domingo, 12 de setembro de 2010

Entrevista - Maria da Conceição Tavares

''Não tem mais centro e periferia'', afirma Maria da Conceição

A ascensão da China, com uma demanda por produtos primários que vai durar décadas, mudou a divisão internacional do trabalho e tornou datada a dicotomia entre industrialização e produção de commodities que marcou a trajetória brasileira desde os anos 1930. Quem afirma é a economista Maria da Conceição Tavares, veterana expoente do desenvolvimentismo, que durante o século XX propôs a ação do Estado para a industrialização, a fim de superar a desvantagem nas relações de troca no antigo sistema sob hegemonia econômica dos EUA - que, ao também produzirem matérias-primas, forçavam a baixa de seus preços. "Não tem centro e periferia como antes. Há países de desenvolvimento intermediário, entre os quais estamos", afirma Conceição. Ela deu entrevista à Folha às vésperas de ser homenageada amanhã, no Rio, no lançamento do livro "O Papel do BNDE na Industrialização do Brasil", fruto de pesquisa que coordenou para o Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. O novo cenário não quer dizer, afirma, que o país deva descuidar do parque industrial. Ela se preocupa com a avalanche de importações e defende o papel do BNDES no apoio a grandes empresas nacionais. Petista, Conceição aposta que Dilma Rousseff mudará a orientação ortodoxa do BC, caso eleita, e diz que o tucano José Serra, colega do tempo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) com quem há 40 anos escreveu um artigo marco, "Além da Estagnação", é conservador na área social. A entrevista é de Cláudia Antunes e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 12-09-2010.
Fonte: UNISINOS


Um dos problemas recorrentes do período de industrialização abordado no livro é o déficit no balanço de pagamentos. Hoje essa preocupação surge de novo. Os riscos são os mesmos?

Não, naquela altura o problema era basicamente a rigidez da pauta de exportações, que não é o caso agora. A gente só tinha produtos primários e o único período em que houve aumento de preços das matérias-primas foi durante a Guerra da Coreia (1950-1953). Além disso, o processo de substituição de importações não poupava divisas, pelo contrário, era para substituir importações por produtos internos. Ao fazer isso, ampliava o mercado interno e ampliava a demanda [por bens de capital importados para aumentar a produção]. Hoje em dia você tem uma indústria montada. O problema é o câmbio.

Mas há toda a preocupação com a primarização da pauta de exportações brasileiras.

Isso não tem nenhum cabimento, porque a primarização da pauta de exportações de hoje não se parece nada com a de então. Ao contrário daquela época, quando havia relações de troca desfavoráveis, as relações são favoráveis. Quem demanda produtos primários é a China e a Ásia inteira, que crescem muito mais do que o resto do mundo. Naquela época, os EUA eram nossos concorrentes.

O candidato José Serra fala muito do risco de desindustrialização no Brasil. A sra. acha que existe esse risco?

Desindustrialização houve no governo deles, do Fernando Henrique, com uma política de câmbio completamente irresponsável, uma taxa de juros alta, que começou a afrouxar a partir do segundo mandato. O problema de agora é que, com a crise mundial, o dólar desvalorizou e todas as moedas valorizaram, exceto a moeda chinesa, que está amarrada ao dólar e controlada, com controle de capitais. O resto foi para o diabo.

Agora é um problema de valorização e isso não afeta as exportações. Isso afeta as importações, que estão disparando. A gente não sabe se estão disparando como reação apenas ao câmbio ou à recuperação da economia. Eu acho que são os dois. A indústria sofreu um abalo em 2009, e neste ano recuperou com muita força. Agora está desacelerando. Tem que estar sempre avaliando. Se você deixar entrar à galega acaba desindustrializando.

E o que pode ser feito?

O próprio ministro da Fazenda já avisou que tem que controlar essa taxa de câmbio, não pode deixar rolar.

Mas o câmbio não tem relação com os juros do Banco Central, que atraem capital de fora?

Tem, mas não só. Porque a valorização deu em todos os países, mesmo os que praticam taxas de juros negativas, que é o caso do Japão. É a situação particular do dólar agora que está fazendo isso.

A situação, portanto, não se parece nada com a do período entre 1950 e 1980. Não tem crise no balanço de pagamentos no sentido clássico. E muito menos dívida externa. Conseguimos passar essa crise sem problemas na dívida externa, com reservas, coisa que nunca aconteceu em nenhuma crise internacional desde o século 19. Agora, tem que ter uma política industrial mais clara, uma política cambial obviamente controlada, que não se resolva apenas com os juros.

Outra discussão que tem uma analogia com o período atual é a ideia de criar um mercado de capitais privado, bancos de investimentos privados que financiem investimentos de longo prazo, o que foi tentado pelo Roberto Campos no primeiro governo da ditadura. A ideia do mercado de capitais estava lá na reforma administrativa Bulhões-Campos. O problema é que ele veio com a ideia dos bancos de investimentos, que não funcionaram.

Mas essa discussão volta agora, não?

A dos bancos de investimentos, não. O problema é que nem os bancos nem os mercados de capitais não estão financiando desenvolvimento em longo prazo.

E é possível que isso, que nunca aconteceu, aconteça agora?

Eu não acredito muito. Porque na verdade o mercado de capitais serve basicamente em toda parte não é para financiar desenvolvimento, é para transformar patrimônio. Mas enfim, essa é uma ideia antiga, continuam a fazer esforço. O financiamento na verdade depende mais do crédito de longo prazo, e aí é que se tem que arrumar um jeito de que haja um crédito em longo prazo que não dependa apenas do BNDES e da Caixa Econômica, que carregam nas costas.

Como avalia às críticas feitas ao perfil dos empréstimos do BNDES, para grandes grupos?

A imprensa conservadora, que nunca gostou do BNDES, vem com esse papo de que a capitalização [do banco] vai para a dívida pública, o que não é verdade. Formalmente vai para a dívida fiscal, mas na verdade não é assim em longo prazo. Porque você empresta, mas eles retornam. E o retorno do investimento é sempre positivo. O BNDES não está emprestando a ninguém com retorno negativo.

Mas até o Carlos Lessa [ex-presidente do BNDES] afirma que o banco deveria ser mais exigente sobre investimentos no Brasil ao fazer empréstimos a grandes empresas.

Lessa nesse particular discrepa do [Luciano] Coutinho, que tem a visão do que ocorreu na Ásia, no Japão, na Coreia, do "pick the winner" [escolha o vencedor], que tem que escolher as empresas vencedoras para que elas sejam competitivas lá fora, para que elas se internacionalizem com poder de mercado. Essa é a única diferença, porque o Lessa é desenvolvimentista, o Coutinho também. Só tem desenvolvimentista agora. Liberal, só tem a charanga.

A Dilma e o Serra também são desenvolvimentistas.

Do ponto de vista da operação fiscal, o Serra é ortodoxo, e isso é ruim. Ele quer acelerar a contração do gasto público. No fundo, ele não leva a sério as políticas de bem-estar social, a universalização da educação, da saúde, que tornaram o Orçamento mais pesado. Se cortar, não se pode fazer nada de política universal, tem que ficar só com política para pobre.

Mas não há dúvida de que o Serra também é desenvolvimentista do ponto de vista industrial. O problema dele são os programas sociais, o aumento da Previdência, do salário mínimo, todas as medidas de alcance social mais profundo que o Lula tomou. Nas políticas compensatórias, eu não creio que ele voltaria atrás, que ninguém é maluco. A universalização é que é o problema, as políticas sociais de longo alcance. O gasto com educação, saúde, Previdência.

No segundo governo Vargas [1951-1954], quando começa o Plano de Reaparelhamento Econômico, o ministério lembra o do primeiro governo Lula, com empresários e monetaristas no comando da política econômica. Como interpretar essa coincidência?

