O jornal italiano La Repubblica, 07-05-2009, antecipou um trecho do novo livro do sociólogo Zygmunt Bauman, publicado na Itália com o título "L'arte della vita" [A arte da vida, em tradução livre] (Editora Laterza), que aborda as relações do mundo líquido com a felicidade. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
Cada um de nós é artista da própria vida: sabendo ou não, querendo ou não, gostando ou não. Ser artista significa dar forma e estrutura ao que, de outra forma, seria informe e indefinido. Significa manipular probabilidades. Significa impor uma "ordem" ao que, caso contrário, seria "caos": "organizar" um conjunto de coisas e de eventos que, de outra forma, seria caótico (casual, fortuito e, portanto, imprevisível), tornando mais provável assim a verificação de certos eventos em vez de outros.
Em que devemos nos inspirar para saber como organizar (e organizar-nos), senão nos profissionais, em quem é responsável por aquelas entidades que se chamam "organizações"?
Até muito pouco tempo atrás, o conceito de "organização" havia começado a fazer parte do uso comum associado a gráficos, diagramas, organogramas, departamentos, cronogramas, regulamentos, à vitória da ordem (de um estado em que se faz com que alguns eventos sejam muito mais prováveis do que quaisquer outros) sobre o caos (sobre um estado em que cada coisa tem a mesma probabilidade ou uma probabilidade incalculável de acontecer).
Escrevi "até muito pouco tempo atrás" porque hoje, entrando na sede central de uma organização, é possível sentir os ventos da mudança soprarem. Há alguns anos, Joseph B. Pine e James H. Gilmore publicaram um livro, "L'economia delle esperienze" [A economia das experiências, em tradução livre], cujo título (seguramente graças também à ajuda das credenciais da Harvard Business School) acendeu imediatamente a fantasia dos estudantes de Economia empresarial, elevando o atual modo de pensar de diretores e presidentes de empresas a um novo paradigma dos estudos de organizações.
Em um livro de ensaios estimulantes publicado pela Copenhagen Business School Press, os organizadores Daniel Hjorth e Monika Kostera delinearam, em termos gerais e com notável riqueza de particulares, o percurso do velho paradigma organizativo, baseado no "management" e na prioridade do controle e da eficiência, ao paradigma emergente, que se refere, sobretudo, ao espírito empreendedor e destaca as "características mais vitais da experiência: imediaticidade, espírito lúdico, subjetividade e performatividade".
Niels Akerstrom, professor da Copenhagen Business School, compara a atual situação do funcionário de uma organização àquela que se vive hoje por casais ou companheiros. A análise de Akerstrom sobre a tendência de redefinir as organizações segundo um esquema semelhante ao das relações de amor nos remete a uma transformação ainda mais vasta, que está provavelmente na base da "mudança de paradigma": na transformação profunda do papel desempenhado no contexto líquido-moderno pelos vínculos humanos, particularmente pelas relações de amor e, mais geralmente, de amizade.
A sua força de atração alcança hoje, segundo todos dizem, níveis sem precedentes, mas é inversamente proporcional à capacidade de desempenhar o papel esperado e desejado, que era e continua sendo a causa principal daquela atração. É justamente porque estamos disponíveis para "amizades e uniões profundas", justamente porque as desejamos mais forte e desesperadamente do que nunca, que as nossas relações são cheias de rumores e furores, cheias de angústia e em perene alerta.
Queremos a mão disponível de uma pessoa amiga, confiável, fiel, "até-que-a-morte-nos-separe", que seja estendida com segurança, prontamente e de bom grado, em qualquer momento que for necessário, que seja como a ilha para o náufrago ou o oásis para quem se perdeu no deserto: são essas as mãos que nos são necessárias, que queremos ao nosso redor, quanto mais numerosas melhor.
Porém, no nosso ambiente líquido-moderno, a fidelidade para toda a vida é uma graça, inseparável de várias desgraças. O que fazer se as ondas mudam de direção, se surgem novas oportunidades que transformam os confiáveis pontos fortes de ontem em ameaçadoras fraquezas de hoje; os bens que há um tempo nos mantinham unidos, em pesos cansativos; os coletes salva-vidas, em cinturões de chumbo?
