora nem pensar. Um ajuste aqui, outro ali, no máximo.

O que comprova aquele ditado pampiano: “cachorro que comeu ovelha, só matando”.

Marshall Auerback

A hipocrisia dos "falcões do déficit" nos Estados Unidos



Marshall Auerback é analista econômico norteamericano. Pesquisador sênior do prestigiado Roosevelt Institute, colabora regularmente com o projeto New Economic Perspectives e com o NewDeal2.0. Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior




Harold Meyerson põe o dedo na ferida: “De todos os hiatos que hoje separam nos EUA as opiniões da elite e da massa, talvez o maior seja este: as elites não acreditam realmente que ainda estamos em fase de recessão, ou ocorre de isso não ser o que as preocupa”. O que se torna mais revoltante é que, depois de terem sido os maiores beneficiários da magnanimidade do governo nos últimos anos, são precisamente eles que agora metem o pau na política fiscal “irresponsável” e “insustentável” do governo.

A amnésia coletiva e a depravação moral dessas elites é verdadeiramente inconcebível.

Por que temos um déficit de cerca de 10% do PIB precisamente agora, quando só era de 2% há 3 anos? As razões do estímulo de Obama, o plano de resgate bancário (TARP) e a desaceleração da economia (que respondeu a uma crise fiscal de envergadura, não precisamente causada porque o governo começara a esbanjar irracional e irresponsavelmente). Uma economia desacelerada leva à diminuição de renda (renda diminuída = menor arrecadação fiscal, visto que o grosso da arrecadação tributária procede da receita e das taxas marginais de substituição) e leva a gastos maiores na rede de bem estar social.

Por trás de todo esse furor sobre o déficit estão convenientemente camuflados os beneficiários desta recente prodigalidade pública. Não são, imediamente, os desempregados, nem a grande maioria das pessoas que não trabalha no setor dos serviços financeiros.

E já chega desse memorando agora imperante (- o último a vomitá-lo foi John Heilemann num artigo para a New Yorker Magazine: “Obama vem de Marte, Wall Street vem de Venus”, segundo o qual os custos do resgate financeiro são mínimos, graças às medidas “exitosas” empreendidas para “salvar” nosso sistema financeiro (como se valesse a pena salvá-lo na sua configuração atual). Com a exceção de Simon Johnson, virtualmente todos os analistas passam ao largo do fato de que nossa dívida pública, em relação ao PIB passou, em 2 anos, de 40% do PIB para 90% do PIB, como consequência direta da crise de 2008.

É preciso dizer que os terroristas do déficit se vêem agora fortalecidos por esse fato, esquecendo convenientemente suas causas subjacentes. O mesmo vale, com a conspícua exceção, do mencionado Meyerson, para os jornalistas que cobrem a atualidade econômica. Numa economia de mercado, em que a maioria de nós tem de trabalhar para ter uma existência material, as ameaçadas levantadas pelos Peter Peterson  e a brigada de falcões do déficit representam um verdadeiro assalto ao nosso direito de trabalhar. Como observa meu amigo Bill Mitchell, “os neoliberais atacavam deliberadamente o direito ao trabalho de milhões de pessoas, forçando-as a uma situação de dependência para rapidamente caírem na responsabilidade do sistema de bem estar e lhes ser negado o pobre alívio que esse sistema proporciona”.

As elites que se esgoelam contra esse gasto público (marcadamente as de Wall Street) são como alguém que desse a outro cinco carteiras de cigarro por dia e depois se escandalizasse com o fato de que seu beneficiário contraiu irresponsavelmente um câncer de pulmão.

O que acontecerá ao déficit quando a economia melhorar, se chegar a fazê-lo? O estímulo de Obama e do TARP, ocorra o que houver, desvanescerá em poucos anos. O incremento da receita fiscal e o gasto social cairão. Voltaremos à “normalidade”, com déficits entre 2% e 4%, segundo o estado da economia, como tem sido nos últimos 30 anos, deixando de lado o período de 1998-2001. Até o escritório orçamentário do Congresso (CBO em sua sigla em inglês) concorda com isso. Mas o que ocorrerá em troca, com os cortes fiscais de Bush? Terão um impacto de 2% para mais ou para menos, caso forem revogados ou prorrogados.