Por sorte, depois do interregno monetarista do [Eugenio] Gudin [ministro da Fazenda de Café Filho, entre 1954 e 1955], veio o JK, que era desenvolvimentista. O [Horacio] Lafer [ministro da Fazenda de Vargas] queria fazer presidente do BNDE o Gudin, e não conseguiu, porque o Vargas não dormia de touca. O que ele fez é foi compor uma parte da diretoria do banco com pessoal que veio da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos [1951-1953], entre os quais o Roberto Campos e o Glycon de Paiva, que ficaram como diretores, e colocou o homem dele, que era o gaúcho Ari Frederico Torres, como superintendente.

O problema é que o homem dele não entendia muito de economia, e por aí não foi. Mas havia os diretores que eram da Assessoria Econômica do Vargas. Então a assessoria do banco era composta metade de conservadores e metade de nacionalistas.

No que diz respeito a Lula, graças a Deus caiu o ministro da Fazenda [Antônio Palocci] e entrou o [Guido] Mantega, que é desenvolvimentista. O problema foi o Banco Central. O Banco Central é problema sempre, porque a estrutura do BC foi montada de tal maneira que os que não pensam da mesma maneira não têm futuro.

Um dos meninos mais brilhantes da atual Fazenda é o Nelson Barbosa [secretário de Acompanhamento Econômico]. Ele é um keynesiano um pouco ortodoxo. Ele é originariamente do BC, fez concurso e passou. O [Luiz Eduardo] Melin [chefe de gabinete da Fazenda] também é do BC. Mas eles não podem fazer nada, porque começam uma carreira e tem em cima a diretoria que é toda conservadora.

Tem é que fazer com o BC o mesmo que foi feito no BNDES pelo Vargas, uma diretoria mista, metade conservadora, para agradar os banqueiros e eles não encherem muito o saco, senão eles enchem mesmo, e outra metade para ajudar o desenvolvimento, fazer uma política monetária menos estúpida.

Quer dizer, o conservador no governo Lula foi só a política monetária. E não foi pouca porcaria, eu concordo. Briguei para burro.

Mas isso num governo Dilma pode mudar?

Com certeza vai mudar. É só esperar e ver. Mas não é mole, porque o pessoal mais desenvolvimentista tem muito pouca prática de mercado. Tem que ter os que têm prática de mercado, porque senão você não consegue operar o banco. Houve sempre uma tensão muita grande entre a Fazenda e o BC [no segundo mandato de Lula], que nunca foi o caso na história do Brasil, em que sempre Fazenda e BC eram conservadores e Planejamento, Indústria e Comércio eram desenvolvimentistas. Mas isso não é mais assim.

Mas é melhor ter a tensão?

Por mim não, mas, como eu estou dizendo, não tem economista progressista com domínio de BC, com exceção desses dois que eu mencionei, que foram do BC. Foram meus alunos, trabalharam comigo, conhecem teoria monetária. A esquerda tem mania de não gostar de política monetária. A única monetarista de esquerda era eu, mas é óbvio que eu não posso ser presidente do BC com 80 anos e com esse temperamento que eu tenho. Tem também o [Luiz Gonzaga] Beluzzo, o próprio Luciano Coutinho.

Então hoje, ao contrário da década de 90, começa a haver um predomínio do pensamento desenvolvimentista?

No Brasil sim, mas não no mundo. Olha para a Europa. A Europa está num reacionarismo conservador que é uma desgraça, está pior que os EUA. Nos EUA, até os conservadores viraram keynesianos por causa da crise. Na Europa, os caras estão fiscalistas ao extremo, estão arrebentando com a Europa, tem uma tendência japonesa [de estagnação] acentuada.

Essa conjuntura internacional, em que a China é o grande demandante, favorece o Brasil?

É favorável. Quem é hoje o grande centro manufatureiro no mundo? É a Ásia, ninguém compete em produtos manufaturados com eles, mesmo com a taxa de câmbio melhor. Então aqui tem que ter um certo controle das importações, mesmo disfarçado. Mas como, por outro lado, eles são realmente os maiores demandantes de matérias-primas, hoje, sobretudo para a América do Sul, Brasil, Argentina, Chile, isso faz uma diferença cavalar.

E dumping [venda abaixo do valor] de produtos chineses?

A China não está tendo o sucesso que está por causa de dumping, é por causa da política inteira. Se houver dumping é feito pelas multinacionais que lá estão, porque, ao contrário do Japão, a China não fez restrições a que na área exportadora entrassem as multinacionais.

Você não pode deixar de levar em conta que mudou a divisão internacional do trabalho. Paradoxalmente, não vejo muita gente mencionar isso. Houve uma mudança radical da divisão internacional do trabalho, na qual nós estamos bem colocados porque a gente exporta para todo mundo. E, em particular, no que diz respeito a matérias-primas, exportamos mais para a China do que para a Europa, por exemplo. Nunca exportamos matérias-primas para os EUA.

Mas a China também pode competir com os produtos industriais brasileiros em terceiros mercados.

Ela pode competir com quem ela quiser. Claro que temos que nos precaver. Por que a tendência hoje entre países em desenvolvimento é de acordos bilaterais, quando sempre fomos multilateralistas? É porque o comércio multilateral está de pernas para o ar. A crise americana arrebentou com o sistema todo, com o sistema monetário, o sistema de comércio internacional.

Estamos num período de transição, no qual acho que o Brasil tem chance. Ter uma disponibilidade de recursos naturais como nós temos, que vai da água ao petróleo, não é qualquer país que tem. Isso ajuda, ao contrário de antes. Não estamos baseados no café, mas numa pauta totalmente diversificada. E a coisa do pré-sal vai ajudar.

Quando teve o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, com o Geisel (1975-1979), ele tentou dar um salto qualitativo tecnológico.

Tentou, e nós começamos a exportação de manufaturas para valer.

Mas o Brasil ainda tem dificuldade de desenvolvimento tecnológico, por exemplo em computadores.

Tem menos do que tinha na época. No Geisel, ainda estávamos começando e a área de computadores fracassou. O projeto Cobra foi um desastre. Aí só avançamos na área bancária, temos a mais desenvolvida em matéria de computação do mundo. Estamos com tecnologia avançada em aviões, em perfuração de petróleo, o que não é pouca porcaria.

Mas em relação à competição chinesa em informática, máquinas?

O que tem que entender é que a China é um híbrido. Não pode ser considerada mais um país em desenvolvimento, mas tem uma área subdesenvolvida, com uma população gigantesca, no campo. A China ainda tem que caminhar para dentro, desenvolver o mercado interno. Mas ela tem um solo esgotado. Ao contrário da mudança de centro [capitalista] da Inglaterra, que não tinha produtos primários, para os EUA, que tinham, o que levou ao fim do modelo primário-exportador na América Latina, a China vai ter décadas ainda importando produtos primários, tanto na parte alimentar quanto na de minério e petróleo. Para nós está bom.

Mas quando se fala do risco de desindustrialização...

É por causa das importações e do câmbio. O resto quem fala está fazendo blá-blá-blá, porque toda a indústria está aí ainda.

Mas um argumento é que a indústria é que dá emprego de qualidade para os jovens, e não o setor primário.

Não é verdade. Os empregos de qualidade costumam ser no setor terciário, nos bancos e nos serviços de utilidade pública. Pelo lado do emprego eu não estaria preocupada. Estamos com problema de desemprego estrutural, mas devido à pobreza. Com uma política de combate à pobreza e com uma política de educação você repõe as bases de um país desenvolvido. Desta vez, acho que a maldição do [Celso] Furtado, que era desenvolvimento junto com subdesenvolvimento, pode terminar.

Na indústria, a parte de capital estrangeiro em geral não faz desenvolvimento tecnólogico, traz da matriz, o que é um problema. Mas, como a divisão internacional do trabalho está mudando, também há a tendência de adaptar produtos a cada mercado em que as empresas estão instaladas.

