Entrevista concedida por e-mail, ditada por Le Goff à sua assessora, Mme. Christine Bonnefoy, que a transcreveu e enviou as respostas à IHU On-Line. Nascido em 1924, em Toulon, França, Le Goff tem saúde frágil, mas mantém-se intelectualmente ativo. Pertencente ao supra-sumo da elite intelectual francesa, estudou na Escola Normal Superior de Paris, centro de formação dos quadros do magistério francês, depois de ter completado os primeiros anos escolares no não menos famoso Liceu Louis-le Grand, onde também estudou Sartre.
Le Goff é considerado um dos maiores medievalistas do mundo e pertence à velha tradição francesa que une a história à greografia. Inspirado por Fernand Braudel e Maurice Lombard, tornou-se uma das figuras-chave da escola dos Annales por ter conseguido integrar à reflexão sobre o espaço e o tempo a dimensão humana. Em 1972, sucedeu Braudel na École des Hautes Études em Sciences Sociales onde permaneceu até 1977, deixando espaço para François Furet. De suas inúmeras obras, destacamos: O imaginario medieval. Lisboa: Estampa, 1994; Os intelectuais na Idade Média. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995; São Francisco de Assis. São Paulo: Record, 2001; A civilização do Ocidente medieval. EDUSC: São Paulo, 2005, traduzida para o português por José Rivair de Macedo e Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru/São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado, 2002, organizado em parceria com Jean-Claude Schmitt e trauzido por Hilário Franco. "
Fonte: UNISINOS
Fonte: UNISINOS
IHU On-Line – O senhor afirma em A civilização do Ocidente Medieval que a Idade Média nasceu das ruínas do mundo romano. Por que Roma foi “seu alimento e sua paralisia”?
Jacques Le Goff – Eu penso que Roma foi o alimento e a paralisia do mundo medieval, porque a cultura antiga junto com a Bíblia foi a base da cultura medieval, porém o constante cuidado dos homens da Idade Média em ressuscitar a Antigüidade freou bastante sua evolução para a modernidade.
IHU On-Line – A convergência do mundo romano com o bárbaro criou o mundo medieval. Que tipo de sociedade emerge dessa fusão? Que traços do mundo clássico e germânico persistiram? Quais seriam as continuidades e rupturas que podem ser verificadas na passagem da Antigüidade para a Idade Média?
Jacques Le Goff – O politeísmo cedeu ao monoteísmo. Instituições essenciais do mundo romano desapareceram, como, por exemplo, as termas, o circo e o teatro. A escravidão, sem desaparecer, foi abandonada e se desfez lentamente. A sociedade se ruralizou com um vigoroso surgimento das cidades entre os séculos X e XIII. A Idade Média tomou as artes liberais da Antigüidade, mas construiu uma nova filosofia impregnada de teologia: a escolástica. Tardia no Ocidente, a promoção da Virgem Maria favoreceu a promoção da mulher. A difusão do moinho nascido na Antigüidade permitiu um vivo crescimento econômico.
IHU On-Line – Qual foi o papel da Igreja na construção da sociedade medieval? Com base em que a Igreja construiu a noção de Diabo que sobrevive até os dias de hoje?
Jacques Le Goff – O Diabo provém do desenvolvimento do personagem apresentado no Novo Testamento como tentador de Jesus e da continuidade ou do ressurgimento das crenças populares num chefe maléfico dos demônios.
IHU On-Line – Quais seriam as principais conseqüências da crise da Cristandade, ocorrida nos séculos XIV e XV?
Jacques Le Goff – A crise da cristandade nos séculos XIV e XV se manifestou por uma diminuição da população, pelo desencadear das guerras e das violências, mas também pelo desenvolvimento do espírito crítico.
IHU On-Line – Por que razão Boécio, Cassiodoro, Isidoro de Sevilha e Beda podem ser chamados de “fundadores” da Idade Média?
Jacques Le Goff – Boécio , Isidoro , Cassiodoro de Sevilha e Beda podem ser chamados de fundadores da Idade Média porque se apoiaram na filosofia e na cultura antigas para criar uma França cristã.
