Os primeiros meses de 2009 colocaram uma crise em plena luz. A do pontificado de Bento XVI. Ainda não se pode medir suas consequências, mas as pesquisas realizadas na França sobre as eventuais "demissões" do Papa são incontestavelmente o sinal de uma dessacralização em curso da função papal, e isso em uma medida jamais conhecida pelos seus antecessores, desde Leão XIII no século XIX até João Paulo II. A análise é de Marco Politi, publicada no jornal Le Monde, 11-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS
Tanto no interior da Cúria romana quanto em seu exterior, interroga-se para se saber se um intelectual como Joseph Ratzinger tem o temperamento de um homem de Estado. Mas é mais no sistema de pensamento do atual Papa que é preciso buscar as raízes desse impasse. Dado que, depois de tudo, não há diferença de linha entre ele e João Paulo II sobre o aborto, contracepção, casamento, biogenética, homossexualidade.
O que se reforçou com Bento XVI foi o caráter doutrinário do papado. Recebendo, em março de 2006, os parlamentares do Partido Popular Europeu (PPE), o Papa os enviou à defesa ativa de "princípios não negociáveis", princípios "inscritos na própria natureza humana e consequentemente comuns a toda a humanidade". Que se trate do não aos contraceptivos e ao preservativo, da rejeição à legalização do aborto, do veto imposto aos casais homossexuais ou da proibição da pesquisa com células-tronco, Bento XVI está convicto de que as leis que regem a socieade contemporânea devem ser subordinadas à lei natural que só a Igreja representa. "Nenhuma lei feita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador", ele adora repetir.
No plano teórico, o Papa destaca muitas vezes que a Igreja não pretende ser protagonista da vida pública, que a ação política é de competência dos católicos enquanto cidadãos e é exercida sob a sua total responsabilidade. Mas o que fica dessa autonomia quando a própria autoridade eclesiástica determina os princípios supremos dessa lei natural que deve valer para a humanidade inteira?
Até a razão acaba sendo submetida ao poder espiritual. "A fé cristã, defende o Papa, purifica a razão e a ajuda a ser mais consciente de si mesma". Até a laicidade é medida segundo os critérios do Papa. Uma laicidade "sadia", explica o soberano pontífice, é a de um Estado que, na sua legislação, dá espaço a uma dimensão particular: a Transcendência. De todas essas intervenções, deriva a imagem de um papado que sustenta todos os cetros ao mesmo tempo. O cetro da fé, o cetro da razão, o cetro da natureza. A consequência política: um enfoque neoteocrático – que, porém, Bento XVI, enquanto filósofo, recusaria.
Essa abordagem acaba por diminuir o porte da grande pergunta que Bento XVI – o teólogo – colocou aos cristãos no começo do terceiro milênio: qual lugar para Deus na sociedade ocidental contemporânea? Porque, apesar do revival religioso das últimas duas décadas, o processo de secularização é irreversível.
Os ocidentais não dão mais o ritmo da sua existência em função de um calendário divino. Deus não está morto, mas – para quem crê – precisa ser reatualizado por cada geração por meio de novas formas de testemunho. Certas pessoas que conhecem bem o modo de pensar de Bento XVI defendem que o seu pontificado se articula em torno de um conceito: "Defender a integridade da fé e mostrar que o cristianismo é alegria". Conduzir a bom fim essa missão é uma tarefa de grande exigência.
O cardeal Ratzinger tinha dito, dialogando com o filósofo alemão Jürgen Habermas, em München (Alemanha), em 2004, que a sociedade moderna deveria inverter a frase do filósofo holandês Hugo Grotius (1583-1645), segundo a qual era preciso agir "etsi Deus non daretur" ("como se Deus não existisse"). Isso podia valer, defendia Ratzinger, em tempos em que os europeus, incluídos os livre-pensadores, viviam com base em um patrimônio de ideias alimentado pela cultura cristã. Na atual desagregação dos valores, afirmava Bento XVI, o objetivo deveria ser viver "veluti Deus daretur" ("como se Deus existisse").
A máxima contém a sedução de uma fina provocação filosófica e, portanto, aplicada à sociedade pluralista européia, leva fatalmente a um vínculo cego. A qual divindade pede-se que se faça referência? Ao Deus cristão na sua acepção protestante ou católica, ortodoxa ou neoevangélica? Ao Deus dos judeus? Dos muçulmanos? Ao não-Deus do budismo? E como um agnóstico poderia ser obrigado a reconhecer uma Transcendência na qual não acredita?
É surpreendente constatar até que ponto a linha seguida por Bento XVI atinge as reflexões do grande poeta romântico Novalis (1772-1801), seu compatriota. Depois das mudanças radicais que acompanharam a Revolução Francesa, Novalis considerou que era essencial agarrar-se aos sólidos ramos representados pela Igreja católica. O poeta temia a difusão, nos anos posteriores à Revolução, de um "ódio antirreligioso". Segundo ele, os seus contemporâneos se ocupavam de "fazer desaparecer todo traço de sagrado", substituindo a fé pelo saber, e o amor pelo ter.
"Onde não há deuses, reinam os espectros", exclamava Novalis. Do mesmo modo, Ratzinger, depois do cisma da secularização e do trauma dos totalitarismos do século XX, não vê outra salvação para o Ocidente a não ser o retorno às fontes cristãs. No fundo, mas o Papa não pode dizer isto, a sua proposta seria mais "viver como se o Deus dos católicos existisse", conformando-se à lei assim como a Igreja apostólica romana, segura intérprete de Deus, da Razão e da Natureza, a enuncia. Ora, é justamente o que, depois de dois séculos, se tornou impossível na Europa! Perseverar nessa linha significa arrastar a Igreja rumo a um choque com a sociedade e com os próprios católicos.