Quanto à indústria nacional, o Ministério de Ciência e Tecnologia e a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] continuam fazendo o que podem para fazer semeadura de tecnologia, sobretudo na pequena e na média empresas. O BNDES faz também para a grande empresa, até porque ninguém acredita que seja possível competir lá fora sem isso. Se não tivéssemos tido avanço tecnológico em aços especiais, claro que a Gerdau não estaria com filiais até nos EUA.

Eu tenho trabalhado na questão da internacionalização do capital, e tenho a impressão que por esse lado não estamos tão mal. O nosso problema é fechar a brecha entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento nosso, que é menos problema do que para a China e para a Índia.

São situações muito díspares. Não tem centro e periferia como antes. Tem países de desenvolvimento intermediário, entre os quais estamos. A Rússia sim desmantelou a indústria toda. Só exporta gás e petróleo. Isso é que é uma situação ruim. Está lá no Bric [Brasil, Rússia, Índia e China] um pouco fora de propósito.

A discussão agricultura versus indústria é datada, do pós-Segunda Guerra. Ninguém vai fazer uma opção por um outro. Precisa de agricultura familiar, de agrobusiness, da indústria de transformação.

Agora, estou de acordo que, na indústria eletroeletrônica, por causa da Zona Franca de Manaus, montamos uma fábrica de montagem e não avançou ainda. Mas vai avançar, não tem dúvida. Até porque o BNDES tem política setorial, como na farmacêutica e na química.

E a acusação de que o governo Lula escolhe as empresas beneficiadas?

Política industrial só horizontal não vai para lugar nenhum. Tem que continuar as horizontais, mas tem que fazer as setoriais. Se não escolher setores e empresas, não avança. Não estamos num mundo de concorrência perfeita. Estamos num mundo monopolista. Se não tiver grande empresa aqui, não vamos para lugar nenhum.

O período do livro é caracterizado como a "modernização conservadora" do Brasil. O Brasil ainda vive esse fenômeno ou pode acertar contas nesse ponto?

A parte da modernização conservadora que diz respeito ao grande capital, bancário, industrial, uma parte das construturas, vive. Grande capital é grande capital, está pouco se lixando para ideologia. É conservador no sentido de que não teve uma democratização da propriedade.

Não teve reforma agrária.

Tem que terminar, com a pequena produção agrícola independente, e a pequena e a média empresas com tecnologia e apoio. Essa ideia do cartão BNDES, que aliás foi o Lessa que inventou, com o qual se pode pedir R$ 1 milhão para fazer uma padaria, montar uma pequena empresa. O Lessa botou o BNDES outra vez no espírito de ser um banco de desenvolvimento. No governo de Fernando Henrique, era só um banco da privataria. Só não foi ameaçado porque tem a indústria que demanda recursos.

A senhora está otimista, então?

Pela primeira vez na história do Brasil não há uma crise da dívida externa. Em segundo lugar, voltamos a usar o BNDES, desde o começo do governo Lula, para promover o desenvolvimento. A coisa social mudou também radicalmente. Consolidou-se a inflação baixa, não precisa ter taxa de juros lá em cima para que ela caia. Está estabilizada.

Isso muda tudo, porque a inflação é uma praga para os salários. O pessoal da esquerda não levava isso em conta, o que era uma asneira. Com inflação, nenhuma política salarial resolve. Lembra que tinha indexação dos salários e a inflação corria na frente.

Estamos numa situação bem melhor do que nunca estivemos desde a década de 30. E também com estabilidade política, por mais que façam esse banzé. Se você afirmou a democracia, se está afirmando as políticas sociais, se está continuando a política industrial, eu estou otimista, pela primeira vez, para dizer a verdade, porque em geral sou pessimista. Espero não me equivocar, mas, também, se me equivocar não vou estar viva para ver.

E como a sra. vê a situação dos EUA?

Estou com os keynesianos de lá, como o [Paul] Krugman. Acho que fizeram pouco e mal feito. Mas isso não é culpa do presidente. Ele tem um Congresso desvairadamente conservador.

Isso sim me preocupa [no Brasil]. O pessoal só presta atenção na eleição para a Presidência, mas é importante ver o Congresso. Vamos ver se dá um Senado um pouco melhor, mas de qualquer maneira a capacidade de negociação continua. Nisso o velho [economista ortodoxo Otavio Gouveia de] Bulhões [1906-1990], meu mestre antigo, tinha razão, que o Executivo é mais forte, mas para fazer reformas tem que passar pelo Congresso.

Algumas coisas, como reforma tributária e política, dependem do Congresso, e em geral os congressistas não querem mudar o status quo. São reformas que eu vejo que são importantes, e que o Congresso provalmente vai continuar no chove não molha. Vamos ver se a gente consegue.

Mas a reforma tributária deve reduzir a carga como proporção do PIB ou a natureza dos impostos?

Como vai mudar a carga sobre o PIB, com as demandas de política pública que você precisa fazer? Não, tem que mudar a carga mal distribuída e a estrutura dos tributos, que é muito complexa, muito atrapalhada. Continua aquela briga entre os Estados sobre o ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias].

Hoje o Lula já sacou que precisa fazer aliança nos dois sentidos, com o PMDB para uns fins e com os partidos minoritários da esquerda para o outro. Acho que não está tão difícil como já esteve.

Mas a sra. acha que, qualquer que seja o sucessor do Lula, vai ter o jogo de cintura dele?

Qualquer que seja é problema seu. Eu acho que já está decidido. Mas pode ser de novo que eu esteja otimista demais. O fato é que, com Dilma ou Serra, haverá o mesmo problema no Congresso, essas duas reformas serão difíceis. Depende de quem eles botarem para ser o negociador com o Congresso.

Evidente que a capacidade do Lula ninguém vai ter mais neste país, porque o único com capacidade semelhante foi o Vargas. Acabou mal, coitado, o que não é o caso do Lula, que negociou durante oito anos e está terminando muito bem. Isso também é uma novidade. Você já viu algum presidente que veio do povo como esse, apesar de todos os percalços e denúncias, ter conseguido isso? Além do fato de hoje o Brasil estar no cenário internacional graças a ele.

São coisas que, para mim, marcam uma mudança e uma transição. Estou convencida de que estamos numa transição e que efetivamente, ganhe quem ganhe, não vão arrebentar com o Brasil, embora eu prefira a Dilma porque conheço o caráter progressista dela e o Serra ficou mais conservador.

sábado, 11 de setembro de 2010

Entrevista - Andrea Fumagalli

Os impactos da financeirização sobre o sujeito


Economista italiano Andrea Fumagalli, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Doutor em Economia Política, Fumagalli é professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Fonte: UNISINOS



IHU On-Line - Por que considera a financeirização como uma forma de biopoder?

Andrea Fumagalli - No paradigma atual do capitalismo cognitivo, os mercados financeiros, longe de serem o local de rendimento parasitário improdutivo, são o motor da economia. Eles representam o lugar onde valoriza-se, ao mesmo tempo, a produtividade intangível e cognitiva e executa-se a privatização dos serviços sociais. Canalizando de modo forçado parte crescente da renda do trabalho (pensões e indenizações, além de renda que, por intermédio do estado social, traduzem-se nas instituições de proteção da saúde e da educação pública), substituíram o Estado como segurador social. Desse ponto de vista, representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. Exercitam, portanto, o biopoder. Os mercados financeiros, assim, assumem o lugar do antigo estado de bem-estar keynesiano e levam a cabo as formas indiretas de redistribuição do capital para o trabalho, gerenciando de modo direto e distorcido as quotas crescentes de rendimento do trabalho que ali são canalizadas de forma mais ou menos forçada. Enquanto isso, as grandes instituições financeiras multinacionais são hoje organizações que valorizam "indiretamente" a acumulação da produção mundial, assim como no paradigma fordista os lucros das grandes multinacionais manufatureiras foram o espelho das relações de força entre o capital industrial e o trabalho assalariado.