O certo é que a melhor forma de conseguir a “estabilidade financeira” que podemos empreender é o pleno emprego, porque com um emprego crescente vem um crescimento da receita e a capacidade, consequentemente, para honrar a dívida. Isso significa menos inadimplência para os bancos e, assim, uma necessidade menor de proceder a resgates públicos.

Em troca, a austeridade fiscal não corta nada. Nossas elites parecem pensar que se pode cortar o “gasto público esbanjador” (quer dizer, reduzir mais a demanda privada) e cortar os salários e, pela mesma razão, as receitas privadas, sem esperar efeitos multiplicadores importantes que piorem significativamente as coisas. Calam-se porque sabem que esse gasto “esbanjador” e “insustentável” nunca parece apontar para o Departamento de Defesa, ao qual sempre temos sido capazes de financiar com alguns bilhões de dólares: dir-se-ia que os princípios de “austeridade nos gastos” nunca foi aplicado pelo Pentágono.

As elites que tomam decisões políticas parecem ter adotado a linha do FMI, segundo a qual os multiplicadores fiscais são relativamente baixos e os estabilizadores, automáticos (que funcionam para incrementar os déficits, enquanto o PIB despenca), não levarão adiante os cortes discretos no gasto líquido derivado dos pacotes de austeridade. Há provas empíricas sombrias de que esta hipótese é falsa e de que a prática dessas políticas fundadas nessa hipótese causa dano – que afetam gerações inteiras – em termos de volume, de produção perdida, em termos de receitas perdidas, em termos de bancarrotas e em termos de emprego perdido (especialmente, negado aos que saem do sistema educacional um começo robusto na vida laboral).

O que realmente está por trás de tudo isso é que as pessoas de visão não querem a menor intervenção pública nos assuntos econômicos, a menos que os beneficie diretamente. Com característica de ingratidão, Wall Street ameaça agora cortar as doações a campanhas eleitorais para Obama e para os democratas, por causa do propósito deles de promover uma maior regulação no setor financeiro. Contudo, quando o governo intervém com resgates, Wall Street põe o chapéu na cabeça e o casaco em mãos. Ninguém deseja enfrentar com a disciplina real dos mercados, se isso significar perdas. Quem está no segmento superior da distribuição da renda não é contra todo tipo de intervenção pública, mas estão frequentemente contra certas intervenções públicas que possam fortalecer a posição dos trabalhadores ou fomentar uma verdadeira competição entre as empresas privadas (no caso de uma escolha pública numa reforma da saúde, por exemplo).

O princípio do pleno emprego é o valor real que deveria guiar a política econômica, não a falsa ênfase em algumas proporções financeiras, sempre em mãos do setor financeiro. Eu duvido muito que esse princípio constitua a inspiração diretriz de nosso “Conselho de Sábios” que delibera sobre o Fundo de Previdência e o Medicare, a portas fechadas.

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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Carta Maior



UMA AVE-MARIA POR JOSÉ SERRA


Na missa de Corpus Christi, padre Marcelo pediu uma Ave-Maria por José Serra que não moveu um músculo da fisionomia tensa e calcificada que manteve durante todo o culto celebrado pelo religioso cantante. Circula na internet aquilo que talvez explique a reza solicitada e o crispado no rosto do candidato do conservadorismo brasileiro, cuja campanha vive uma crise de estratégia, de apoios, de intenções de voto e de indefinição sintomática quanto à escolha do vice. O site Conversaafiada, de Paulo Henrique Amorim [http://www.conversaafiada.com.br/] publica o prefácio de um livro de 14 capítulos, escrito pelo respeitado jornalista Amaury Ribeiro Jr, que dedicou anos de investigações dentro e fora do Brasil para rastrear e comprovar --com documentos oficiais, obtidos na Justiça-- as interligações entre privatizações, campanhas eleitorais, empresas de fachada em paraísos ficais e movimentações milionárias de dólares feitas por parentes, amigos e homens de confiança de José Serra. Entende-se agora a razão pela qual o tucano se antecipou --com a ajuda do Globo e da Veja e o silêncio da Folha, e tentou desqualificar o dilúvio reduzindo-o a um cuspe do PT. Uma Ave Maria talvez não baste para José Serra. A ver.