Entrevista feita por Pietro Del Re, publicada no jornal La Repubblica, 15-03-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
Professor, o que sabemos sobre o comportamento sexual daqueles séculos obscuros?
Quase nada, porque, salvo as expressões literárias ou artísticas, temos poucos documentos que nos permitam compreender o que realmente ocorreu no segredo da alcova.
Depois do casamento medieval, junto ao homem e à mulher no leito nupcial estava também Deus. O coito conjugal era legítimo ou era apenas uma concessão à procriação?
O casamento se torna sacramento só depois do quarto Concílio Lateranense, em 1215. Até então, não havia conseguido se distinguir daquilo que era a antiguidade romana: um contrato. Porém, mesmo se se casava fora da Igreja, para ser válido também aos olhos do clero e, portanto, aos olhos de Deus, o casamento deveria ser consumado.
Mas gozar é sempre pecado?
Geralmente sim. No século XII, justamente quando a Igreja inventa o Purgatório, para arrancar o homem da tradicional oposição Inferno-Paraíso, São Tomás de Aquino nega que possa haver uma parte legítima de prazer na realização do ato sexual, mesmo que no âmbito do matrimônio.
Nessa época, o pecado original era assimilado como carnal, e a imagem do inferno era muitas vezes representada como o sexo feminino. Pode-se dizer que, na Idade Média, o mal era uma mulher?
Sim, mas até certo ponto. Contrariamente ao que ocorria em Bizâncio, até o século XI o culto da Virgem Maria não era celebrado pela Igreja. A partir desse momento, se desenvolveu, pelo contrário, com força extraordinária. É também graças ao culto mariano que a mulher foi reavaliada nas sociedades medievais.
Contra a infâmia da luxúria e do adultério, estavam previstas punições corporais duríssimas. Estas tornavam o homem medieval mais "puro" do que o homem moderno?
O castigo, sem dúvida, contribuiu para manter a luxúria escondida, mesmo que os teólogos e os pregadores dissessem que Deus via tudo, inclusive o que se fazia na sombra. Porém, na margem dos manuscritos da época, frequentemente são representadas cenas de luxúria, que não hesitaria em definir como pornográficas: um bispo sodomita, uma mulher que colhe falos de uma árvores ou cenas de sexo entre homens e animais. A Idade Média admitia o mal, desde que se manifestasse à margem da sociedade, distante do seu centro sacro. Antes de querer erradicá-lo totalmente, o cristianismo sempre buscou limitar o mal por meio da confissão e do arrependimento.
As prostitutas eram toleradas pela Igreja?
Sim, a prostituição era permitida. Quanto o rei moralista Luís IX, dito São Luís, quer vetá-la, o bispo de Paris lhe disse que era "um mal necessário".
O amor cortês que sublima a mulher é sempre um amor platônico?
Sobre esse problema, os medievalistas se dividem. Eu acredito que o amor cortês é puramente imaginário. Existem apenas na literatura. O que não significa que o amor real sempre esteja em estado brutal, que sempre haja uma violenta dominação do homem sobre a mulher. Mas o amor em que a mulher se torna o senhor, e o cavalheiro, o seu servo, nunca existiu. Nem mesmo nas classes superiores da sociedade. Dito isso, a Idade Média durou do século V ao século XV, e, em mil anos, muitas coisas mudaram. A mudança essencial se produziu no século XII, quando os valores do céu descem sobre a Terra. Desde aquele momento, a felicidade não está reservada só para o lado de lá. Há o início de uma possível satisfação do prazer também para nós, mortais. Aparecem, por exemplo, os primeiro tratados de gastronomia. O trabalho, que era considerado uma punição do pecado original, se torna, pelo contrário, um valor. De resto, é nessa época que se começa a dizer que o home foi criado à imagem de Deus.
O que muda com o Renascimento?
Há a exaltação da beleza e, em particular, da nudez. A Igreja medieval rejeitava a nudez e, com ela, a maior parte da arte antiga, que, sobretudo na escultura, representava corpos nus. Com o Renascimento na Europa, sobretudo no século XV, ocorre a redescoberta dos nus. Os mesmos que antes eram representados nos afrescos das basílicas, apenas nas cenas da ressurreição dos corpos.