Os mercados financeiros — por meio dos índices de mercado — representam, em resumo, um tipo de multiplicador real da economia, e neles condensam-se todas as expectativas dos grandes operadores econômicos. Não é por acaso que, na década passada, os bancos centrais fizeram depender as escolhas de política monetária (taxas de juro e a oferta de moeda corrente), em função do objetivo de estabilizar a dinâmica dos mercados financeiros, com a esperança — totalmente ilusória — de limitar as oscilações e a volatilidade. Além disso, com o advento do capitalismo cognitivo, o processo de exploração perde a unidade de medida quantitativa ligada à produção industrial. Tal medida foi, de alguma forma, definida pelo conteúdo do trabalho necessário para a produção de mercadorias, medida pela tangibilidade da produção própria e pelo tempo necessário para a produção.

Com o advento do capitalismo cognitivo, a valorização tende a engajar-se nas várias formas de trabalho, que tragam as horas de trabalho efetivamente autorizadas para coincidir sempre mais com o tempo de vida. Hoje, o valor do trabalho na base da acumulação capitalista é também o valor do conhecimento, dos afetos e dos relacionamentos, do imaginário e do simbólico. O êxito dessas transformações biopolíticas é a crise da medida tradicional do valor-trabalho e, com ela, a crise da forma-lucro. Uma possível solução "capitalista" era medir a exploração da cooperação social e do intelecto geral por intermédio da dinâmica dos valores de mercado. O lucro transforma-se assim em renda, e os mercados financeiros tornam-se o lugar da determinação do valor-trabalho, o que se transforma em valor-finança que não é outro senão a expressão subjetiva da expectativa dos lucros futuros realizados pelos mercados financeiros que acumulam, desse modo, um rendimento. É esse o biopoder das finanças contemporâneas.

IHU On-Line - Em que sentido a crise das finanças é crise de governança financeira do biopoder atual?

Andrea Fumagalli - A crise de governança socioeconômica com base no papel dos mercados financeiros tem duas origens. A primeira diz respeito ao fato de que a atual crise financeira marca o fim da ilusão de que o financiamento pode constituir uma medida de trabalho, pelo menos no contexto atual de fracasso da governança cognitiva do capitalismo contemporâneo. Assim, a crise financeira é também uma crise do desenvolvimento capitalista.

A segunda está na instabilidade estrutural do capitalismo atual, o que não pode ser sanado com ações corretivas de natureza reformista. Na presença de ganhos de capital, os mercados financeiros desempenham no sistema econômico o mesmo papel que, no contexto fordista, desempenhava o multiplicador keynesiano (ativado por gastos deficitários). No entanto — ao contrário do multiplicador keynesiano tradicional — isso leva a uma redistribuição destorcida de renda. Para que tal multiplicador seja operativo (> 1), é necessário que a base financeira (ou seja, a extensão dos mercados financeiros) esteja constantemente aumentando e que os ganhos de capital acumulados sejam, em média, superiores à perda do salário mediano (que, a partir de 1975 em diante, foi de aproximadamente vinte por cento). Por outro lado, a polarização das rendas aumenta o risco de insolvência das dívidas que estão na base do crescimento da mesma base financeira e reduz o salário médio. Aqui, então, abre-se a primeira contradição que faz com que a governança socioeconômica dos mercados financeiros, por intermédio da distribuição dos ganhos de capital, possa ser sustentada ao longo do tempo.

Endividamento crescente

A crise da governança não é apenas uma crise "técnica", mas é também, e sobretudo, uma crise "política". A condição para que os mercados financeiros possam apoiar as fases de expansão e de crescimento real seria o aumento constante da base financeira. Em outras palavras, é necessário que a quota de riqueza mundial canalizada para os mesmos mercados financeiros cresça constantemente. Isso implica um contínuo aumento da relação entre débito e crédito ou por meio do aumento do número de pessoas endividadas (grau de extensão dos mercados financeiros) ou por meio da construção de novos instrumentos financeiros que se alimentam do comércio financeiro já existente (o grau de intensidade mercados financeiros). Os produtos derivados são um exemplo clássico dessa segunda modalidade de expansão dos mesmos mercados financeiros. Sejam quais forem os fatores considerados, a expansão dos mercados financeiros é acompanhada necessariamente seja pelo aumento do endividamento, seja pelo aumento da atividade especulativa e dos riscos envolvidos. Trata-se de uma dinâmica intrínseca ao papel dos mercados financeiros como a pedra angular do capitalismo cognitivo.

Falar sobre a especulação excessiva para a ganância dos gestores ou dos bancos não tem absolutamente nenhum sentido e só pode servir somente para desviar a atenção das verdadeiras causas estruturais dessa crise. O resultado final é, necessariamente, a insustentabilidade de um endividamento crescente, especialmente quando começa a ficar endividada parte da população com maior risco de insolvência: exatamente aqueles estratos sociais que, devido à precariedade dos processos de trabalho, não estão em condições de desfrutar daquele “efeito riqueza” que a participação nos ganhos do mercado de ações permitia aos estratos sociais mais abastados.

Nó contraditório

A crise de inadimplência no crédito imobiliário tem, assim, a sua origem em uma das contradições do capitalismo cognitivo contemporâneo: a natureza irreconciliável de uma distribuição desigual de renda com a necessidade de alargar-se a base financeira para continuar a desenvolver o processo de acumulação. Esse nó contraditório não é outro senão o vir à luz de uma irredutibilidade (superavit) da vida de boa parte dos atores sociais para subsunção (eles são fragmentados em singularidade ou definíveis nos segmentos de classe). Um superavit que hoje se expressa em uma multiplicidade de comportamentos (das formas de infidelidade às hierarquias corporativas, à presença de comunidades que se opõem à governança territorial, ao êxodo individual e grupal dos ditames de vida impostos pelas convenções sociais vigentes, até ao desenvolvimentode formas de auto-organização no mundo do trabalho e da revolta aberta contra novos e velhas formas de exploração nas favelas das megalópolis do Sul do mundo, nas metrópoles ocidentais, nas áreas de maior industrialização recente no sudeste da Ásia como na América do Sul). Um excedente que pode ser encontrado, declarando em uníssono, nos quatro cantos do planeta, que não está disponível para pagar por essa crise. A instabilidade incurável do capitalismo contemporâneo é também o resultado desse excedente.

IHU On-Line - Quais são os efeitos dessa crise em termos econômicos e subjetivos?

Andrea Fumagalli - Os efeitos da crise podem ser analisados em diferentes níveis: o macroeconômico e o macrorregional, ou seja, do ponto de vista dos efeitos sobre as hierarquias econômicas mundiais e o nível mais microeconómico e subjetivo relativo aos efeitos sobre a vida dos seres humanos.

Nível macroeconômico

A capacidade dos mercados financeiros para criar "valor" está relacionada ao desenvolvimento de "convenções" (bolhas especulativas), capazes de criar expectativas tendencialmente homogêneas que empurram os principais operadores financeiros a apoiarem determinados tipos de atividade financeira. (Ver A. Orléan, Da Euforia ao Pânico. Pensando a Crise Financeira e Outros Ensaios, Ombre Corte, 2010). Na década de 1990, era a Economia da Internet; nos anos 2000, a atração veio do desenvolvimento de mercados asiáticos (com a China entrando na OMC em dezembro de 2001) e da propriedade imobiliária. Os efeitos devastadores do colapso da bolha imobiliária, em 2008, exigia uma forte intervenção do estado para tapar as lacunas da balança abertas nas grandes instituições bancárias, de seguros e financeiras. O Estado desenvolveu assim o papel de emprestador de última instância, e, consequentemente, a fundo perdido e sem qualquer estímulo ao pedido. É a recessão atual e a forte introdução de liquidez pública, mais que o excesso de despesas públicas, a principal causa do deficit/PIB. Em um cenário similar, estão os países mais dependentes da dinâmica econômica internacional a serem os mais penalizados, ou seja, os países que desempenham o papel de subfornecedores, sem poderem influenciar a trajetória tecnológica dominante. A área do Mediterrâneo está entre eles.