Fonte: Carta Maior
 

Milagros Salazar

Cepal alerta a América Latina para a desigualdade



A reportagem é de Milagros Salazar, da IPS, e publicada pela Agência Envolverde, 01-06-2010.
Fonte: UNISINOS



A reunião de três dias, iniciada no dia 30 de maio, acontece com sinais positivos para a região, cujo PIB vai crescer 4,1% este ano, segundo as últimas revisões da agência. Contudo, a Cepal disse que é preciso lançar uma “agenda para a igualdade” a fim de corrigir as muitas versões da iniquidade na região. No Brasil, por exemplo, a capital do país é nove vezes mais rica do que o Estado do Piauí. No Peru, a andina região de Huancavelica é sete vezes mais pobre do que a parte costeira de Moquegua, no sul, destaca o estudo que pretende ser um mapa do caminho para transformar a igualdade no eixo do desenvolvimento latino-americano.

Há “territórios vencedores e perdedores”, afirmou a secretária-executiva da Cepal, Alicia Bárcena, na apresentação do informe. O desafio é “crescer para igualar” e o Estado deve cumprir um papel mais ativo nesse objetivo e não deixar a tarefa para o mercado, propôs a dirigente desse organismo vinculado a Organização das Nações Unidas. O estudo mostra que dentro das cidades e regiões mais desenvolvidas em cada país observam-se bolsões de pobreza, um problema que afeta quase todos os países, inclusive uma potência mundial emergente como o Brasil, com maior gasto social.

As nações com maiores brechas de bem-estar, segundo o estudo, são Bolívia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Paraguai, Peru e República Dominicana, que investiram apenas, em média, US$ 181 por pessoa em gasto social no biênio 2007-08. Em contraste, Brasil, Argentina, Chile, Costa Rica, Panamá e Uruguai investiram, em média, US$ 1.029 em gasto social por habitante nesse mesmo período. Além disso, é o grupo que ostenta o maior PIB por pessoa na América Latina. No meio estão Colômbia, México e Venezuela, com investimento médio de US$ 619.

Quanto ao acesso à educação, também há diferenças. Entre os 20% mais pobres dos jovens, apenas um em cada cinco conclui o ensino secundário, enquanto entre os 20% mais ricos, quatro em cada cinco terminam esse curso.

Com este panorama, a Cepal realiza alguns cálculos de transferências necessárias para reduzir a brecha da iniquidade. Assim, os países com menor gasto social teriam que investir entre 6% e 9% do PIB para aportar o custo total do valor de uma cesta básica mensal à sua população infantil menor de cinco anos, ao grupo com idade acima dos 65 e aos desempregados. No caso das crianças entre cinco e 14 anos, o cálculo se baseia na metade da cesta. O custo para as nações com maior gasto social oscilaria entre 1% e 1,5% do PIB e para os países intermediários, entre 2% e 4%.

Apesar destes desafios pendentes, a Cepal reconhece um claro aumento do gasto social global na América Latina, que entre 1990 e 2008 passou de 12% para 18%. Também destaca uma queda da pobreza regional entre 2002 e 2008, quando baixou de 44% para 33%. No entanto, qualifica tais avanços de insuficientes e destaca que o gasto social deve aumentar ainda mais, depois que o impacto da crise mundial provocou perda do poder aquisitivo das famílias e arrastou nove milhões de pessoas para a pobreza.

A crise nos leva a uma nova forma de pensar o desenvolvimento”, afirmou à IPS Martin Hopenhayn, coordenador-geral do informe e diretor da Divisão de Desenvolvimento Social da Cepal. Este organismo propõe que os Estados Unidos trabalhem em uma convergência produtiva e territorial que acelere a igualdade social. No primeiro caso, enfatiza que as pequenas e médias empresas (Pemes) devem se conectar com o mundo globalizado para melhorar suas condições, e não que esta ferramenta fique restrita às elites empresariais.

A estrutura produtiva é tão heterogênea e fragmentada que vemos empresas de alguns setores que produzem como se estivessem em países do primeiro mundo e pequenos empresários que trabalham como se estivessem em nações do quarto mundo. Isto se converte em uma máquina que reproduz a desigualdade”, explicou Hopenhayn. Para o especialista, melhorar a situação das Pemes significa melhorar as condições de seus trabalhadores.

No segundo aspecto, da convergência territorial, é ressaltada a necessidade de redução das brechas entre as diferentes divisões administrativas dentro dos países. Para isso, a Cepal propõe que o Estado tenha um papel central na melhoria da infraestrutura, dos serviços básicos e do desenvolvimento tecnológico, entre outros setores. O documento também propõe melhorar as políticas trabalhistas e reformar os sistemas tributários, para incrementar o investimento social.

O diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental do Fundo Monetário Internacional, Nicolás Eyzaguirre, assegurou, entretanto, que não existe “nenhuma evidência(?) de que mais Estado equivaleria a mais oportunidades (nem é surpresa o FMI não conseguir enxergar algo tão evidente, ou seja, a necessidade da presença do Estado que, para o FMI, deve apenas  salvar bancos=mercado financeiro. Enoisa). Para ele, a desigualdade tem a ver com o fato de haver um Estado em mãos de “um grupo capturado pelos grupos organizados ou um Estado democrático a serviço dos cidadãos(por que todo neoliberal parece ser alguém limitado? Enoisa). Maurice Odle, assessor econômico do secretário-geral da Comunidade do Caribe (Caricom), pediu à Cepal que dê mais atenção aos países pobres caribenhos, afetados por desastres naturais, e às características específicas de como vivem na iniquidade.

Odle destacou que entre os países caribenhos também há grandes desigualdades e citou que o PIB das Bahamas é 29 vezes superior ao do Haiti. Estas diferenças, afirmou, podem gerar correntes migratórias e tensões entre os vizinhos. Além disso, afirmou que o alto nível de desemprego, a migração, o tráfico de drogas e o armamentismo fazem com que “a desigualdade também esteja associada à segurança” nos países caribenhos.

Alain Touraine

O neoliberalismo está levando a União Europeia ao fracasso

Artigo do sociólogo Alain Touraine (foto) publicado no Clarín, 31-05-2010. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS




As recentes críticas de Obama à União Europeia são compartilhadas por um grande número de europeus. A participação da União Europeia nas decisões que impediram que a crise atual degenerasse em catástrofe foi quase invisível, ainda que tenham tomado iniciativa, a título individual, países como Reino Unido, Alemanha e França. Os europeus demonstraram que não queriam desempenhar um papel ativo na política mundial ao escolher como presidente e como ministra de Assuntos Exteriores da UE personalidades pouco conhecidas e, no que diz respeito à segunda, pouco preparada para assumir esse papel.

Tudo se desenrolou como se os europeus tivessem decidido deixar que os EUA continuassem se ocupando dos assuntos mundiais, enquanto eles se dedicavam à tarefa quase infinita de terminar sua integração, agora mediante a incorporação dos países balcânicos, sem que se quer examinar seriamente os sólidos argumentos apresentados por muitos favoráveis a entrada da Turquia, país que, sentindo-se indesejável na Europa, esforça-se para se voltar às sociedades islâmicas.

Se considerarmos que o frágil crescimento previsto para a Europa num futuro provavelmente prolongado irá minguar sua presença no mundo, no qual numerosos países caminham a passos largos, cabe perguntar se a Europa não entrou num declínio que será doloroso a partir da geração de nossos netos ou de nossos bisnetos. Um objetivo que é imprescindível alcançar é adotar, na economia e no social, uma política que rompa com o neoliberalismo que nos têm arrastado para a grave crise que vivemos.

No terreno internacional, o mais urgente é escolher um plano de ação comum com países do mundo islâmico, mas que não sejam árabes, porque estes estiveram colonizados durante muito tempo e seus Estados são frágeis e quase sempre autoritários. Se a Europa quer demonstrar que pode atuar no sentido oposto ao que escolheu os Estados Unidos quando atacou o Iraque, tem que acolher a Turquia e escolher uma política de reorientação do mundo muçulmano e eliminar as posições carregadas de ódio que conduziram ao terrorismo.

Muitos pensam, assim como eu , que a teocracia iraniana e sua frustrada política podem ser derrotadas por uma oposição interna que se veria reforçada se os ocidentais se mostrassem dispostos a apoiá-la. Uma coalizão europeia, turca e iraniana nesse país, uma vez que a oposição interna houvesse conseguido o seu objetivo, poderia por fim ao enfrentamento atual entre o mundo islâmico e o Ocidente.

Cabe pensar que o êxito dessa nova política permitirá o reconhecimento mútuo entre um Estado palestino e o Estado de Israel, sem o qual, o retorno da paz não é possível. A um nível ainda mais vagamente definido, é necessário que a Europa assuma a direção de um combate contra os regimes autoritários que têm condenado grande parte de sua população à violência interna, ao autoritarismo e à guerra. A Europa tem se demonstrado demasiada débil para ser considerada candidata a essa hegemonia mundial que ficou nas mãos dos Estados Unidos.