"Onde fica a fronteira entre o direito à felicidade pessoal e a um novo amor, e o egoísmo inconseqüente disposto a desintegrar a família e talvez prejudicar os filhos?", pergunta-se Ivan Klíma. Traçar esse limite com precisão pode ser doloroso, mas podemos estar certos de uma coisa: essa fronteira, onde quer que seja, é violada no momento em que o ato de estreitar e soltar laços entre os homens é declarado moralmente indiferente e neutro, liberando a priori os autores da responsabilidade das recíprocas consequências daquilo que fazem: daquela mesma responsabilidade incondicional que o amor promete, nos momentos bons e ruins, e que luta para construir e conservar. "A criação de uma relação boa e duradoura", em clara oposição à busca de prazer por meio de objetos de consumo, "requer um esforço enorme".
Em resumo: o amor não é algo que se possa encontrar, não é um "objet trouvé" ou um "ready-made". É algo que requer que seja criado e recriado a cada dia, a cada hora; que precisa ser constantemente ressuscitado e reafirmado; e requer atenção e cuidado. Alinhado com a crescente fragilidade dos laços humanos, com a impopularidade dos compromissos de longo prazo, com a eliminação dos "deveres" pelos "direitos" e a transgressão de toda obrigação que não seja "voltada para si mesmo" ("eu preciso", "eu mereço" e assim por diante), tende-se a ver no amor algo que é perfeito ou falho desde o início, e que, por isso, é melhor abandonar e substituir com exemplares "novos e melhorados", que, espera-se, sejam verdadeiramente perfeitos. Um amor semelhante não sobreviverá à primeira pequena discussão e muito menos ao primeiro sério desacordo e confronto.
A felicidade – para recordar o diagnóstico de Kant – não é um ideal da razão, mas da imaginação. E o próprio Kant advertiu que, do lenho torto da humanidade, nunca se poderia tirar nada reto e direito. John Stuart Mill pareceu reunir ambas as noções em uma advertência: pergunta-te se és feliz e deixarás de sê-lo. Os antigos provavelmente já o suspeitavam, mas, guiados pelo princípio "Dum spiro, spero" – até que haja vida, há esperança –, sustentavam que, sem trabalho duro, a vida não ofereceria nada que tivesse valor. Dois mil anos depois, essa sugestão não perdeu, de fato, a sua atualidade.
Fonte: UNISINOS
Cada um de nós é artista da própria vida: sabendo ou não, querendo ou não, gostando ou não. Ser artista significa dar forma e estrutura ao que, de outra forma, seria informe e indefinido. Significa manipular probabilidades. Significa impor uma "ordem" ao que, caso contrário, seria "caos": "organizar" um conjunto de coisas e de eventos que, de outra forma, seria caótico (casual, fortuito e, portanto, imprevisível), tornando mais provável assim a verificação de certos eventos em vez de outros.
Em que devemos nos inspirar para saber como organizar (e organizar-nos), senão nos profissionais, em quem é responsável por aquelas entidades que se chamam "organizações"?
Até muito pouco tempo atrás, o conceito de "organização" havia começado a fazer parte do uso comum associado a gráficos, diagramas, organogramas, departamentos, cronogramas, regulamentos, à vitória da ordem (de um estado em que se faz com que alguns eventos sejam muito mais prováveis do que quaisquer outros) sobre o caos (sobre um estado em que cada coisa tem a mesma probabilidade ou uma probabilidade incalculável de acontecer).
Escrevi "até muito pouco tempo atrás" porque hoje, entrando na sede central de uma organização, é possível sentir os ventos da mudança soprarem. Há alguns anos, Joseph B. Pine e James H. Gilmore publicaram um livro, "L'economia delle esperienze" [A economia das experiências, em tradução livre], cujo título (seguramente graças também à ajuda das credenciais da Harvard Business School) acendeu imediatamente a fantasia dos estudantes de Economia empresarial, elevando o atual modo de pensar de diretores e presidentes de empresas a um novo paradigma dos estudos de organizações.
Em um livro de ensaios estimulantes publicado pela Copenhagen Business School Press, os organizadores Daniel Hjorth e Monika Kostera delinearam, em termos gerais e com notável riqueza de particulares, o percurso do velho paradigma organizativo, baseado no "management" e na prioridade do controle e da eficiência, ao paradigma emergente, que se refere, sobretudo, ao espírito empreendedor e destaca as "características mais vitais da experiência: imediaticidade, espírito lúdico, subjetividade e performatividade".