A especulação financeira pretende, assim, desenvolver uma nova convenção, que podemos definir como "Acordo do bem-estar", em que o objeto dessa mesma especulação é diretamente a prosperidade (o bios) dos indivíduos. Dos acordos de tipo setorial à alta intensidade cognitiva (economia de Internet), passando pelas convenções relacionadas ao desenvolvimento de áreas territoriais globais, chega-se, assim, a acordos que têm como objeto as condições de vida e de trabalho dos seres humanos. O biopoder das finanças confirma-se penetrante e cada vez mais direta. A crise europeia e a dificuldade dos EUA. e do Japão evidenciam a capacidade de manutenção econômica demonstrada pelos países do Leste da Ásia e da América Latina (e, em primeiro lugar, do Brasil). A crise atual, portanto, põe em discussão a questão da hegemonia financeira dos EUA. e a centralidade dos mercados de ações anglo-saxões no processo de financiamento. A saída dessa crise, necessariamente, marcará um deslocamento do centro de gravidade financeiro para o Leste e em parte para o Sul (América). Já, em nível produtivo e de controle dos escambos comerciais, ou seja, em nível real, os processos de globalização cada vez mais evidenciaram uma mudança do centro produtivo para o leste e para o sul do mundo. Desse ponto de vista, a atual crise financeira pôs fim a um tipo de anomalia que tinha caracterizado a primeira fase da expansão do capitalismo cognitivo: o deslocamento da centralidade tecnológica e do trabalho cognitivo para Índia e para a China, na presença da manutenção da hegemonia financeira no Ocidente. Quando o desenvolvimento dos países orientais (China e Índia), do Brasil e África do Sul era ainda impulsionado pelos processos de terceirização e subcontratação laboral no estrangeiro ditadas pelas grandes corporações ocidentais, não era possível identificar uma distonia espacial entre as duas principais variáveis de controle do capitalismo cognitivo: o controle da moeda-finança, por um lado, e o controle da tecnologia de outro. A atual crise financeira pôs fim à tal distonia espacial.

O primado tecnológico e o financeiro tendem desde então a se articular também em nível geoeconômico. Resulta que o capitalismo cognitivo, como um paradigma de acúmulo bioeconômico, torna-se hegemônico até na China, na Índia e no Sul do mundo. Isso não significa, seja dito claramente, que eles tenham deixado de ter importantes diferenças também radicais entre as diferentes áreas e os diferentes tempos por meio dos quais se distendem os processos capitalistas de valorização e por meio dos quais se rearticula continuamente a composição de trabalho controlado e explorado pelo capital.Também não é possível, então, estabelecer uma série de conceitos passepartout igualmente aplicáveis em Nairobi, em Nova York e em Xangai. O ponto é, especialmente, que o próprio sentido das diferenças radicais entre as localidades, as regiões e os continentes deve ser recomprimido dentro da rede heterogênea de sistemas de produção, de temporalidade e experiências subjetivas do trabalho, que constituem o capitalismo cognitivo.

Nível subjetivo e microeconomico

Os principais efeitos microeconômicos preocupam-se com a dinâmica do mercado de trabalho. As crises econômicas raramente produzem processos de transformações sociais, especialmente rebeliões. E frequentemente são utilizadas como uma gazua para iniciar o processo de reestruturação, também nos contextos em que não seriam justificadas. O resultado final, na verdade, é um aumento da insegurança, habitualmente justificada pela necessidade de combater o desemprego crescente. Se, depois de tudo isso, vêm unidas a políticas econômicas fiscais recessivas (como está acontecendo na Europa), ao agravamento das condições de trabalho e renda, também se adiciona o desmantelamento dos serviços sociais e a privatização da vida. Aqui estão as principais tendências:

• Uma vez terminada a fase decadente e recessiva do PIB, na atual fase de estagnação, o mercado de trabalho torna-se ainda mais flexível.

• Nesse contexto, a crise evidencia o grau e a intensidade da insegurança.

• Favorece-se relativamente a inserção de trabalhadores jovens (que são mais baratos e mais fáceis de serem demitidos) para substituir os de mais de quarenta anos com contratos de trabalho estáveis. Aumenta-se assim o problema dos acima de quarenta sem trabalho.

• Acentua-se o processo de terceirização, o que facilita ainda mais o processo de insegurança. Além disso, a quota de contratos atípicos aumenta também na indústria. A precariedade é condição comum, mesmo que prevaleça no setor de serviços.

• É penalizado o emprego das mulheres e interrompe-se o processo de feminização do trabalho.

• Não admira que o trabalho migrante venha ulteriormente penalizado, por meio da expulsão do mercado de trabalho.

• Em conclusão, o/a trabalhador/a migrante é diretamente dispensado, o/a trabalhador/a indígena, primeiro, é tornado inseguro e só sucessiva e eventualmente demitido.

IHU On-Line - Como podemos compreender a alienação e as doenças enquanto efeitos dessa financeirização e biopoder?

Andrea Fumagalli - Nos últimos vinte anos, o processo de mercantilização da vida (da bios) deu passos gigantescos não só do ponto de vista tecnológico (por exemplo, o desenvolvimento da genética e da biotecnologia), mas também no que respeita à subsunção das atividades culturais, criativas e ambientais. O processo de "remodelação" interessou às estruturas espaciais-urbanísticas das grandes cidades, modificando de modo estrutural a relação centro-periferia. A atividade cultural que é relacional, tornou-se uma fonte de valorização. A condição feminina e a atividade de reprodução tornaram-se paradigmas da condição econômica e precária da pós-modernidade. Tal processo teve repercussões graves para a saúde do gênero humano.

A crescente privatização dos serviços de saúde aumentou a governança biopolítica das instituições econômicas sobre o corpo humano, tanto do ponto de vista físico quanto do mental. Em termos de corpo físico, está se ampliando no mundo uma divisão social e geográfica entre os que têm acesso à medicação e ao tratamento, e os que não o tem. A instituição pública não é mais uma garantia da saúde pública, assim como tinha evoluído na Europa tecnocrática do século passado no sentido foucaltiano. Da mesma forma, o desenvolvimento da divisão cognitiva do trabalho, graças aos processos de desmantelamento da educação e da sua privatização, determina novas segmentações sociais com base na possibilidade de acesso aos diferentes níveis de ensino, muitas vezes em detrimento do desenvolvimento de uma abordagem cultural crítica e sistêmica.

Hoje, a alienação do corpo tende a tornar-se cerebral. Reduziu a separação entre as atividades manuais (o braço) e a atividade intelectual (o cérebro), entre o processo de trabalho e o produto do trabalho, mas cada vez mais, uma vez que o cérebro se tornou máquina, desenvolveu-se uma alienação cerebral, totalmente interna ao próprio processo de trabalho e à vida humana. A alienação cerebral produzida de maneira sofisticada por causa do controle social é o instrumento de domínio do biopoder atual.

IHU On-Line - Como esse biopoder e financeirização impactam na constituição do sujeito e sua autonomia?

Andrea Fumagalli - O impacto da financeirização sobre o sujeito é, ao mesmo tempo, um impacto de chantagem e medo, mas também de um consenso: chantagem de uma necessidade em um contexto de trabalho cada vez mais individualizado e precário (também do ponto de vista existencial), o consenso do imaginário estereotipado veiculado pelo sistema de informação e de comunicação simbólico (considera-se o papel dos meios de comunicação como o Facebook e a Internet, bem como o processo de atribuição de marca do consumo). A autonomia pessoal é hoje, de longe, muito mais limitada do que há trinta anos, nos dias de trabalho na fábrica. A divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho poderia ser traduzida (não automaticamente) também na separação entre coerção e liberdade potencial. Uma vez terminado o horário de trabalho, a disciplina do trabalho (principalmente no corpo físico) acabava em favor de outras estruturas disciplinares (família, gênero, escolaridade, raça etc.), embora menos difundidas sobre a mente humana a respeito das formas de controle e condicionamento social que hoje parecem prevalecer, quando as faculdades cognitivas são os principais fatores produtivos.