No que se refere às realidades econômicas e sociais, é preciso restabelecer prioridades que possam levar a uma defesa mundial contra os ataques dos especuladores. Em todo o mundo se experimenta a necessidade de devolver ao trabalho a parte do produto social que foi retirada pelo capital e, mais ainda, de restabelecer o vínculo entre a função financeira e as funções de produção, impedindo ao mundo financeiro lançar-se de novo à busca exclusiva do seu máximo benefício e afastando-se do seu papel de investimento e crédito.

Pode-se pensar que o mundo europeu está naturalmente orientado para tais objetivos. Não construiu um ambicioso sistema de seguridade social? Não sonha com uma reconciliação e um co-desenvolvimento com os países que colonizou? Não mostrou um duplo apego à existência de Israel e a um Estado palestino? De onde vem, pois, este fracasso em todos os aspectos da Europa, sua perda de crescimento, o desaparecimento de seu papel mundial e sua impotência para apoiar as democracias?

Nós podemos buscar as causas nas “debilidades” da Europa. Mas, em vez de ser a sua debilidade material o que acarreta a sua perda de confiança em si mesma e em seu futuro, é essa perda de confiança que leva a impotência da Europa e inclusive a sua reação ao se propor novos modelos e ao mundo.

Essa impotência apenas explica-se pela diversidade e inclusive as contradições dos interesses nacionais na Europa e a construção desta. Por acaso sua construção não se baseou, antes de mais nada, na vontade de pôr fim as guerras internas, suicidas e destrutivas de uma Europa presa aos regimes militaristas e totalitários? Por isso, a Europa consciente de ser a autora de sua própria desgraça, e querendo atuar mais sobre si mesma do que sobre o mundo, encerrou os interesses nacionais em regras econômicas, jurídicas e inclusive políticas comuns. A obra empreendida teve êxito e a queda do império soviético permitiu aos países da Europa central e oriental restabelecer os seus vínculos históricos com a Europa do oeste.

Mas agora, quase cumprida essa grande tarefa, a Europa deve se voltar para o mundo e recuperar a influência que seus próprios erros a fizeram perder. Esta nova etapa de construção europeia tropeça apenas em um obstáculo: o neoliberalismo, cujos centros estiveram e estão nos Estados Unidos e no Reino Unido. Países que lhe tiraram toda autoridade e a transferiram para os bancos, cujo poder sobre as empresas aumenta.

Os Estado Unidos também estão submetidos a esse capitalismo financeiro, mas tem unidade política e uma forte confiança em si mesmos, o que faz dos europeus – e quem sabe também do Japão – as vítimas mais graves da crise atual.

Como podem os europeus, que inventaram o espírito das Luzes e a crença na razão e nos direitos humanos, aceitar passivamente aquilo que corre o risco de se transformar no fim do modelo ocidental, ou seja, da associação do progresso científico e do técnico, a destruição dos privilégios e o reconhecimento dos direitos fundamentais de cada um?

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Hideyo Saito

Yoani Sánchez (ou como promover uma dissidente cubana)
O artigo é de Hideyo Saito, jornalista com passagem pela Rádio Havana. Tem prontos os originais de um livro sobre a atualidade cubana, produzido em colaboração com Antonio Gabriel Haddad, com o título provisório de “Cuba sem bloqueio: a revolução cubana sem as manipulações impostas pela mídia dominante”. Fonte: Carta Maior





A blogueira Yoani Sánchez é hoje a figura mais cortejada pela coalizão de forças que combate a revolução cubana, liderada por Washington e composta por outros governos, por partidos políticos, por órgãos da mídia e por ONGs do mundo inteiro. Trata-se de uma poderosa tropa de choque que exige ampla liberdade política, respeito aos direitos humanos e democracia, mas apenas em Cuba.

Aparentemente nenhuma outra nação no mundo inspira seus cuidados em relação a esses direitos políticos e humanos. Da mesma forma, denuncia também a escassez de bens de consumo em Cuba, mas jamais menciona o estrangulamento econômico praticado por Washington (que, aliás, é condenado por todos os países-membros da ONU, com as únicas exceções dos próprios Estados Unidos e de Israel).

