segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Marcelo Justo

Quem são as “bestas selvagens” inglesas?

Com mais 2.300 prisões e mais de 1.200 processados por roubo ou violência, o desfile pelos tribunais não mostrou nenhuma “besta selvagem”. Ao invés disso, o perfil dos acusados surpreendeu os britânicos que tiveram que enterrar a primeira caracterização simplista – negros, afrocaribenhos, pobres e excluídos. Designers gráficos, estudantes universitários, professores, adolescentes, púberes, desempregados, marginais, um aspirante a entrar no exército, uma modelo: a variedade desafia qualquer estereótipo. O artigo é de Marcelo Justo, correspondente da Carta Maior em Londres.
Fonte: Carta Maior



“Indignados” não são. Nenhum discurso articula o protesto, não existe uma lista mínima de demandas como ocorreu com as manifestações dos estudantes ingleses contra a triplicação do valor das matrículas universitárias no ano passado. Os distúrbios em Londres e outras cidades inglesas se parecem mais com os de Paris em 2005, ou os de Los Angeles em 1992. O primeiro ministro David Cameron e a poderosa imprensa conservadora não querem entrar em complexas reflexões sociológicas. “O que ocorreu é extremamente simples. Trata-se de pura delinquência”, disse Cameron no debate parlamentar convocado em caráter de emergência. O autor de vários livros de história militar, entre eles “A batalha das Malvinas”, Max Hastings, foi mais longe: “São bestas selvagens.

Comportam-se como tais. Não têm a disciplina que se necessita para ter um emprego, nem a consciência moral para distinguir entre o bem e o mal”, escreveu no Daily Mail.

Com mais 2.300 prisões e mais de 1.200 processados por roubo ou violência, o desfile pelas cortes não permitiu ver nenhuma “besta selvagem”. Ao invés disso, o perfil dos acusados surpreendeu os britânicos que tiveram que enterrar a primeira caracterização simplista – negros, afrocaribenhos, pobres e excluídos – para começar a entender um fenômeno complexo. Designers gráficos, estudantes universitários, professores, adolescentes, púberes, desempregados, marginais, um aspirante a entrar no exército, uma modelo: a variedade era de um tamanho suficiente para desafiar qualquer estereótipo. Cerca de 80% dos que desfilaram pelos tribunais têm menos de 25 anos. A metade dos processados são menores de 18: muito poucos superam os 30 anos.

O apelido de “besta selvagem” tem uma arrogância de classe que não deveria ocultar seu principal objetivo: despojar os distúrbios de qualquer significado. A milhões de anos luz desta perspectiva, Martins Luther King dizia que “os distúrbios são a linguagem dos que não têm voz”. Na Inglaterra, o problema é que esta linguagem foi, em vários momentos, um balbucio ininteligível.

Macbeth na encruzilhada

O conflito começou com os protestos pela morte de Mark Duggan, no bairro de Tottenham, baleado pela polícia que, aparentemente, foi rápida demais no gatilho. Em um primeiro momento era um protesto político local marcado pela tensão étnica em um bairro pobre: o primeiro objeto de ataque foram dois carros de patrulha da polícia queimados pelos manifestantes. Este pontapé inicial converteu-se rapidamente em quatro noites de saques de grandes lojas, roubo indiscriminado de comércios de bairro e indivíduos e enfrentamentos com a polícia em bairros pobres de Londres e da maioria das grandes cidades da Inglaterra.

Mas além de expressar uma exuberância dionisíaca, destrutiva e raivosa, que sentido pode ter o incêndio de uma pequena loja familiar de móveis no sul de Londres que havia sobrevivido a duas guerras mundiais? Como explicar que dois tipos com aspecto de hooligans simularam ajudar um jovem ferido para roubar-lhe o que ainda não tinham lhe roubado, como ocorreu com o estudante malaio Ashrag Haziq? Os distúrbios foram então “um relato contato por um idiota cheio de som e fúria que não significa nada”, como na famosa definição que Shakespeare faz da vida em Macbeth?

Nos distúrbios houve de tudo. A presença de bandos de jovens e o roubo meramente oportunista estiveram tão na ordem do dia como o uso de torpedos via celular para coordenar os ataques em lojas e bairros. Em uma sociedade onde o dinheiro se converteu em valor absoluto, a identidade parece definir-se, para muita gente, pela posse de tênis de marca ou do modelo de celular mais recente, ao qual essas pessoas não tem acesso porque vivem mergulhados na pobreza. Se a oportunidade aparece, por que não? Isso é o que fazem os banqueiros, os políticos, as grandes fortunas.

O atual ministro da Educação, Michael Gove, disparou indignado contra “uma cultura da cobiça, da gratificação instantânea, do hedonismo e da violência amoral”. O mesmo Gove gastou em 2006, 10 mil dólares para sua casa e passou a conta para a Câmara dos Comuns como parte de sua “dieta” parlamentar. Entre os objetos adquiridos, havia uma mesa que custou mais de 1.000 dólares, um móvel Manchu por 700 dólares e um abajur de 250 dólares.

Pobreza e gangues

Um dos casos que contribuíram para romper o estereótipo foi o de Alexis Bailey, um professor de escola primária de 31 anos, muito respeitado em seu trabalho, preso em uma loja da Hi-fi em Croydon, sul de Londres. Bailey ganha 1.000 libras em mês (cerca de 1.600 dólares) e paga de aluguel mais da metade disso: 550 libras (uns 900 dólares). No caso de Bailey, como no de Trisha, graduada em Psicologia Infantil que acaba de perder seu trabalho, percebe-se o núcleo de uma narrativa distinta da “mera delinquência” de “bestas selvagens”. “Ainda estou pagando o empréstimo que recebi para estudar. Cameron não faz nada. Não tem ideia do que é ser jovem. Dizem que nos aproveitamos dos benefícios. Mas queremos trabalho”, disse Trisha ao The Guardian.

Estes germens de discurso apareceram várias vezes. Na voz de uma mãe em um supermercado (“não tem nada, o que vão fazer?”), na de um jovem desempregado (“é preciso se rebelar”). As gangues juvenis são a expressão final e niilista deste fenômeno de não pertencimento social e de falta de perspectiva de vida. “As gangues oferecem uma relação de pertencimento a uma estrutura, uma disciplina, um respeito que os jovens não encontram em nenhum outro lado”, escreve Ann Sieghart no The Independent.