A autonomia individual resulta muito limitada e reprimida. È paradoxal que, na era da ideologia do indivíduo livre, o que vem reprimido é a individualidade em favor do individualismo. E sabemos bem que, entre a individualidade entendida como expressão potencial dos seus próprios talentos criativos e humanos e o individualismo como comportamento oportunista e egoísta, há uma bela diferença. Hoje, a negação da individualidade (e da sua autonomia) é expressa exatamente com a exaltação do individualismo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Noam Chomsky

10 estratégias de manipulação para manter o público alienado
Fonte: No Mundo e Nos Livros


1 – A ESTRATÉGIA DA DISTRAÇÃO

O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundações de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir ao público de interessar-se pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. "Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado, sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja como os outros animais (citação do texto 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

2 – CRIAR PROBLEMAS, DEPOIS OFERECER SOLUÇÕES

Este método também é chamado "problema-reação-solução". Cria-se um problema, uma "situação" prevista para causar certa reação no público, a fim de que este seja o mandante das medidas que se deseja fazer aceitar. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o mandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos.

3 – A ESTRATÉGIA DA GRADAÇÃO

Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, basta aplicá-la gradativamente, a conta-gotas, por anos consecutivos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990: Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que haveriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4 – A ESTRATÉGIA DO DEFERIDO

Outra maneira de se fazer aceitar uma decisão impopular é a de apresentá-la como sendo "dolorosa e necessária", obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrifício imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Em seguida, porque o público, a massa, tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que "tudo irá melhorar amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isto dá mais tempo ao público para acostumar-se com a idéia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5 – DIRIGIR-SE AO PÚBLICO COMO CRIANÇAS DE BAIXA IDADE

A maioria da publicidade dirigida ao grande público utiliza discurso, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade, como se o espectador fosse um menino de baixa idade ou um deficiente mental. Quanto mais se intente buscar enganar ao espectador, mais se tende a adotar um tom infantilizante. Por quê?"Se você se dirige a uma pessoa como se ela tivesse a idade de 12 anos ou menos, então, em razão da sugestionabilidade, ela tenderá, com certa probabilidade, a uma resposta ou reação também desprovida de um sentido crítico como a de uma pessoa de 12 anos ou menos de idade (ver "Armas silenciosas para guerras tranqüilas")".

6 – UTILIZAR O ASPECTO EMOCIONAL MUITO MAIS DO QUE A REFLEXÃO

Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional, e por fim ao sentido critico dos indivíduos.Além do mais, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar idéias, desejos, medos e temores, compulsões, ou induzir comportamentos...

7 – MANTER O PÚBLICO NA IGNORÂNCIA E NA MEDIOCRIDADE

Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. "A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que paira entre as classes inferiores às classes sociais superiores seja e permaneça impossíveis para o alcance das classes inferiores (ver 'Armas silenciosas para guerras tranqüilas')".

8 – ESTIMULAR O PÚBLICO A SER COMPLACENTE NA MEDIOCRIDADE

Promover ao público a achar que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto...

9 – REFORÇAR A REVOLTA PELA AUTOCULPABILIDADE

Fazer o indivíduo acreditar que é somente ele o culpado pela sua própria desgraça, por causa da insuficiência de sua inteligência, de suas capacidades, ou de seus esforços. Assim, ao invés de rebelar-se contra o sistema econômico, o individuo se auto-desvalida e culpa-se, o que gera um estado depressivo do qual um dos seus efeitos é a inibição da sua ação. E, sem ação, não há revolução!

10- CONHECER MELHOR OS INDIVÍDUOS DO QUE ELES MESMOS SE CONHECEM

No transcorrer dos últimos 50 anos, os avanços acelerados da ciência têm gerado crescente brecha entre os conhecimentos do público e aquelas possuídas e utilizadas pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" tem desfrutado de um conhecimento avançado do ser humano, tanto de forma física como psicologicamente. O sistema tem conseguido conhecer melhor o indivíduo comum do que ele mesmo conhece a si mesmo. Isto significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos do que os indivíduos a si mesmos.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Leonardo Boff

A pobreza da democracia brasileira

Fonte: UNISINOS


 
Tempos de campanha eleitoral oferecem ocasião para fazermos reflexões críticas sobre o tipo de democracia que predomina entre nós. É prova de democracia o fato de que mais de cem milhões tenham que ir às urnas para escolher seus candidatos. Mas isso ainda não diz nada acerca da qualidade de nossa democracia. Ela é de uma pobreza espantosa ou, numa linguagem mais suave, é uma "democracia de baixa intensidade" na expressão do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. Por que é pobre? Valho-lhe das palavras de uma cabeça brilhante que, por sua vasta obra, mereceria ser mais ouvida, Pedro Demo, de Brasília. Em sua Introdução à sociologia (2002) diz enfaticamente:"Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis "bonitas", mas feitas sempre, em última instância, pela elite dominante para que a ela sirva do começo até o fim. Político é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniquados, enriquecer-se às custas dos cofres públicos e entrar no mercado por cima…Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação"(p.330.333).

Essa descrição não é caricata, salvo as poucas exceções. É o que se constata dia a dia e pode ser visto pela TV e lido nos jornais: escândalos da depredação do bem público com cifras que sobem aos milhões e milhões. A impunidade grassa porque crime é coisa de pobre; o assalto criminoso aos recursos públicos é esperteza e "privilégio" de quem chegou lá, à fonte do poder. Entende-se porque, em contexto capitalista como o nosso, a democracia primeiro atende os que estão na opulência ou têm capacidade de pressão e somente depois pensa na população atendida com políticas pobres. Os corruptos acabaram por corromper também muitos do povo. Bem observou Capistrano de Abreu em carta de l924: "Nenhum método de governo pode servir, tratando-se de povo tão visceralmente corrupto com o nosso".

Na nossa democracia, o povo não se sente representado nos eleitos; depois de uns meses nem mais sabe em quem votou. Por isso não está habituado a acompanhá-lo e a fazer-lhe cobranças. Ao lado da pobreza material é condenado à pobreza política, mantida pelas elites. Pobreza política é o pobre não saber as razões de sua pobreza, é acreditar que os problemas dos pobres podem ser resolvidos sem os pobres, só pelo assistencialismo estatal ou pelo clientelismo populista. Com isso, se aborta o potencial mobilizador do povo organizado que pode exigir mudanças, temidas pela classe política, e reclamar políticas públicas que atendam a suas demandas e direitos.

Mas sejamos justos. Depois das ditaduras militares, surgiram em toda América Latina democracias de cunho social e popular que vieram de baixo e por isso fazem políticas para os de baixo, elevando seu nível. A macroeconomia capitalista segue mas tem que negociar. A rede de movimentos sociais, especialmente o MST, colocam o Estado sob pressão e sob controle, dando sinais de que a democracia pode melhorar.

Vejo dois pontos básicos a serem conquistados: primeiro, a proposta de Boaventura de Souza Santos que é de forjar uma "democracia sem fim", em todos os campos, especialmente na economia, pois aqui se instalou a ditadura dos patrões. Ela é mais que delegatícia, é um movimento aberto de participação, a mais ampla possível.

O segundo, é uma idéia que defendo há anos: a democracia não pode ser antropocêntrica, só pensando nos humanos como se vivêssemos nas nuvens e sozinhos, sem nos darmos conta de que comemos, bebemos, respiramos e estamos mergulhados na natureza da qual dependemos. Então, importa articular os dois contratos, o social com o natural; incluir a natureza, as águas as florestas, os solos, os animais como novos cidadãos que têm direitos de existir conosco, especialmente os direitos da Mãe Terra. Trata-se então de uma democracia sócio-cósmica, na qual os seres humanos convivem com os demais seres, incluindo-os e não lhes fazendo mal. O PT do Acre nos mostrou que isso é possível ao articular cidadania com florestania, quer dizer, a floresta respeitada e incluída no bem viver dos povos da floresta.