O objetivo central dessa coalizão passou a ser, desde os anos 90, organizar e financiar uma oposição interna em Cuba. O congresso dos Estados Unidos aprovou leis especiais para respaldar essa política: a Torricelli, de 1992, e a Helms-Burton, de 1996. O intervencionismo teve seu auge no período de George W. Bush, que criou a Comissão de Apoio a uma Cuba Livre, presidida pela secretária de Estado, Condoleezza Rice, e indicou Caleb McCarry (um dos artífices do golpe contra o presidente Jean-Bertrand Aristide no Haiti), como responsável pela transição à democracia naquele país.

Os recursos oficiais estadunidenses destinados a essa finalidade foram, em 2009, de US$ 45 milhões, sem considerar o orçamento da Rádio e TV Martí e verbas paralelas não declaradas (1). No atual exercício, haviam sido liberados US$ 20 milhões, com a orientação de que fossem distribuídos diretamente aos destinatários em Cuba. O programa, entretanto, foi provisoriamente suspenso em abril último pelo presidente do Comitê Exterior do Senado, John Kerry (ex-candidato presidencial), provavelmente por causa da prisão em flagrante, em Cuba, de Alan P. Gross, quando fazia a distribuição de dinheiro e de equipamentos de comunicação (2).

O advogado José Pertierra, que atua em Washington, relacionou de forma exaustiva os diversos itens da ajuda provisoriamente suspensa, com base em informe oficial do Senado dos EUA. Destacamos apenas alguns, a título de exemplo: US$ 750 mil para os defensores de direitos humanos e da democracia; US$ 750 mil para parentes de presos políticos, como as “Damas de Branco”, e para ativistas que lutam para libertar aqueles presos; US$ 3,8 milhões para promover a liberdade de expressão, especialmente entre artistas, músicos, escritores, jornalistas e blogueiros (com ênfase nos afrocubanos); US$ 1,15 milhão para capacitar os ativistas mencionados no uso das novas tecnologias de comunicação.

A corrida pelo dinheiro de Washington

Essas informações tornam insustentável negar o financiamento estadunidense aos chamados dissidentes, de maneira geral. Não custa recordar ainda que aqueles que a mídia dominante insiste em chamar de presos políticos (cuja libertação está sendo reclamada pelo grevista de fome Guillermo Fariñas Hernández) foram julgados em 2003 justamente sob a acusação de receber dinheiro de Washington para combater a revolução. Em relatório de 2006, a Anistia Internacional registrou a realização, no ano anterior, de um congresso de dissidentes com a participação de mais de 350 organizações (a ata do encontro, porém, menciona a presença de 171 pessoas) nos arredores de Havana. Essa proliferação, porém, longe de mostrar a força da oposição, esconde a corrida de seus idealizadores para arrancar dinheiro de Washington.

Praticamente todas são organizações artificiais, criadas para que suas lideranças possam apresentar-se no escritório de representação dos EUA em Havana para receber a sua parte na cobiçada "ajuda em prol da democracia". Não há notícias sobre discussões políticas ou doutrinárias nessas entidades e muito menos de ações públicas sérias de sua iniciativa. Mas há fartos registros, isto sim, de brigas e denúncias recíprocas envolvendo a repartição e o uso da dinheirama. É por isso que, neste momento, a maioria dos dissidentes não vê com bons olhos a ascensão de Yoani Sánchez.

Lech Walesa de saias

O sonho dourado dos ideólogos de Washington é forjar em Cuba um novo Lech Walesa, o líder do sindicato Solidariedade e depois presidente da Polônia, apontado pelo National Endowment for Democracy (NED), do Departamento de Estado, como o maior triunfo de sua política. No caso de Cuba, isso foi tentado, entre 2000 e 2002, com um dissidente chamado Osvaldo Payá Sardiñas, organizador de um projeto de lei de iniciativa popular, que teve pouco mais de 11 mil assinaturas. O projeto foi recebido oficialmente, mas rejeitado pelo parlamento cubano.