Esta semana, em um primeiro distanciamento de sua própria caracterização dos distúrbios, David Cameron lançou uma revisão de toda a política governamental para “recompor uma sociedade exausta”, evitar uma “lenta desintegração moral” e “solucionar problemas sociais que cresceram durante muito tempo”. É um começo. O que está claro é que as prisões, que em sua maioria já estão superpovoadas, não resolvem o problema de fundo: em alguns meses os mesmos jovens sairão para as ruas. A grande questão é se uma coalizão como a conservadora-liberal democrata, que fez do ajuste fiscal uma religião, pode levar adiante uma política mínima que comece a lidar com um fenômeno que tem complexas raízes econômicas sociais e culturais.

Entrevista - Maria da Conceição Tavares

“Colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: é a treva!”

Por Saul Leblon/Carta Maior.
Fonte: Carta Maior

As manifestações mórbidas de ortodoxia fiscal nos EUA e, antes, o martírio inútil da Grécia, mas também as rebeliões de indignação que tomam as ruas do mundo, em contraste com o alarme sangrento da intolerância neonazista vindo da Noruega, romperam uma blindagem de opacidade e resignação que revestia a crise mundial.

Depois de anos de abordagem asséptica por parte dos governos, e do tratamento complacente e obsequioso desfrutado na mídia, causas e conseqüências da débâcle mais ruidosa do capitalismo desde 1929 adquirem progressiva transparência.

Arcado sob um vácuo de liderança assustador, os EUA de Obama e do Tea Party, mas também a Europa da rendição socialdemocrata, expõem a dimensão política da crise, que realimenta seu impasse econômico.

Nos confrontos de rua entre uma população desesperada e um poder político de representatividade dissolvente, desnuda-se a brutal incompatibilidade entre os mercados financeiros desregulados e os valores da democracia. Na ascendência do Tea Party, pautando um arrocho ortodoxo que joga o planeta às portas de uma Depressão, desaba a confiabilidade na democracia norte-americana que se transforma em fator de insegurança mundial.

A conversa fiada dos centuriões midiáticos que durante o ciclo neoliberal venderam o peixe podre, segundo o qual, democracia e laissez-faire selvagem são personas indissociáveis do capitalismo desregulado, derreteu. Da poça de desilusão escorre um veio de discernimento que se espalha aos poucos pelas praças do mundo: a crise só será efetivamente superada com uma democracia reinventada pela participação popular.

O movimento não se completa, todavia, apesar da truculência incomum, porque a explosão carece, ainda, daqueles atores dos quais se espera , historicamente, a expressão organizada e programática do conflito social: os partidos políticos, mais especificamente, as legendas alinhadas ao campo da esquerda.

Tal vazio afirma a natureza verdadeiramente sistêmica da atual crise, cujo atributo não se restringe ao colapso do corpo econômico de uma época. A crise paradoxalmente trouxe a política de volta porque nenhuma solução de mercado resolverá os impasses causados por ele e por seus mitos.

Essa singularidade não passa desapercebida pelos que se debruçam, como sempre se debruçaram, na análise das crises e impasses do sistema capitalista em busca de respostas progressistas para o presente e o futuro do desenvolvimento brasileiro. Entre as mais importantes contribuições desse indispensável engajamento intelectual está a voz da professora Maria da Conceição Tavares.

Em março deste ano, quando Obama se preparava para aterrissar no Brasil, em meio a confetes e serpentinas de uma mídia obsequiosa, a narrativa dominante saltitava ao som de um novo samba enredo. Um esforço coreográfico enorme procurava convencer o distinto público sobre a veracidade de algumas fantasias e adereços. A saber: a viagem era um ponto de ruptura entre a ‘política externa de esquerda’ do Itamaraty – leia-se de Lula , Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães – e o suposto empenho da Presidenta Dilma em uma reaproximação ‘estratégica’ com o aliado do Norte; a visita selaria um a nova agenda, ‘uma reconciliação’ entre Brasília e Washington ancorada em concessões e acordos expressivos; Obama seria o paradigma de uma modernidade a ser seguida por Dilma, distinta do ‘populismo’ político e econômico da ‘escumalha’ latinoamericana – ele usa twitter, é cool, não gosta de Lula, nem de Chávez.

Em entrevista à Carta Maior algumas horas antes daquela prometida apoteose que, como é sabido, redundou em fiasco, a professora Maria da Conceição Tavares aspergiu certeiras bisnagas de realismo sobre o entrudo inebriado.

Carta Maior voltou a conversar agora com a economista a quem todos ligam quando o mundo despenca e é preciso saber para que lado ir. E é isso que o mundo está fazendo há dias, metafórica e financeiramente: despencando.

A extrema direita republicana pautou Obama, como Conceição havia antevisto; asfixiou a política fiscal da maior economia do planeta. O anúncio de cortes de gastos públicos da ordem de US$ 2,4 trilhões de dólares sobre um metabolismo econômico combalido, equivale a ordenar aos mercados que imitem o Barão de Munchausen e se ergam pelos próprios cabelos. O Barão de Munchausen era um contador de lorotas. Só a convicção colegial desastrosa do Tea Party no laissez-faire - cujo equivalente nativo é a mídia e seus consultores - pode inspirar-se nas metáforas capilares do velho Barão para pautar os destinos da economia e da sociedade.

Os mercados sabem que a coisa não funciona assim. Investidores e especuladores urbi et orbi farejaram o desastre e se anteciparam fugindo em massa de ações e títulos, candidatos a perder o valor de face na recessão em curso.

Antes de atender Carta Maior, a professora Maria da Conceição já havia recebido telefonemas de Brasília, com a mesma inquieatação: ‘E agora?’.

A decana dos economistas brasileiros entende de crise. Ela nasceu em abril de 1930, poucos meses depois da 5º feira negra de outubro de 1929, quando as bolsas reduziram todo um ciclo a riqueza especulativa a pó e pânico. Em questão de horas. A professora de reconhecida bagagem intelectual, respeitada mesmo pelos que divergem de seus pontos de vista, normalmente prefere não avançar na reflexão política e ideológica.

A seguir, trechos da conversa de Maria da Conceição Tavares (foto) com Carta Maior:

Carta Maior - No caso do Brasil, no que esta crise difere da de 2008 que superamos rapidamente? Dá para usar a mesma receita de então?