Utopia? Sim, no seu melhor sentido, mostrando o rumo para onde devemos caminhar daqui para frente, dadas as mudanças ocorridas no planeta e no encontro inevitável dos povos.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Carta Capital

Leão sem critérios - Impostos: a carga tributária do Brasil perpetua a desigualdade, desestimula os investimentos produtivos e é moderada sobre o patrimônio



Por Gerson Freitas Junior e Luiz Antonio Cintra.
Fonte: Revista Carta Capital, edição 604. 


De tempos em tempos, principalmente durante as eleições, esquenta o debate sobre os impostos pagos pela sociedade brasileira. Distorcida a partir da perspectiva de uns poucos atores sociais, destaque para a eterna choradeira do empresariado, a discussão em geral cria mais fumaça do que luz. Reforça-se a falsa impressão de que a carga tributária brasileira é das mais altas do planeta. E que o apetite aguçado do Leão seria a principal causa do desempenho econômico insatisfatório do País nas últimas décadas, o que também é outro mito. Longe de ser um exemplo vírtuoso para o restante do mundo, a estrutura tributária brasileira - mais do que o nível da carga - é ao mesmo tempo espelho e motor da brutal desigualdade da sociedade brasileira. Herança do período colonial, ela taxa pouco a renda e o patrimônio daqueles que ocupam o topo da pirâmide social. Um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (Ipea) indica que os 10% mais ricos se apropriam de 75% da riqueza atualmente. No fim do século XVIII, na então escravocrata sociedade carioca, a parcela mais rica era mais moderada em sua ofensiva, ficava com 69% do bolo.

A estrutura tributária atual, como frisam os especialistas, perpetua as diferenças abissais entre os mais ricos e os mais pobres ao eleger os que têm menos para boi de piranha. Atualmente, metade da renda das familias que ganham até dois salários mínimos (cerca de mil reais) segue para o governo federal, estados e municípios. A "mordida" cai a 26% para as famílias com rendimento mensal acima de 15 mil reais.

Dessa montanha de recursos, uma parte muito pequena, menos de 10% do arrecadado, volta para a sociedade na forma de saúde, educação, segurança e saneamento, sem entrar no mérito da qualidade dos serviços prestados. Os detentores de títulos da dívida pública levam bem mais: cerca de 35% do Orçamento da União, parcela que tende a crescer neste ano à medida que sobe a taxa básica de juros, a que remunera os credores.

Com doutorado sobre o sistema tributário brasileiro, o economista Evilásio Salvador, professor da Universidade de Brasília, centra suas críticas na distribuição do bolo tributário. "O problema não é o nível da carga, que nem é tão alto como os empresários gostam de dizer. Temos um monstrengo regressivo que taxa principalmente o consumo, por meio de impostos indiretos, como o ICMS, pago por todos, independentemente da condição social. Deveríamos aumentar a taxação sobre os rendimentos mais altos e principalmente sobre o patrimônio."

No ranking da carga tributária, o Brasil aparece em primeiro lugar na América Latina, com o dobro da média dos países da região. A secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, chegou a elogiar o sistema brasileiro, que lhe deu musculatura durante a turbulência. Imagine-se qual seria a nossa situação se, a exemplo do México, nossa carga fosse de apenas 10% do PIB. O indicador, longe de ser um problema, dá margem de manobra ao Brasil e nos ajudou a superar a crise de 2008. O PIB mexicano caiu 6% em 2009, e o pais parece hoje uma ilha de maquiladoras cercada pela violência do narcotráfico.

Na avaliação do pesquisador Juan Pablo Jimenez, da Cepal, centro de pesquisas econômicas da ONU sediado no Chile, o Brasil, apesar de taxar mais, segue o padrão regional em matéria de estrutura tributária, e aí residem os maiores problemas. "Nos países latino-americanos, os sistemas tributários são em geral incapazes de cumprir suas duas funções primordiais: não conseguem garantir a estabilidade macroeconômica nem distribuir a riqueza. Também por esse motivo o México tem sofrido muito com a crise nos países ricos. O governo não tem meios de se contrapor à conjuntura ruim."

O fato de os países latino-americanos, Brasil incluído, concentrarem a taxação sobre o consumo também é prejudicial, avalia Jimenez, já que a arrecadação tende a cair com maior vigor nos momentos de queda da economia, além de ser essencialmente injusto. Pela facilidade de cobrança, segundo especialistas, fica difícil imaginar no Brasil uma mudança radical no sentido de desonerar o consumo. Apesar das promessas dos candidatos, o mais provável é o aumento das transferências compensatórias de renda para quem necessita.

Economista-chefe da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Flávio Castelo Branco bate na tecla de que a carga tributária brasileira é das mais elevadas do mundo, fato que a confederação atribui ao "peso do Estado". "O gasto público é semelhante apenas ao de alguns poucos países da Europa Ocidental. Não tem nenhuma economia emergente, ou mesmo madura, como o Japão, que se assemelhe ao Brasil. Na América Latina, todos os países pagam menos impostos." No dia 20, a CNI e várias outras entidades empresariais lançam novo movimento para chamar atenção para esse debate. O risco é mais uma vez ampliar a nebulosidade que costuma acompanhar iniciativas semelhantes.

As estatísticas indicam que o panorama internacional não condiz exatamente com a avaliação da CNI. Um estudo comparativo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) indica que a carga brasileira se aproxima da média da União Europeia, e não está muito distante do patamar estadunidense. Mas é fato que o Brasil é líder na América Latina. O que a CNI esquece de mencionar é que a África também é um exemplo de baixa carga tributária - e, como se sabe, não pode ser considerada exemplo de desenvolvimento social justo, assim como os latino-americanos. Além do mais, o Brasil tem a maior economia, a maior população e a maior área do subcontinente, o que demanda vasta presença do Estado.

Além do tamanho dos tributos, Castelo Branco considera negativa outra característica: os governos tendem a criar sistemas de exceção, que costumam vir acompanhados do risco de distorções. "Esses impostos não podem ser sustentados pelas microempresas? Então criamos o Simples. Um determinado segmento econômico não consegue competir? Então damos isenção. É difícil calcular? Então fazemos o cálculo com base no lucro presumido", ironiza. E concorda em deslocar a cobrança dos impostos para a renda. "Fazendo isso, você abre espaço para taxar menos a produção. Mas aumentar imposto sobre a renda é sempre complicado, a gritaria é geral."

A análise do economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, segue em outra direção. Para ele, a carga tributária não é alta. "Comparada aos países do Primeiro Mundo, considerando nossa renda per capita e a péssima distribuição de renda, a carga brasileira poderia ser até maior", afirma. O economista pondera que, para o empresário, o problema não está exatamente em quanto se paga, mas em como se paga. "A questão principal é a burocracia, a dificuldade para se calcular o valor do imposto e recolhê-Io, as inúmeras exigências, fiscalizações e embargos. A carga não é alta, mas é irritante", afirma Lessa.

Um estudo recente do Banco Mundial, dá uma ideia da complexidade do sistema. O Brasil ocupa a 150a posição entre os países onde mais tempo é gasto para quitar os tributos: consome de uma empresa em média 2,6 mil horas ao ano. Nos demais países da América Latina, esse "custo" cai a 385 horas, e é de 194 nos países da OCDE. Também o custo para arrecadar impostos é elevado. No Brasil, chegou a 11,3 bilhões de reais em 2009 ou 1,35% da arrecadação total, de acordo com pesquisadores da FEA- USP. Apenas Portugal supera o Brasil nesse quesito, com um custo de 2,75% do arrecadado.

Lessa chama ainda a atenção para a má distribuição da carga tributária, "feita de modo a driblar aspectos constitucionais". A partir da Constituição de 1988, os impostos dispararam em razão do regime de repartição de rendas tributárias, mais favoráveis aos estados e municípios, sem correspondentes transferências de encargos - o que obrigou a União a criar uma gama de contribuições que não são divididas com os demais entes da federação.