Ele pretendia estabelecer nada menos que a liberdade para a criação de empresas privadas, inclusive órgãos de imprensa, a instituição do pluripartidarismo e outras medidas que implicavam eliminar o socialismo cubano de uma penada, baseado no suporte daquelas assinaturas (o número de eleitores no país é de 8,5 milhões). Equivale a um projeto de lei de iniciativa popular que fosse apresentado ao Congresso brasileiro, prevendo o fim da propriedade privada dos meios de produção, a convocação de eleições com candidatos indicados exclusivamente em assembleias de bairro e o fechamento dos oligopólios da comunicação. Seria cômico se o conteúdo da iniciativa não coincidisse com o do “programa de transição” divulgado em 2006 pela Comissão de Apoio a uma Cuba Livre, do governo Bush.

Em todo caso, com base nesse projeto Osvaldo Payá foi transformado em herói pela mídia dominante. Como acontece atualmente com a blogueira Sánchez, foi alvo de prêmios e honrarias mundo afora, além de merecer espaços enormes na mídia dominante. Recebeu, entre tantos outros, o Prêmio Andrei Sakharov da União Européia, quando estava sob a presidência do ex-premiê espanhol, José Maria Aznar, e foi recepcionado em audiência especial pelo Papa João Paulo II. Como o esforço não produziu os resultados esperados, a mesma mídia que o glorificava o esqueceu (como havia feito antes com Armando Valladares).

Agora, chegou a vez de Yoani Sánchez. Após ter resolvido subitamente voltar a Cuba de seu exílio na Suíça, colocou o blog no ar em abril de 2007. Pouco mais de meio ano mais tarde, ela já se transformava em personalidade mundial, com o acionamento da engrenagem publicitária da coalizão anticubana. Começaram a aparecer entrevistas de página inteira com a blogueira, não raro com chamadas de capa, em grandes publicações como The Wall Street Journal, The New York Times, The Washington Post, Die Zeit e El País, sem falar nos jornalões brasileiros e na indefectível Veja.

Ao mesmo tempo, sempre de forma significativamente sincronizada, surgiram os prêmios, os convites para viagens e outras iniciativas de cunho promocional. Em 2008 a blogueira foi premiada em vários países da Europa e nos Estados Unidos, além de ter sido incluída, pela revista Time, na relação das 100 personalidades mais influentes do mundo e pelo diário espanhol El País, entre os 100 hispano-americanos mais influentes. No mesmo ano, a revista estadunidense Foreign Policy a considerou um dos 10 intelectuais mais importantes do ano, assim como a revista mexicana Gato Pardo. Mais recentemente, lançou um livro em grande estilo, com edições quase simultâneas em diversos países, e adiantamento por conta de direito autoral (como os € 50 mil pagos pela editora italiana Rizzoli). Digno de registro também é que Yoani Sánchez enviou um questionário dirigido ao presidente Barack Obama e ele o respondeu prontamente. Ela explicou candidamente a atenção que Obama lhe dedicou: “talvez eu tenha sorte”.

Um blog multimilionário

A verdade é que o blog que a fez famosa desfruta de sorte não menos fantástica. Ele foi registrado por intermédio de um serviço chamado GoDaddy, uma companhia que costuma ser contratada pelo Pentágono para compra de domínios de forma anônima e segura para suas guerras no cyberespaço, conforme denunciou a jornalista espanhola Norelys Morales Aguilera (3). “Não há em toda Cuba uma só página de internet, nem privada, nem pública, com o potencial tecnológico e de design da que ela exibe em seu blog”, sustenta.

O blog é atualmente hospedado em servidor espanhol, que não lhe cobra nada ("por 18 meses", diz ela), embora processe 14 milhões de visitas mensais e ofereça suporte técnico praticamente exclusivo. No mercado, custaria milhares de dólares por mês. É traduzido para nada menos que 18 idiomas, luxo que nem os portais dos mais importantes organismos multilaterais, como a ONU, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional ou a OCDE, exibem. Sánchez diz que são amigos que fazem as traduções. Segundo o jornalista Pascual Serrano, ela usa recursos da web 2.0 a que muito poucos cubanos têm acesso, como o Twitter, os foros sociais e outros (4). Em 2009, segundo o jornalista francês Salim Lamrani, o Departamento do Tesouro dos EUA, baseando-se na lei do bloqueio, fechou mais de 80 sítios de internet relacionados a Cuba, alegando que eles promoviam comércio. A única exceção foi justamente o blog de Sánchez, embora lá também haja venda de livros. Aliás, o sistema de pagamento utilizado por ele, o Paypal, e o de “copyright” que protege os textos da blogueira estão igualmente vedados a qualquer outro cidadão cubano, pelas mesmas razões (5).

