“O amor, a amizade, a comunidade, quando escapam da loucura dos proprietários, compõem cumplicidades anticapitalistas”, avalia Marcelo Percia, psicanalista argentino, no texto “A angústia como afeição anticapitalista”, do qual foi extraído o fragmento a seguir, publicado no jornal argentino Página/12, 04-09-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS
Enquanto a palavra “angústia” é empregada para expressar diferentes sentimentos infelizes, o termo “capitalismo” é substituído por outras que escondem as relações sociais de exploração e desigualdade. Confunde-se angústia com ansiedade, tristeza, frustração, nostalgia, temor, e se opta por qualificar como sociedade, mercado, sistema, realidade, mundo, o que deveria ser chamado de capitalismo. A angústia, eleita como representante de todas as tristezas, perde seu potencial emancipador, e as pessoas que evitam nomear o capitalismo ocultam a injustiça histórica do presente infeliz.
Freud retoma teorias que pensam o amor como conjuro contra a angústia. Sugere que amamos o outro em quem encontramos o que gostaríamos de ter ou alguém que sentimos que nos ama assim como nos iludimos ser. O amor se apresenta como um ideal protetor, uma habilidade imaginária, um rodeio sutil, através do outro, para recuperar a desejada segurança perdida. Escreve Cesare Pavese em seu diário, em 25 de março de 1950: “Não nos matamos por amor a uma mulher. Nos matamos porque um amor, qualquer amor, nos revela em nossa nudez, miséria, nada”. Pavese pensa que o suicídio por amor é um ato desesperado daqueles que não suportam viver a solidão, sem roupagens.
O amor freudiano é loucura possessiva. Mesmo que não se possa prender o outro, o desejo de tê-lo aprisionado e decifrado é uma obsessão da civilização amorosa. O enunciado que diz que o outro não é apropriável é uma premissa ética, mas também é uma condição do desejo e do erotismo. Ama-se o inatingível, mesmo que o amor delire nos abraços.
O amor deseja a posse impossível do outro. Os amantes querem segurança: a presença do amado para sempre. Quando o amante declara que tem pressa para suprimir essa distância que lhe dói, esquece que essa posse recusada é a própria condição de seu furor. O amor é desejo que se acende mais e mais com a evidência do inalcançável.
Merleau-Ponty chama a atenção para esta ambiguidade do amor: observa que, quando o narrador de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, se pergunta se ama de verdade a Albertine, não pode se decidir: como sente que a deseja quando ela se afasta, infere que não a ama, mas quando ela morre, diante da evidência dessa distância sem retorno, se dá conta de que necessita dela e confirma que a ama. Merleau-Ponty se pergunta: “Se Albertine fosse devolvida a ele, continuaria amando-a?”. Nunca saberemos, responde, se o narrador quer a Albertine ou ama a possibilidade de perdê-la; se ama essa mulher ou enlouquece invejosamente quando sentir que a morte a arrebata dele.
O amor, que costuma afastar uma teia de aranha, pode ser também o vazio em que duas solidões, que se sabem irremediavelmente sozinhas, se aproximam sem esperar completar nada. O amor é felicidade, mas, livre da experiência da angústia, é careta congelada de uma posse sem vida.
O amor, a amizade, a comunidade, quando escapam da loucura dos proprietários, compõem cumplicidades anticapitalistas.
Melancolia
A melancolia é desenfreio de uma posse enlouquecida. Uma imagem freudiana a descreve como movimento em que “a sombra do objeto cai sobre o eu”. Para Freud, é um protesto desaforado diante do qual se vive como um injusto despojo. A melancolia é uma revolta contra a morte, a doença, a velhice e o controle impossível de um semelhante. A sombra do objeto que cai sobre o eu é o obscuro retorno, sobre a primeira pessoa do singular, da própria ilusão projetada. A volta sobre si de um poder murcho.
O amor freudiano é uma transação: adquirimos, através do outro, uma garantia emocional, um valor de nós mesmos. Importa que o escolhido não contradiga o engano ou que simule ser o que necessitamos. Quando se ama, não se sabe o que fazer com esse amor: “Te quero ter, só minha, não me deixes nunca, vamos ficar assim por toda a vida”. À paixão custa imaginar uma declaração não possessiva.
A melancolia é tirania do amor: não quer admitir que a pessoa amada não seja uma marionete obrigada a dar-nos felicidade. A melancolia é persistência dessa ilusão caída e tem resistência a um novo amor porque não quer enfrentar outro desastre.
Sai-se da melancolia através de uma dor, mas dor não quer dizer tristeza raciocinada ou despedida dolorida pelo amor perdido: dor significa onipotência resignada.
A posse sem limites é a secreta aspiração da melancolia. Os corpos angustiados de nossa cultura aprendem a acalmar-se (e não sabem disso) tendo algo: brinquedos, pessoas, dinheiro, objetos, bens, talento, prestígio. A apropriação é praticamente o único remédio oferecido à subjetividade que, assustada, não imagina outras formas de felicidade. O capitalismo fabrica vidas possuídas. Os possuídos, entretanto, não se sentem infectados por esse poder, mas sujeitos livres. Os inúmeros pobres e excluídos, restos sociais que quase não contam, são chamados de despossuídos.
A melancolia é certeza obstinada: acredita ter-se adonado daquilo que nunca teve. A melancolia apresenta um fantasma, confunde a morte inevitável com a traição.
A angústia é o infinitivo da vida humana: é silêncio e solidão. Não há desejo sem a invenção desse vazio. O desejo não busca a posse, mas o buscar. O desejo é uma forma impessoal sem compromissos com uma meta antecipada. O desejo também não se possui, se dá ou se aloja, provisoriamente, em sua passagem para o outro. O desejo é inconformidade.