Mesmo assim, Lessa rechaça a crítica de que é preciso reduzir os gastos previdenciários, a fim de diminuir o tamanho do Estado e, com isso, a porcentagem dos impostos sobre os empresários. "Não se discutem os gastos da seguridade social, porque ela foi pré-pactuada entre os brasileiros. Decidimos em 1988 que todos teriam direito à saúde e que cada brasileiro teria direito a uma aposentadoria digna. Fixamos entre nós mesmos um pacto pelo qual todo brasileiro garantiria a seguridade social dos demais." Para ele, as contribuições sociais devem ser tratadas como impostos, com participação dos estados e municípios.

Para o ex-reitor da UFRJ, engana-se quem compara a carga brasileira com a de outros países que não oferecem qualquer rede de proteção social ao cidadão. "China e Índia possuem arranjos institucionais completamente diferentes do nosso. O Brasil é um país gigantesco e muito industrializado, muito urbanizado, que internalizou nas metrópoles a miséria social. Na China e na Índia, boa parte da população ainda está no campo."

Na década de 1960, observa, metade da renda nacional (a totalidade do rendimento de todos os brasileiros) provinha do trabalho. Hoje o trabalho responde por apenas 37% da renda. "O que cresceu no Brasil foram os rendimentos do não trabalho, e a responsabilidade disso é dos lucros reais dos bancos brasileiros, que cresceram, em média, 11% ao ano durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e 14% durante o mandato de Lula."

O economista Antônio Correa Lacerda, do Departamento de Economia da PUC-SP, afirma que os problemas do sistema de impostos devem-se principalmente à concentração de renda. "Há dois efeitos. O primeiro é que a carga tem de ser elevada para que o Estado possa suprir a maioria da população que não tem renda, e isso sobrecarrega quem tem mais renda. Segundo, trata-se de uma carga pouco inteligente, que tributa muito o investimento e a exportação. Ao tributar o investimento, desestimula-se a produção e, ao tributar a exportação, perde-se competitividade."

Diretor de estudos macroeconômicos do Ipea, João Sicsú critica o enfoque dominante na discussão em torno da reforma tributária no País. "As críticas vão sempre no sentido de mostrar que o Estado ocupa um tamanho exagerado na economia e que é preciso reduzi-Io. Mas os números indicam que isso não é verdade. É preciso considerar o conceito de carga tributária líquida, quando se leva em conta as transferências que a União faz, para pagar aposentadorias, subsídios, pensões etc. Por esse critério, a carga cai a 20% do PIE, menor que na Alemanha, de 21%, Canadá, que tem 23%, e pouco acima dos EUA, que é de 16%."

Sicsú concorda com o caráter "regressivo e concentrador de riquezas" do sistema atual. "E é justamente nesse ponto que a reforma tributária deveria avançar. Mas o que vemos é uma discussão sobre a redistribuição entre os estados, o equilíbrio do pacto federativo, a eliminação da guerra fiscal e como cortar o custo da arrecadação. Mas não se discute como podemos avançar na justiça social. É essa a essência da questão."

Ainda que haja muito a ser feito, é inegável que o País avançou em algumas frentes, realizando "minirreformas" aquí e ali. Foi esse o caso das micro e pequenas empresas. A preocupação com a questão tributária praticamente saiu da pauta desse segmento empresarial desde 2007, quando o governo instituiu o sistema Simples Nacional, que unificou o pagamento de oito tributos para empresas com faturamento de até 2,4 milhões de reais ao ano, com alíquotas de 4% a 17% da receita bruta.

Segundo o diretor-superintendente do Sebrae-SP, Ricardo Tortorella, o resultado da mudança legal é evidente. Há quatro anos, afirma, havia aproximadamente 2 milhões de pessoas jurídicas operando no Brasil, dos quais 1,7 milhão eram micro e pequenas empresas. Em 2009, o número dobrou, para 3,4 milhões. "Muitos empreendedores tomaram a decisão de abrir uma empresa ou se formalizar diante desse regime de tributação mais justo", considera. Para Tortorella, as pequenas arcam com uma carga tributária média de apenas 5%, muito menos que as empresas que recolhem sobre o lucro presumido (12% a 15%). Mas o grande benefício do Simples, diz, foi a desburocratização. "Antes, o microempresário tinha de ir ao banco dez vezes por mês para recolher todos os impostos. Hoje, ele perde uma hora." Atualmente, 70% das empresas no País operam no regime do Simples.

Diretor-executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), o economista Julio Sergio Gomes de Almeida filia-se à ala que defende a redução da carga tributária, dos atuais 35% para cerca de 30%. "Essa redução pode ocorrer, mas é preciso que o Estado tenha gastos sociais à altura das nossas necessidades e uma participação expressiva nos investimentos de infraestrutura, e ainda temos muito a fazer nessas duas frentes", avalia, para quem o sistema vigente "trata mal" a atividade econômica.

A "redução seletiva" de impostos sugerida pelo Iedi procura ampliar a competitividade da indústria, setor que tem perdido espaço no mercado internacional. "As exportações não deveriam pagar impostos. Hoje, elas contam com um sistema de devolução que não funciona. Também é preciso reduzir os impostos sobre os investimentos produtivos. No mundo inteiro, esses investimentos dão direito a créditos tributários, mas aqui isso não acontece. É preciso tirar os impostos que incidem sobre a folha de pagamentos, de 20%, paga pelas empresas. Essa conta deveria migrar para tributos gerais, como o PIS/ Cofins e o Imposto de Renda. Além disso, os produtos da cesta básica não deveriam pagar nenhum tipo de imposto, para minimizar a regressividade do sistema."

Sicsú, do Ipea, chama atenção para outro ponto confuso do debate sobre os impostos, que tem origem no crescimento verificado na fatia do Leão, até chegar aos 36% do PIE. "Na década de 90, durante o governo FHC, vários tributos e impostos foram criados, inclusive para fazer frente às necessidades de gastos surgidas com a Constituição de 1988. Mas no governo Lula o crescimento da carga tem outra explicação. Ocorre que nos últimos anos, com o crescimento da economia, ampliou-se a formalização, mais empregos com carteira assinada surgiram, e tudo isso aumenta a arrecadação. Alguns economistas dizem que isso significa ampliar o sacrifício da sociedade, mas não é isso o que está acontecendo mais recentemente." E cita o caso da CPMF, extinta desde 2008, numa vitória da oposição no Congresso.

Em ao menos um ponto empresários, governo e especialistas concordam: não há reforma tributária que resista a uma economia debilitada. A conjuntura desfavorável acirra as disputas pelos recursos públicos em queda ou estagnados. No momento em que a economia voltou a crescer - tendência reforçada pelas perspectivas abertas com o pré-sal- passa a ser possÍvel alterar o estado das coisas. "É preciso avançar na isonomia, já que a carga recai principalmente sobre os trabalhadores com carteira assinada, os funcionários, além do consumo", diz Salvador, da UnB. "É preciso retomar a discussão sobre uma maior participação de estados e municípios, mas as responsabilidades também têm de ir junto."

Outro ponto da discussão tem a ver com a elisão fiscal, ou seja, a capacidade de algumas empresas (principalmente as de grande porte) driblarem o pagamento dos tributos. "Avançamos bastante na evasão fiscal, mas a elisão ainda é um problema. Existe uma verdadeira indústria para não pagar impostos no País que se alimenta da falsa impressão de que os impostos são exagerados", afirma Salvador. De certa forma, é possível estabelecer um paralelo com o que acontece com o debate sobre a justiça. Quem costuma reclamar da existência de um "Estado policial" é justamente quem possui mais condições de remunerar advogados de grife e que, geralmente, não passa mais de duas noites em uma cela limpa na cadeia. Ou nem isso.

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