Niels Akerstrom, professor da Copenhagen Business School, compara a atual situação do funcionário de uma organização àquela que se vive hoje por casais ou companheiros. A análise de Akerstrom sobre a tendência de redefinir as organizações segundo um esquema semelhante ao das relações de amor nos remete a uma transformação ainda mais vasta, que está provavelmente na base da "mudança de paradigma": na transformação profunda do papel desempenhado no contexto líquido-moderno pelos vínculos humanos, particularmente pelas relações de amor e, mais geralmente, de amizade.
A sua força de atração alcança hoje, segundo todos dizem, níveis sem precedentes, mas é inversamente proporcional à capacidade de desempenhar o papel esperado e desejado, que era e continua sendo a causa principal daquela atração. É justamente porque estamos disponíveis para "amizades e uniões profundas", justamente porque as desejamos mais forte e desesperadamente do que nunca, que as nossas relações são cheias de rumores e furores, cheias de angústia e em perene alerta.
Queremos a mão disponível de uma pessoa amiga, confiável, fiel, "até-que-a-morte-nos-separe", que seja estendida com segurança, prontamente e de bom grado, em qualquer momento que for necessário, que seja como a ilha para o náufrago ou o oásis para quem se perdeu no deserto: são essas as mãos que nos são necessárias, que queremos ao nosso redor, quanto mais numerosas melhor.
Porém, no nosso ambiente líquido-moderno, a fidelidade para toda a vida é uma graça, inseparável de várias desgraças. O que fazer se as ondas mudam de direção, se surgem novas oportunidades que transformam os confiáveis pontos fortes de ontem em ameaçadoras fraquezas de hoje; os bens que há um tempo nos mantinham unidos, em pesos cansativos; os coletes salva-vidas, em cinturões de chumbo?
"Onde fica a fronteira entre o direito à felicidade pessoal e a um novo amor, e o egoísmo inconseqüente disposto a desintegrar a família e talvez prejudicar os filhos?", pergunta-se Ivan Klíma. Traçar esse limite com precisão pode ser doloroso, mas podemos estar certos de uma coisa: essa fronteira, onde quer que seja, é violada no momento em que o ato de estreitar e soltar laços entre os homens é declarado moralmente indiferente e neutro, liberando a priori os autores da responsabilidade das recíprocas consequências daquilo que fazem: daquela mesma responsabilidade incondicional que o amor promete, nos momentos bons e ruins, e que luta para construir e conservar. "A criação de uma relação boa e duradoura", em clara oposição à busca de prazer por meio de objetos de consumo, "requer um esforço enorme".
Em resumo: o amor não é algo que se possa encontrar, não é um "objet trouvé" ou um "ready-made". É algo que requer que seja criado e recriado a cada dia, a cada hora; que precisa ser constantemente ressuscitado e reafirmado; e requer atenção e cuidado. Alinhado com a crescente fragilidade dos laços humanos, com a impopularidade dos compromissos de longo prazo, com a eliminação dos "deveres" pelos "direitos" e a transgressão de toda obrigação que não seja "voltada para si mesmo" ("eu preciso", "eu mereço" e assim por diante), tende-se a ver no amor algo que é perfeito ou falho desde o início, e que, por isso, é melhor abandonar e substituir com exemplares "novos e melhorados", que, espera-se, sejam verdadeiramente perfeitos. Um amor semelhante não sobreviverá à primeira pequena discussão e muito menos ao primeiro sério desacordo e confronto.
A felicidade – para recordar o diagnóstico de Kant – não é um ideal da razão, mas da imaginação. E o próprio Kant advertiu que, do lenho torto da humanidade, nunca se poderia tirar nada reto e direito. John Stuart Mill pareceu reunir ambas as noções em uma advertência: pergunta-te se és feliz e deixarás de sê-lo. Os antigos provavelmente já o suspeitavam, mas, guiados pelo princípio "Dum spiro, spero" – até que haja vida, há esperança –, sustentavam que, sem trabalho duro, a vida não ofereceria nada que tivesse valor. Dois mil anos depois, essa sugestão não perdeu, de fato, a sua atualidade.
Para ler mais:
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- O teórico do mundo líquido. Da globalização à crise do neoliberalismo
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