Enquanto a palavra “angústia” é empregada para expressar diferentes sentimentos infelizes, o termo “capitalismo” é substituído por outras que escondem as relações sociais de exploração e desigualdade. Confunde-se angústia com ansiedade, tristeza, frustração, nostalgia, temor, e se opta por qualificar como sociedade, mercado, sistema, realidade, mundo, o que deveria ser chamado de capitalismo. A angústia, eleita como representante de todas as tristezas, perde seu potencial emancipador, e as pessoas que evitam nomear o capitalismo ocultam a injustiça histórica do presente infeliz.
Freud retoma teorias que pensam o amor como conjuro contra a angústia. Sugere que amamos o outro em quem encontramos o que gostaríamos de ter ou alguém que sentimos que nos ama assim como nos iludimos ser. O amor se apresenta como um ideal protetor, uma habilidade imaginária, um rodeio sutil, através do outro, para recuperar a desejada segurança perdida. Escreve Cesare Pavese em seu diário, em 25 de março de 1950: “Não nos matamos por amor a uma mulher. Nos matamos porque um amor, qualquer amor, nos revela em nossa nudez, miséria, nada”. Pavese pensa que o suicídio por amor é um ato desesperado daqueles que não suportam viver a solidão, sem roupagens.
O amor freudiano é loucura possessiva. Mesmo que não se possa prender o outro, o desejo de tê-lo aprisionado e decifrado é uma obsessão da civilização amorosa. O enunciado que diz que o outro não é apropriável é uma premissa ética, mas também é uma condição do desejo e do erotismo. Ama-se o inatingível, mesmo que o amor delire nos abraços.
O amor deseja a posse impossível do outro. Os amantes querem segurança: a presença do amado para sempre. Quando o amante declara que tem pressa para suprimir essa distância que lhe dói, esquece que essa posse recusada é a própria condição de seu furor. O amor é desejo que se acende mais e mais com a evidência do inalcançável.
Merleau-Ponty chama a atenção para esta ambiguidade do amor: observa que, quando o narrador de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, se pergunta se ama de verdade a Albertine, não pode se decidir: como sente que a deseja quando ela se afasta, infere que não a ama, mas quando ela morre, diante da evidência dessa distância sem retorno, se dá conta de que necessita dela e confirma que a ama. Merleau-Ponty se pergunta: “Se Albertine fosse devolvida a ele, continuaria amando-a?”. Nunca saberemos, responde, se o narrador quer a Albertine ou ama a possibilidade de perdê-la; se ama essa mulher ou enlouquece invejosamente quando sentir que a morte a arrebata dele.
O amor, que costuma afastar uma teia de aranha, pode ser também o vazio em que duas solidões, que se sabem irremediavelmente sozinhas, se aproximam sem esperar completar nada. O amor é felicidade, mas, livre da experiência da angústia, é careta congelada de uma posse sem vida.
O amor, a amizade, a comunidade, quando escapam da loucura dos proprietários, compõem cumplicidades anticapitalistas.
Melancolia
A melancolia é desenfreio de uma posse enlouquecida. Uma imagem freudiana a descreve como movimento em que “a sombra do objeto cai sobre o eu”. Para Freud, é um protesto desaforado diante do qual se vive como um injusto despojo. A melancolia é uma revolta contra a morte, a doença, a velhice e o controle impossível de um semelhante. A sombra do objeto que cai sobre o eu é o obscuro retorno, sobre a primeira pessoa do singular, da própria ilusão projetada. A volta sobre si de um poder murcho.
O amor freudiano é uma transação: adquirimos, através do outro, uma garantia emocional, um valor de nós mesmos. Importa que o escolhido não contradiga o engano ou que simule ser o que necessitamos. Quando se ama, não se sabe o que fazer com esse amor: “Te quero ter, só minha, não me deixes nunca, vamos ficar assim por toda a vida”. À paixão custa imaginar uma declaração não possessiva.
A melancolia é tirania do amor: não quer admitir que a pessoa amada não seja uma marionete obrigada a dar-nos felicidade. A melancolia é persistência dessa ilusão caída e tem resistência a um novo amor porque não quer enfrentar outro desastre.
Sai-se da melancolia através de uma dor, mas dor não quer dizer tristeza raciocinada ou despedida dolorida pelo amor perdido: dor significa onipotência resignada.
A posse sem limites é a secreta aspiração da melancolia. Os corpos angustiados de nossa cultura aprendem a acalmar-se (e não sabem disso) tendo algo: brinquedos, pessoas, dinheiro, objetos, bens, talento, prestígio. A apropriação é praticamente o único remédio oferecido à subjetividade que, assustada, não imagina outras formas de felicidade. O capitalismo fabrica vidas possuídas. Os possuídos, entretanto, não se sentem infectados por esse poder, mas sujeitos livres. Os inúmeros pobres e excluídos, restos sociais que quase não contam, são chamados de despossuídos.
A melancolia é certeza obstinada: acredita ter-se adonado daquilo que nunca teve. A melancolia apresenta um fantasma, confunde a morte inevitável com a traição.
A angústia é o infinitivo da vida humana: é silêncio e solidão. Não há desejo sem a invenção desse vazio. O desejo não busca a posse, mas o buscar. O desejo é uma forma impessoal sem compromissos com uma meta antecipada. O desejo também não se possui, se dá ou se aloja, provisoriamente, em sua passagem para o outro. O desejo é inconformidade.