Maria da Conceição Tavares— “É muito difícil (suspira). Primeiro, pela natureza arrastada, enrustida desse longo crepúsculo. Você fica a tomar medidas pontuais. Tenta mitigar a questão do câmbio para evitar a concorrência predatória das importações. Mas tem efeito limitado. Voce aperta os controles aqui, mas o dólar está derretendo lá fora. Está derretendo sob o peso da recessão e do imobilismo político de quem deveria tomar as rédeas da situação. O Brasil não tem como impedir que o dólar derreta no sistema financeiro mundial.

CM—Isso foi diferente em 2008...

MCT—Em 2008 nós tivemos um efeito oposto; capitais em fuga migraram de várias partes do mundo, de filiais de bancos e multinacionais, para socorrer a quebra das matrizes na Europa e nos EUA. Então o que houve ali foi uma desvalorização cambial; o Real ficou mais fraco. Isso facilitou as coisas pelo lado das exportações e da contenção de importações, ainda que quase tenha levado à breca aqueles que especulavam contra a moeda brasileira, fazendo hedge fictício para ganhar na desvalorização. Mas do ponto de vista macroeconômico foi um quadro mais favorável. Hoje é o inverso.

CM - As reservas atuais, da ordem de US$ 340 bilhões são um alento?

MCT—Também há diferenças desfavoráveis nas contas externas. As reservas hoje são basicamente formadas pela conta de capitais; não tanto pelo superávit comercial, como era então. Significa que hoje são a contrapartida de algo fluido, capitais que não sabemos exatamente se representam investimento produtivo, de mais longo curso, ou especulação capaz de escapar abruptamente. Sobretudo, tenho receio porque uma parte considerável desse ingresso é dívida privada. Com a anomalia dos juros, os maiores do mundo – a nossa herança maldita - e a oferta barata e abundante de dinheiro lá fora, nossas empresas se endividaram a rodo. Se houver uma reversão do ciclo, se o dólar se valorizar, o descasamento entre um passivo em dólar e receitas em reais, no caso de quem não exporta, ou exporta pouco, será traumático. Essa contabilidade hoje por certo é mais grave do que o passivo em hedge que quase quebrou grandes grupos brasileiros em 2008.

CM - Então a margem de manobra do governo Dilma é menor?

MCT - (suspira) Estávamos melhor antes. E muito do que fizemos então não dá para fazer agora...

CM—Mas o governo pode...

MCT— O governo Dilma poderá agir de forma distinta e contundente se a crise virar o Rubicão; aí tudo é lícito e possível.

CM - Por exemplo?

MCT - Por exemplo centralizar o câmbio; controlar importações, remessas etc.

CM— E enquanto isso não ocorre?

MCT - Mas enquanto se arrasta assim, uma crise enrustida, que vai minando, desagregando, sem ser confrontada, fica difícil. Você toma medidas pontuais que se dissolvem.

CM - Há uma superposição de colapso do neoliberalismo com esfarelamento político que realimenta e reproduz o processo?

MCT - Veja, é um colapso empírico da agenda do neoliberalismo. Avulta que a coisa é um desastre e os meus colegas economistas dessa cepa, espero, devem estar conscientes disso. Mas que poder tem os economistas? Nenhum. O poder que conta está nas em outras mãos, a dos responsáveis pela crise. Vivemos um colapso neoliberal sob o tacão dos ultra-neoliberais. Não estamos falando de gente normal, é preciso entender isso. Não são neoliberais comuns. Meu Deus, o que é isso que estão fazendo nos EUA? É a treva! Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva! E ela se espalha desagregando, corroendo.

CM—Devemos nos preparar para uma crise longa?

MCT—Sem dúvida. Por conta dessa dimensão autofágica que não enseja um desdobramento político à altura, que inaugure um novo ciclo, como foi com Roosevelt e o New Deal em 29.

CM—As bases sociais do New Deal não existem mais nos EUA?

MCT - Não existem mais. Obama é o reflexo disso. É uma liderança intrinsecamente frouxa. Não tem a impulsão trabalhista e progressista que sustentou o New Deal. É frouxo. Seu eleitorado é difuso ah, ótimo, ele se comunica com os eleitores pelo twitter, etc. E aí? É uma força difusa, desorganizada, estruturalmente à margem do poder. Está fora do poder efetivo no Congresso que é da direita, dos ricos, dos grandes bancos e grandes corporações, como vimos agora no desenho do pacote fiscal. Está fora da indústria também que foi para a China. Esse limbo estrutural é o Obama. Ele pode até ser reeleito, tomara que seja. A alternativa é amedrontadora. Mas isso não mudará a sua natureza frouxa.

CM— Se não existe o componente político que assemelhe essa crise a de 1929, então o que é isso, essa’ treva’ que estamos vivendo?

MCT— (ri) Uma treva é uma treva... O que passamos agora é distinto de tudo o que se viu em 29...Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, como eu disse. Arrastado, latejante, sob o tacão de forças como essas dos ultra-neoliberais. Tampouco é um fascismo explícito, porém, como se viu na Europa, em 30. Até porque o nazismo, por exemplo, e isso não abona em nada aquela catástrofe genocida, postulava o crescimento com forte indução estatal. O que se tem hoje é o horror; um vazio político de onde emergem essas criaturas dos EUA, e coisas assemelhadas na Europa. Será uma crise longa, penosa, desagragdora, mais próxima da Depressão do final do século XIX...

CM- O declínio de um império, como foi o declínio do poder da Inglaterra no final século XIX?

MCT—Sim, é um quadro mais próximo daquele. O poder inglês foi sendo contrastado por nações com industrialização mais moderna. Um arranjo com estrutura de integração superior entre a indústria e o capital financeiro e que aos poucos ultrapassaria a hegemonia inglesa. Foi uma quebra, uma inflexão entre o capitalismo concorrencial e o capitalismo monopolista. A Inglaterra que havia sido a ‘fábrica do mundo’ perdeu o posto para o agigantamento fabril americano e alemão. Isso se arrastou por décadas. Foi uma Depressão, a primeira Depressão que tivemos no capitalismo (durou de 1873 a 1918). Levou à Primeira Guerra, que resultou na Segunda...

CM—Os EUA são a Inglaterra da nossa longa crise... E o novo hegemon?

MCT - As forças que se articularam na sociedade norte-americana, basicamente forças conservadoras, de um reacionarismo profundo, não em condições de produzir uma nova hegemonia propositiva. Claro, eles tem as armas de guerra. Não é pouco, como temos visto. Vão se impor assim por mais tempo. Mas daí não sai um novo hegemon. Vamos caminhar para um poder multilateral, negociado, sujeito a contrapesos que nos livrarão de coisas desse tipo, como a ascendência do Tea Party nos EUA. Uma minoria que irradia a treva para o mundo.