Em recente entrevista a Lamrani, feita em Havana, Sánchez disse que seu blog não pode ser acessado de Cuba, como costuma “denunciar” aos dóceis jornalistas da mídia dominante. Só que desta vez foi desmentida no ato pelo entrevistador, que havia acabado de entrar na página sem qualquer restrição. Então, espertamente se corrigiu: “com freqüência ele fica bloqueado” (6). A verdade é que o blog – assim como qualquer outro sítio – jamais foi objeto de medida repressiva do governo cubano. Isso é comprovado pela Alexa - The Web Information Company, que mede o volume de acesso de páginas de internet do mundo inteiro: segundo seus dados, o portal Desde Cuba, que abriga o blog de Sánchez, tinha 7,1% do seu tráfego originário de equipamentos cubanos, no final de 2009 (7).

O blog de Sánchez também foi distinguido em 2008 como um dos 25 melhores do mundo pela TV CNN, além de ter sido premiado pela revista Time e pela TV Deutsche Welle. As justificativas das premiações e honrarias alegam a coragem cívica de sua idealizadora e exaltam a qualidade de suas crônicas, embora elas se caracterizem, na verdade, por uma descrição pouco sutil da situação cubana, num tom catastrofista, sem qualquer nuance. Em sua prosa simplista, Cuba não passa de uma “imensa prisão com muros ideológicos”, onde se ouvem os “gritos do déspota” e as pessoas vivem entre “o desencanto e a asfixia econômica”, por culpa exclusiva do governo. Não há programas sociais bem-sucedidos, mesmo que eles sejam reconhecidos até pelo Banco Mundial, assim como não há fatores externos que agravam as dificuldades do país – exatamente como no diagnóstico maniqueísta da extrema-direita de Miami.

Apesar de tudo, após se casar com um alemão e se estabelecer na Suíça entre 2002 e 2004, Yoani Sánchez não só decidiu voltar espontaneamente a esse inferno que descreve com tintas carregadas, como implorou ao governo cubano que anulasse a sua condição de emigrada (8). Definitivamente, não estamos diante de uma amadora que resolveu despretensiosamente escrever sobre sua rotina e a de seu país, como ela é descrita pela mídia dominante.

NOTAS

(1) Diversas auditorias pedidas por congressistas concluíram que havia desvio e corrupção envolvendo esse dinheiro, mas a "ajuda" continuou, a pedido dos próprios dissidentes, como Elizárdo Sánchez e Martha Beatriz Roque.

(2) José Pertierra. La guerra contra Cuba: Nuevos presupuestos y la misma premisa. CubaDebate, 02/04/2010. http://www.cubadebate.cu/opinion/2010/04/02/guerra-eeuu-contra-cuba-nuevos-presupuestos-misma-premisa/.

(3) Norelys Morales Aguilera. Si los blogs son terapéuticos ¿Quién paga la terapia de Yoani Sánchez?. La República , 13/08/2009. http://larepublica.es/firmas/blogs/index.php/norelys/main-32/?paged=3.

(4) Pascual Serrano. Yoani en el país de las paradojas. Blog Pessoal, 19/01/2010. http://blogs.publico.es/dominiopublico/1781/yoani-en-el-pais-de-las-paradojas/.

(5) Salim Lamrani. Cuba y la “ciberdisidencia”. Cubadebate, 26/11/2009. http://www.cubadebate.cu/opinion/2009/11/26/cuba-y-ciberdisidencia/.

(6) Repórter desmascara blogueira cubana Yoani Sánchez em entrevista. Portal Vermelho, 25/04/2010. http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=128182&id_secao=7.

(7) Ver http://www.alexa.com/siteinfo/desdecuba.com. O jornalista espanhol Pascual Serrano solicitou a amigos de Havana que tentassem acessar o blog de Yoani Sánchez no mesmo horário. De cinco diferentes computadores, alguns residenciais, outros públicos, usando diferentes provedores, quatro entraram na página sem problema. Pascual Serrano. El blog censurado en Cuba. Rebelión, 26/03/2008. http://www.rebelion.org/noticia.php?id=65134.

(8) Ela contou em seu blog que se surpreendeu com a existência, no serviço de imigração, de fila de pessoas que retornam a Cuba após terem pedido para sair.



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