Noam Chosmky

Os Estados Unidos em decadência



Artigo de Noam Chomsky (foto), professor emérito de lingüística e filosofía do Instituto Tecnológico de Massachusetts. Seu livro mais recente é 9-11: Tenth Anniversary. Tradução: Katarina Peixoto.
Fonte: Carta Maior





É um tema comum que os Estados Unidos, que há apenas alguns anos era visto como um colosso que percorreria o mundo com um poder sem paralelo e um atrativo sem igual (...) estão em decadência, enfrentando atualmente a perspectiva de uma deterioração definitiva, assinala Giacomo Chiozza, no número atual de Political Science Quaterly.

A crença neste tema, efetivamente, está muito difundida. Em com certa razão, se bem que seja o caso de fazer algumas precisões. Para começar, a decadência tem sido constante desde o ponto culminante do poderio dos EUA, logo após a Segunda Guerra Mundial, e o notável triunfalismo dos anos 90; depois da Guerra do Golfo, foi basicamente um autoengano.

Outro tema comum, ao menos entre aqueles que não ficaram cegos deliberadamente, é que a decadência dos EUA, em grande medida, é auto-inflingida. A ópera bufa que vimos este verão em Washington, que desgostou o país e deixou o mundo perplexo, pode não ter comparação nos anais da democracia parlamentar. O espetáculo inclusive está chegando a assustar aos patrocinadores desta paródia. Agora, preocupa ao poder corporativo que os extremistas que ajudou a por no Congresso de fato derrubem o edifício do qual depende sua própria riqueza e seus privilégios, o poderoso estado-babá que atende a seus interesses.

A supremacia do poder corporativo sobre a política e a sociedade – basicamente financeira – chegou ao grau de que as formações políticas, que nesta etapa apenas se parecem com os partidos tradicionais, estão muito mais à direita da população nos principais temas em debate.

Para o povo, a principal preocupação interna é o desemprego. Nas circunstâncias atuais, esta crise pode ser superada só mediante um significativo estímulo do governo, muito mais além do que foi o mais recente, que apenas fez coincidir a deterioração no gasto estatal e local, ainda que essa iniciativa tão limitada provavelmente tenha salvado milhões de empregos.

Mas, para as instituições financeiras, a principal preocupação é o déficit. Assim, só o déficit está em discussão. Uma grande maioria da população está a favor de abordar o problema do déficit taxando os muito ricos (72%, com 27% contra), segundo uma pesquisa do The Washington Post e da ABC News. Fazer cortes nos programas de atenção médica conta com a oposição de uma esmagadora maioria (69% no caso do Medicaid, 78% no caso do Medicare). O resultado provável, porém, é o oposto.

O Programa sobre Atitudes de Política Internacional (PIPA) investigou como a população eliminaria o déficit. Steven Kull, diretor do PIPA, afirma: É evidente que, tanto o governo como a Câmara (de Representantes) dirigida pelos republicanos, estão fora de sintonia com os valores e as prioridades da população no que diz respeito ao orçamento.

A pesquisa ilustra a profunda divisão: a maior diferença no gasto é que o povo apoia cortes profundos no gasto militar, enquanto que o governo e a Câmara de Representantes propõem aumentos modestos. O povo também defende aumentar o gasto na capacitação para o trabalho, na educação e no combate à poluição em maior medida que o governo ou a Câmara.

O acordo final – ou, mais precisamente, a capitulação ante à extrema direita – é o oposto em todos os sentidos, e quase com toda certeza provocará um crescimento mais lento e danos de longo prazo para todos, menos para os ricos e as corporações, que gozam de benefícios sem precedentes.

Nem sequer se discutiu que o déficit poderia ser eliminado se, como demonstrou o economista Dean Baker, se substituísse o sistema disfuncional de atenção médica privada dos EUA por um semelhante ao de outras sociedades industrializadas, que tem a metade do custo per capita e obtém resultados médicos equivalentes ou melhores.

As instituições financeiras e as grandes companhias farmacêuticas são demasiado poderosas para que sequer se analisem tais opções, ainda que a ideia dificilmente pareça utópica. Fora da agenda por razões similares também se encontram outras opções economicamente sensatas, como a do imposto às pequenas transações financeiras.

Entretanto, Wall Street recebe regularmente generosos presentes. O Comitê de Atribuições da Câmara de Representantes cortou o orçamento da Comissão de Títulos e Bolsa, a principal barreira contra a fraude financeira. E é pouco provável que sobreviva intacta a Agência de Proteção ao Consumidor.

O Congresso brande outras armas em sua batalha contra as gerações futuras. Apoiada pela oposição republicana à proteção ambiental, a importante companhia de eletricidade American Eletric Power arquivou o principal esforço do país para captar o dióxido de carbono de uma planta atualmente impulsionada por carvão, o que significou um forte golpe às campanhas para reduzir as emissões causadoras do aquecimento global, informou o The New York Times.

Esses golpes auto-aplicados, ainda que sejam cada vez mais potentes, não são uma inovação recente. Datam dos anos 70, quando a política econômica nacional sofreu importantes transformações, que puseram fim ao que se costuma chamar de “época de ouro” do capitalismo de Estado.

Dois importantes elementos desse processo foram a financeirização (o deslocamento das preferências de investimento, da produção industrial para as finanças, os seguros e os bens imobiliários) e a externalização da produção. O triunfo ideológico das doutrinas de livre mercado, muito seletivo como sempre, desferiu mais alguns golpes, que se traduziram em desregulação, regras de administração corporativa que condicionavam as enormes recompensas aos diretores gerais com os benefícios de curto prazo e outras decisões políticas similares.

A concentração resultante da riqueza produz maior poder político, acelerando um círculo vicioso que aportou uma riqueza extraordinária para 1% da população, basicamente diretores gerais de grandes corporações, gerentes de fundos de garantia e similares, enquanto que a maioria das receitas reais praticamente estancou.

Ao mesmo tempo, o custo das eleições disparou para as nuvens, fazendo com que os dois partidos tivessem que escavar mais fundo os bolsos das corporações. O que restava de democracia política foi solapado ainda mais quando ambos partidos recorreram ao leilão de postos diretivos no Congresso, como apontou o economista Thomas Ferguson, no The Financial Times.

Os principais partidos políticos adotaram uma prática das grandes empresas varejistas, como Walmart, Best Buy e Target, escreve Ferguson. Caso único nas legislaturas do mundo desenvolvido, os partidos estadunidenses no Congresso colocam preço em postos chave no processo legislativo. Os legisladores que conseguem mais fundos ao partido são os que indicam os nomes para esses postos.

O resultado, segundo Ferguson, é que os debates se baseiam fortemente na repetição interminável de um punhado de consignas, aprovadas pelos blocos de investidores e grupos de interesse nacionais, dos quais depende a obtenção de recursos. E o país que se dane.

Antes do crack de 2007, do qual foram responsáveis em grande medida, as instituições financeiras posteriores à época de ouro tinham obtido um surpreendente poder econômico, multiplicando por mais de três sua participação nos lucros corporativos. Depois do crack, numerosos economistas começaram a investigar sua função em termos puramente econômicos. Robert Solow, prêmio Nobel de Economia, concluiu que seu efeito poderia ser negativo. Seu êxito aporta muito pouco ou nada à eficiência da economia real, enquanto seus desastres transferem a riqueza dos contribuintes ricos para o setor financeiro.

Ao triturar os restos da democracia política, as instituições financeiras estão lançando as bases para fazer avançar ainda mais este processo letal...enquanto suas vítimas parecem dispostas a sofrer em silêncio.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Cris Rodrigues - Especial para a Carta Maior

"Violência dos últimos dias é uma questão social"


A reportagem é do jornalista Cris Rodrigues, que mantém o blog Somos Andando. Atualmente, o jornalista vive em Londres.
Fonte: Carta Maior





Ken Smith (foto) é dono de uma loja em Brixton, bairro no sul de Londres em que houve um dos protestos considerados mais violentos da onda de ataques que tomou conta da capital inglesa entre os dias 6 e 9 de agosto. Ele estava lá, apesar de ser tarde da noite de segunda para terça-feira, e viu quando os jovens quebraram vitrines de lojas e colocaram fogo em carros. Sabe que eram muitos, mas não chuta quantos. Todos muito jovens, filhos de uma geração sem limites e sem perspectivas, na visão do lojista.

Smith tem a sua explicação para os protestos que fizeram o mundo todo virar os olhos para Londres, embora ela não seja simples. Para ele, há diversas causas escondidas no que muitos vêem apenas vandalismo e que começou sábado (6) como um protesto legítimo contra o suposto assassinato de um homem por agentes da Scotland Yard, a polícia britânica, na quinta-feira passada (4), no bairro de Tottenham, que registra altos índices de desemprego. Enquanto a maioria acredita que os manifestantes sejam apenas criminosos se aproveitando da situação para roubar, ele sustenta que a violência dos últimos dias é uma questão social.

Esta geração que nasceu lá por 1995 é de jovens excluídos socialmente. Eles vivem uma subcultura. Eu tenho 41 anos, e quando eu era criança eu sabia que, se estudasse e trabalhasse, eu ganharia dinheiro e teria uma vida boa. Hoje eles acham que podem ter dinheiro sem fazer nada.”

Provavelmente muitos dos adolescentes sequer soubessem quem era Mark Duggan e por que os protestos começaram. Mas alguma coisa os tirou de suas casas para que fossem às ruas em uma tentativa de chamar a atenção e saquear. A explicação simplista da vendedora de uma loja que não quis se identificar de que são apenas criminosos “procurando confusão” não convence. “Ninguém é pobre neste país”, reforça o segurança do estabelecimento. Mas então por que tanta gente teria essa índole supostamente má em um mesmo lugar ao mesmo tempo? É sinal de que alguma coisa não vai bem na terra da rainha.

Para Smith, falta educação, disciplina e valores, o que faz com que as crianças não entendam quando estão indo muito longe e ultrapassam os limites. Mas enfatiza que a questão não é racial, embora Mark Duggan fosse negro e há suspeita de que tenha sido assassinato por preconceito.

Ele diz que o problema vem de uma ou duas décadas atrás e reside na diferença de classes, muito marcada na Inglaterra, e incentivada pela mídia. “A TV, a música, tudo influencia para fazer de você quem você é. A TV diz o que você tem que vestir. As crianças querem roupas legais, tênis, celulares. E quando elas não têm as coisas elas ficam frustradas.”

O único policial que aceitou dar algumas informações – eles estão proibidos de falar com a imprensa – estava no bairro de Chalk Farm, no norte de Londres, onde algumas poucas lojas tiveram as vitrines quebradas e alguns de seus artigos roubados segunda-feira (8) à noite. Para Gary Cooper, o termo “riots”, em português “manifestações” ou “distúrbios”, que está sendo utilizado nos meios de comunicação, não se aplica à maioria dos grupos. “São só ladrões. Não estão protestando por nada, só roubando”, disse. Ali, em poucos minutos a confusão foi dissipada. Não houve fogo nem violência.

O fato é que os acontecimentos coincidem com o momento em que a Inglaterra vive sua maior crise nos últimos 50 anos – quem faz a afirmação é o prefeito de Londres, Boris Johnson, também do Partido Conservador, em artigo na edição de terça-feira (9) do jornal Evening Standard, distribuído gratuita e massivamente todas as tardes nas estações de metrô. E, em momentos de crise, quem costuma sentir as consequências são os mais pobres, através da redução de benefícios sociais e do desemprego.

Para ficar em poucos exemplos, este ano o governo do conservador David Cameron cortou bolsas de estudos nas extremamente caras universidades britânicas, ao mesmo tempo em que o valor das anuidades subiu. As restrições para o trabalho de imigrantes estão cada vez maiores, em um país em cuja capital se ouve quase mais línguas estrangeiras do que inglês nas ruas. Ainda que a maioria não tenha consciência do que gera a insatisfação, ela existe.

E o governo, ancorado nos meios de comunicação, não parece muito interessado em procurar explicações. Tem colunista de jornal até citando o filósofo Thomas Hobbes e seu estado de natureza para explicar o caos nas ruas inglesas, como se o problema residisse no excesso de liberdade e a solução estivesse em um governo forte, capaz de decidir por todos. Colocar 16 mil policiais nas ruas foi a única resposta do primeiro-ministro, enquanto afirmava que enfrentaria os criminosos com mãos de ferro, com frases que deixariam os defensores de direitos humanos de cabelo em pé, como estas: “Vocês vão sentir toda a força da lei. Se você tem idade suficiente para cometer crimes, você tem idade suficiente para encarar a punição”. Desta forma, ele joga toda a responsabilidade para os jovens e busca não refletir sobre por que a sociedade tem crianças e adolescentes que cometem esses atos.

A força policial de fato encerrou os protestos, e agora os londrinos dormem tranquilos. Garantir o metrô e os ônibus funcionando e as ruas em aparente tranquilidade parece o suficiente para Cameron. Já são mais de 1.100 pessoas presas na Inglaterra, 805 só em Londres, e assim parece que o problema foi solucionado. De fato, para quem trata uma manifestação social dessa magnitude como “criminalidade, pura e simples”, basta encerrar os ataques que a noite de sono tranquilo está garantida. Mas as pessoas continuam lá, o desemprego aumenta, a crise corrói.

Agora a situação está sob controle na Inglaterra, e a rainha pode ficar aliviada. David Cameron passou por um difícil teste ao controlar a violência, mas só o fato de ela ter começado e de ter atingido a proporção que atingiu já é suficientemente significativo de que o país não está navegando em mares tão calmos e sob controle. Resta saber se agora os olhos vão se abrir e gerar alguma reação política efetiva para a vida dos cidadãos e cidadãs ou se o governo vai continuar fingindo que não aconteceu nada além de incêndios, roubos e três mortes sem causa e sem importância social. Se tratar como um sangramento já estancado, ele vai voltar a abrir.

[grifos do blog]

Tariq Ali

Londres: por que aqui, por que agora?

Por que são sempre as mesmas áreas que se insurgem primeiro, o que quer que seja a causa? Pura coincidência? Estará relacionado com a raça, a classe, a pobreza institucionalizada e a tristeza da vida difícil do dia-a-dia? Não importa o Partido, não importa a cor de pele do deputado, eles reproduzem sempre os mesmos clichês. O artigo é de Tariq Ali. Tradução de Rodrigo Rivera.
Fonte: Carta Maior 



Os políticos da coligação (incluindo o New Labour, que provavelmente se juntará a um “governo de salvação” se a recessão continuar) com as suas ideologias petrificadas não podem dizê-lo porque os três partidos continuam igualmente responsáveis pela crise. Eles criaram esta confusão.
 
Eles privilegiam os ricos. Querem que fique claro que juízes e magistrados devem dar o exemplo, punindo severamente jovens apanhados com saques. No entanto, nunca questionaram seriamente o fato de não haver acusações às mais de mil mortes de cidadãos sob custódia policial, desde 1990. Não importa o Partido, não importa a cor de pele do deputado, eles reproduzem sempre os mesmos clichês. Sim, sabemos todos que a violência nas ruas de Londres é má. Sim, sabemos que pilhar lojas não é correto. Mas porquê agora? Por que isso não aconteceu o ano passado? Porque as resistências às injustiças crescem com o tempo, porque quando o sistema provoca a morte de um jovem cidadão negro de uma comunidade pobre, em simultâneo, mesmo que inconscientemente, provoca uma resposta.
 
E as coisas podem piorar se os políticos e a elite financeira, com o apoio dos meios de comunicação públicos e os de Murdoch, falham na retomada econômica e decidem punir os pobres e os precários pelas políticas que eles próprios aplicaram nas três últimas décadas. Desumanizar o “inimigo”, em casa ou no estrangeiro, criando o medo e a prisão sem julgamento digno é uma estratégia que não pode funcionar para sempre.
 
Se houvesse um partido de oposição sério neste país, estaria reivindicando o desmantelamento deste sistema neoliberal com pilares instáveis antes que ele desmorone por si e afete ainda mais gente. Por toda a Europa, as diferenças que separavam o centro-direita do centro-esquerda, que separavam os conservadores dos sociais-democratas, desapareceram. A fusão entre políticas oficiais dos partidos confundem propositadamente os segmentos mais desfavorecidos do eleitorado, a maioria.
 
Os jovens negros desempregados ou semi-empregados de Tottenham, Hackney, Enfield e Brixton sabem perfeitamente que o sistema está a atacá-los. O zurrar dos políticos não tem real impacto na maior parte das pessoas, quanto mais naquelas que atiçam o fogo nas ruas de Londres. Os fogos vão ser apagados. Haverá uma espécie de inquérito patético ou algo semelhante para investigar as razões do assassinato de Mark Duggan, remorsos serão expressos, haverá flores da polícia no funeral. Os manifestantes detidos serão punidos e todos terão uma sensação de alívio e continuarão com a sua vida, até que isto tudo volte a acontecer.

[grifos do blog]

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Michael Hudson

A emboscada de Obama contra os direitos sociais

Wall Street sabe que para ter votos suficientes no Congresso para destruir o New Deal, o Social Security, o Medicare e o Medicaid, é preciso ter um presidente democrata no comando. Um congresso democrata bloquearia qualquer tentativa republicana de fazer o tipo de corte que Obama está propondo. Mas a oposição democrática fica paralisada quando o próprio presidente Obama – o presidente liberal por excelência, o Tony Blair americano – age como o chefe de torcida para cortar direitos e outros gastos sociais. O artigo é de Michael Hudson, publicado no New Economic Perspectives. Tradução: Katarina Peixoto.
Fonte: Carta Maior


Você sabe que a outra face da dívida está tão melodramaticamente encenada como uma exibição da Federação Mundial de Luta-Livre quando Obama faz a sua flagrantemente vazia ameaça ao Congresso, de que se não “atacar os desafios mais difíceis dos direitos sociais e da reforma tributária” não haverá dinheiro para pagar o Social Security no próximo mês. Nessa fala sobre o déficit, na noite de 25 de julho, ele ameaçou que “se nos declararmos inadimplentes, não teremos dinheiro suficiente para pagar todas as nossas contas – as quais incluem os pagamentos mensais do Social Security, as pensões dos veteranos de guerra e os contratos do governo que assinamos com milhares de empresas”.

Isso não é verdade nem de longe. Mas se tornou o tema mais assustador há mais de uma semana, desde que o presidente usou quase as mesmas palavras nas suas entrevistas ao âncora do jornal da noite da CBS, Scott Pelley.

É claro que o governo terá dinheiro suficiente para pagar o Social Security mensalmente. A administração do Social Security tem seus próprios fundos – nas contas do Tesouro. Eu entendo que advogados (como Obama e na verdade a maior parte dos presidentes americanos) raramente entendem de economia. Mas esta é uma questão legal. Obama certamente deve saber que o Social Security é solvente, com ativos líquidos para pagá-lo por muitas décadas vindouras. Ainda assim, Obama pôs o Social Security lá no topo da lista.

A explicação mais razoável para essa ameaça vazia é que ele está tentando causar pânico nos idosos, na expectativa de que de alguma maneira a negociação do orçamento pareça ser sacada de sua manga para salvá-los. A realidade, claro, é que eles estão sendo levados para o abate. (E nem uma palavra corretiva lembrando ao presidente a realidade financeira, por parte do secretário da rubineconomia [1], secretário do Tesouro Geithner, do neoliberal presidente do Federal Reserve, Bernanke, ou qualquer outro na administração democrata de Wall Street, conhecida como Conselho de Lideranças Democrata).

É um engodo. Obama chegou a enterrar o Social Security, o Medicare e o Medicaid, não para salvá-los, mas para matá-los. Isso estava claro desde o começo dessa administração, quando ele designou sua Comissão para Redução do Déficit, liderada pelos inimigos confessos do Social Security, como o senador do Wisconsin, Alan Simpson e Erskin Bowles, outro nome da rubineconomia, da administração Clinton. As mais recentes escolhas de Obama, de republicanos e de democratas conservadores para serem delegados no Congresso a fim de reescreverem o código tributário num jogo bipartidário – para evitar sua rejeição – não passa de uma manobra para aprovar uma "reforma" fiscal impossível de aprovar por representantes democraticamente eleitos.

O diabo sempre está nos detalhes. E os lobistas de Wall Street sempre têm esses detalhes bem dobrados em suas pastas para pô-los à disposição dos seus representantes no Congresso e dos senadores dedicados. E neste caso eles têm o presidente, que tem aceitado seus conselhos ao ponto de convidar para fazerem parte de seu gabinete e agirem com factoides para capturar o governo em seu benefício e assim criarem o “socialismo para os ricos”.

Não há tal coisa, é claro. Quando os governos são dos ricos, a isso se chama oligarquia. Os diálogos de Platão deixam claro que, em vez de se tomar as sociedades como democracias ou oligarquias, era melhor observá-las em movimento. As democracias tendem a polarizarem economicamente (sobretudo entre credores e devedores) até se tornarem oligarquias. Estas, por sua vez, tendem a se tornarem aristocracias hereditárias. No tempo, famílias dominantes vão lutar entre si, e um grupo (como os Kleisthenes em Atenas em 507 a.C.) levaria “o povo para dentro da festa” e criaria uma democracia. E assim o triângulo eterno da política seguiria adiante.

É isso o que está se passando hoje. Em vez de aproveitar o que a Era Progressista antecipou – uma evolução na direção do socialismo, com o governo fornecendo a infraestrutura básica e outras necessidades com subsídio -, estamos vendo um lapso temporal de volta ao neofeudalismo. A diferença, claro, é que esse tempo para a sociedade não é controlado por garras militares no território. Hoje a finança obtém o que a força militar fazia em tempos passados. Em vez de amarrados à terra sob o feudalismo, hoje as famílias podem viver onde quer que queiram – contanto que levem uma vida inteira para pagar a hipoteca ou qualquer casa que venham a comprar.

E em vez da sociedade pagar tributos pelo uso da terra a conquistadores, paga aos banqueiros. Assim como o acesso à terra era precondição para as famílias se sustentarem durante o feudalismo, precisa-se ter crédito, para água, assistência médica, pensões ou Social Security e outras necessidades básicas, hoje em dia – e deve-se pagar juros, recompensar e monopolizar a renda para a oligarquia neofeudal que agora fazendo das suas, dos EUA a Irlanda e Grécia.

O governo dos EUA gastou 13 trilhões de dólares em resgates financeiros, desde a quebra do Lehman Brothers, em setembro de 2008. Mas Obama alerta que, de trinta anos para cá, o fundo de ativos que financia o Social Security gerou um déficit de 1 trilhão de dólares. É para evitar isso que ele pede com urgência o desmantelo dos programas sociais para arcar com aqueles pagamentos, agora.

Parece que os 13 trilhões usados eram todo o dinheiro que o governo verdadeiramente tem. Os bancos e as empresas de Wall Street pegaram o dinheiro e se foram. Não há o suficiente para pagar o Social Security, o Medicare ou outro gasto social que os democratas conservadores e os republicanos planejam cortar, agora.

Não tão rápido. O plano será “mascarar” a crise atual, reduzindo os planos à “Comissão para a Redução do Déficit #2”, nomeada pelos membros do Congresso.

Finalmente, temos a “mudança em que podemos acreditar”. A mudança real é sempre surpreendente, afinal.

A falsa crise

Muitas vezes é necessário uma crise para criar um vácuo que alimenta esses detalhes tóxicos. Está claro que Wall Street não gosta de crises reais – exceto aquelas que fazem os computadores gerarem rápidos ganhos especulativos na fibrilação atual do ziguezague dos mercados. Mas quando o assunto é dinheiro vivo, a ilusão de uma crise tem preferência, elevada melodramaticamente ao estágio que mobilize emocionalmente ao máximo a audiência, tanto como um bom editor edita um plano sequência. O trem acelerado passará por cima da garota amarrada aos trilhos? Ela escapará a tempo?

O trem é o débito; a garota é para ser tomada como a economia estadunidense. Mas ela se mostra nada mais que Wall Street disfarçada. O exercício vira uma comédia nem tão divina. Obama oferece um plano que parece bastante republicano. Mas os republicanos dizem não. Há uma ilusão de que uma luta real se passa. Eles acusam Obama de socialista.

Os democratas expressam choque com o desconforto de serem ameaçados. Muitos dizem “onde está o real Obama?”. Mas parece que o Obama real se tornou um republicano de Wall Street disfarçado, vestido com roupas democratas. É isso o que o Comitê de Líderes Republicanos é, basicamente: Democratas de Wall Street.

Isso não é tanto um oximoro como pode parecer. Há uma razão por que os democratas pós-Clinton de hoje são partidários do desfazimento do que Franklin Delano Roosevelt e democratas de antanho defenderam. Um Senado democrata nunca deveria ceder aos constrangimentos impostos por Wall Street e trair sua constituição urbana, caso um presidente republicano propusesse o que Obama está lhes oferecendo.

Eis o que o próximo candidato republicano pode dizer: “Você sabe que o que quer que nós, republicanos, quisermos, Obama irá nos apoiar. Se você não quer uma política republicana, então vote em mim para presidente. Porque um Congresso democrata irá se opor a uma política republicana caso proponhamos essas medidas. Mas se Obama as propõe, o Congresso envelhecerá e não resistirá”.

É a mesma história na Inglaterra, onde o Partido Trabalhista é convocado para terminar o trabalho que os conservadores começaram, mas precisam agora do Novo Trabalhismo para acalmar a oposição popular à privatização de rodovias e parcerias público-privadas na administração das linhas do metrô de Londres. E é a mesma história na França, onde um governo socialista está dando apoio a programas de privatização ditados pelo Banco Central Europeu.

Revisitando as falácias de sempre

Quando se encontra representantes dos governos e a mídia repetindo erros econômicos como um mantra incessante, sempre há um interesse especial em operação. O setor financeiro tem interesse específicos em desviar os passos dos eleitores, fazendo-os crer que a economia afundará numa crise se Wall Street não tiver o que pretende – frequentemente por meio da isenção de tributos e da sua desregulação.

A primeira falácia de Obama é a de que o orçamento do governo é como o da família. Famílias não emitem títulos da dívida e obrigam o resto do mundo a lidar com isso como dinheiro fosse. Só governos podem fazê-lo. É um privilégio que os bancos agora gostariam de ter – a capacidade de criar créditos livremente nos teclados de seus computadores e cobrar juros sobre o que é quase de graça e que os governos podem na verdade criar gratuitamente.

Hoje, todas as famílias sabem que uma pequena dívida de cartão de crédito é gerenciável. Mas se mantemos esse mesmo padrão, o crescimento de nossa dívida poderá nos custar empregos e causar um sério prejuízo à economia”. Mas economias necessitam do dinheiro do governo para crescer – e esse dinheiro é fornecido pela rolagem dos déficits orçamentários federais. Essa tem sido a essência do gasto anticíclico keynesiano por mais de meio século. Até hoje, essa era uma política do partido democrata.

É verdade que o presidente Clinton operou um superávit orçamentário. A economia sobreviveu por conta do sistema bancário comercial, que supriu o crédito necessário para a economia crescer – à base de juros. Para forçar a economia a se fiar Wall Street em vez de no governo, o governo precisa parar de gerar déficits orçamentários. A economia então terá uma escolha: encolher rapidamente ou se transferir quase todo o superávit orçamentário aos bancos, enquanto a economia rende com base no privilégio da criação de crédito.

Obama também finge que as agências de classificação de crédito estão prontas para agirem como mascotes de seus clientes, a maior parte dos seguradores financeiros, ao fazerem toda a economia pagar taxas de juros cada vez mais altas em seus cartões de crédito e bancos. “Pela primeira vez na história”, dissimula Obama, “nossa classificação com um triplo A estaria em queda, deixando os investidores ao redor do mundo a se perguntarem se os EUA ainda é uma boa aposta. As taxas de juros iriam disparar nos cartões de crédito, hipotecas e aluguéis de carros, o que implicaria uma grande alta de impostos sobre o povo americano”.

A verdade é que gerar um superávit orçamentário aumentaria as taxas de juros, porque forçaria a economia a ficar cativa do sistema bancário. A administração Obama agora está profundamente envolvida numa fase retórica orwelliana.

Durante a fala de Obama, não pude deixar de sentir que tinha escutado aquilo antes. E então me lembrei quando. Em 2008, o secretário do Tesouro, Henry Paulson, disse, para contrapor o argumento de Sheila Blair, de que todos os clientes do sistema estadunidense de seguros dos depósitos bancários (FDIC) poderiam frear a crise de setembro, com só os jogadores temerários perdendo ganhos que só poderiam esperar obter no seu sistema de crédito livre. “Se o sistema financeiro for autorizado a colapsar”, ele alertou, no seu discurso na Biblioteca Reagan, “é o povo americano que pagará o preço. Isso nunca se tratou de bancos, mas sempre de oportunidade e prosperidade continuada para todos os americanos”.

Mas é claro que se trata de bancos. Wall Street sabe que para ter votos suficientes no Congresso para destruir o New Deal, o Social Security, o Medicare e o Medicaid, é preciso ter um presidente democrata no comando. Um congresso democrata bloquearia qualquer tentativa republicana de fazer o tipo de corte que Obama está propondo. Mas a oposição democrática fica paralisada quando o próprio presidente Obama – o presidente liberal por excelência, o Tony Blair americano – age como o chefe de torcida para cortar direitos e outros gastos sociais.

Dessa maneira, assim como a City de London deu sustentação ao Partido Trabalhista inglês nas suas diretrizes, quando o Partido Conservador não poderia dar esses passos radicais, como privatizar as autoestradas e o metrô de Londres, e só os social democratas da Islândia puderam afundar a economia na vassalagem da dívida em relação a Inglaterra, a Holanda, e o Partido Socialista Grego está à frente da luta pela privatização e pelos resgates bancários, assim nos EUA o Partido Democrata está entregando sua base eleitoral – trabalho urbano, especialmente as minorias radicais e os pobres que são os mais injuriados pelo plano de austeridade de Obama – a Wall Street.

Portanto, Obama está fazendo o que qualquer bom demagogo faz: entregando seu eleitorado ao seus financiadores de campanha de Wall Street. Yves Smith chamou a isso de “a ida de Nixon a China ao contrário”.

Os republicanos retribuem sem pôr uma alternativa confiável na candidatura à sucessão presidencial. O efeito consiste em dar a Obama espaço para ele se mover à vontade para a direita do espectro político. Longe o suficiente dos seus democratas, que estão mais interessados em resgatar o Social Security, não dos republicanos.

Isso se faz mais facilmente sob a pressão do pânico próximo. Isso funcionou depois de setembro de 2008 com o programa de resgate bancário (TARP), afinal de contas. O melodrama do resgate de Wall Street deveria ser visto como um ensaio geral para a atual não crise do teto da dívida.

[1] Um neologismo corrente hoje nos EUA, derivado do todopoderoso Rubin, Secretário do Tesouro no governo Clinton, ex-executivo do ban co Goldman Sachs e homem chave na implementação das contra-reformas neoliberais nos EUA dos anos 90.

(*) Michael Hudson é ex-economista de Wall Street. Professor da Universidade do Missouri, Kansas City (UMKC), é autor de muitos livros, incluindo Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (new ed., Pluto Press, 2002) and Trade, Development and Foreign Debt: A History of Theories of Polarization v. Convergence in the World Economy. Email: mh@michael-hudson.com

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