Frei Leandro é doutorando em antropologia/PUC-SP-Bolsista CNPq
Fonte: Supera Piauí
A historiografia piauiense ainda carrega uma dívida biográfica sobre o indígena Mandu Ladino, que o chamo de “abolicionista piauiense”. Talvez poucos alunos do Ensino Médio e/ou universitários conheçam a importância desse líder que, incansavelmente, lutou contra os primeiros fazendeiros-criadores piauienses, em defesa dos direitos dos indígenas às suas terras. Por isso, descrever a vida desse guerreiro é uma questão muito complexa, pois, por causa da escassez de fontes documentárias primárias, pouco se sabe sobre o seu perfil social, étnico, político e ideológico. Contudo, baseado em algumas fontes bibliográficas, tentamos traçar o perfil desse abolicionista.
Os Anais Históricos da Província do Maranhão descrevem Mandu Ladino como “um índio chamado Manoel, com a antonomásia de Ladino que, nascido no grêmio católico, deve a sua educação aos missionários da Companhia de Jesus”. Percebe-se uma redução do termo Manoel para “Mandu”, um adjetivo que, popularmente, significa tolo, idiota, imbecil, pacóvio; e “Ladino” cujo adjetivo provém da raiz latina lad ou da variante lat, portanto, latinum ou latinu que significa “astuto, esperto, sagaz”. Ladino também era denominado o mestiço ou negro que aprendia e sabia qualquer ofício ou arte. Daí supõe-se que o abolicionista dos indígenas, com toda a sua astúcia e sagacidade, tivesse toda uma arte para combater os dominadores.
Semelhantemente a Zumbi dos Palmares (1687), surgiu, em 1712, Mandu Ladino, “um mestre na arte de combater” (BAPTISTA, 1994:36). Este líder - ganhando a simpatia dos indígenas revoltados com a crueldade dos fazendeiros-criadores, usurpadores das suas terras -, lutou contra as forças do “progresso” da época. Grupos de indígenas fugiram dos aldeamentos para se unir ao exército de Mandu Ladino. O abolicionista piauiense mobilizou, no Maranhão, Piauí e Ceará, um movimento de ruptura radical com o sistema de dominação, abalando assim a sua estrutura de produção. A partir daí foi intensificado a caça ao indígena que passou a ser estigmatizado de bárbaro, bravo e selvagem e, por isso, deveria ser aniquilado através da degola. Além disso, os detentores do poder diziam que o “astuto e forte” Mandu Ladino vagueava pelas serras e rios piauienses, causando terror e amedrontando os adeptos da “civilização”.
O historiador Manuel Aires de Casal, na obra “Corografia Brasílica”, assegura que “a conquista da gentilidade dos sertões do Piauí não custou grandes sacrifícios”. Eu refuto essa posição porque não procede, pois aconteceram muitas rebeliões e revoltas dos indígenas piauienses contra os fazendeiros-criadores que aqui se instalaram, em 1674. Não foram tão pacíficos como o autor descreve. Ademias, Aires de Casal limita-se a dizer que Mandu Ladino era um “índio doméstico” que fugira de Pernambuco para o Piauí, onde conquistou os índios Poti. Em torno dessas informações existem ainda algumas incógnitas que precisam de uma análise documental mais aprofundada.
Porém, há duas correntes que descrevem a procedência étnica de Mandu Ladino. A primeira afirma que o guerreiro pertencia à tribo Poti (Tremembé) e morava no rio Poti, desde o primeiro contato, em 1674. Segundo a classificação de João Gabriel Baptista (1994), a etnia Cariri (ou Kariri) constituía-se de quatro famílias: Tremembé, Aranhi (ou Arani), Poti e Crateús. Estes povos tinham 60 tribos, localizadas no Delta do rio Parnaíba. Alguns historiadores afirmam que Mandu Ladino fazia parte da tribo Aranhi, situada às margens do Parnaíba. Mas uma segunda corrente assegura que Mandu Ladino pertencia à etnia Tupi, portanto, da nação Tabajara, e deveria ter feito parte de uma das tribos que estava localizada ao Norte, mais ao litoral ou perto. Esta nação encontrava-se também na Serra Grande ou Ibiapaba e era conhecida como Tobajara ou Tujupar.
Para os autores Benedito Prezia e Eduardo Hoomaert (2000), Mandu Ladino “liderou esse movimento com mão firme e tornou-se, por sete anos, o homem mais forte da região. Ele era da nação Kariri (Cariri), mas muitos povos de língua tupi, que moravam no Ceará, juntaram-se a ele contra os fazendeiros. Foi uma importante rebelião que abalou mais uma vez o sertão nordestino. Muitos portugueses morreram e muitas fazendas foram destruídas no Ceará e no Piauí”.
Para conter as rebeliões e revoltas dos Tapuias do Norte, em 1712, o governador da Província do Maranhão enviou Antônio da Cunha Souto Maior para o Campo da Conquista do Piauí. Mas as guerras travadas pelo representante do governador não prosperaram, e este foi assassinado, em 1713, pelos próprios índios Tapuias com quem fazia a guerra contra “todos os de corso [os Aranhis] daquele vastíssimo país [Província do Maranhão]”. Por causa disso, em 1716 (ou 1718?), o governador do Maranhão enviou Cavalcante de Albuquerque para a casa forte do Iguara, com o objetivo de, unindo-se a Carvalho e Aguiar, combater os Aranhis. Estes seguiram, juntamente com Mandu Ladino, para o Porto das Barcas (situado ao litoral), onde nova luta se desencadeou. O valente Mandu Ladino resistiu, porém, foi cercado pelo exército e, no duro combate, caiu no rio Igaraçu, onde foi assassinado pelo soldado Manoel Peres, que recebeu carta régia de agradecimento pelo acontecimento (ALENCASTRE, 1981).
Tombava, portanto, nosso valente e combatente abolicionista que fez acontecer a primeira, e talvez a única, tentativa revolucionária e englobante dos indígenas brasileiros contra os dominadores. Sem deixar-se abater, o guerreiro foi um mestre na arte de combater. Por isso, a data de 1716 (ou 1718) deveria fazer parte das comemorações cívicas do Estado, e no Porto das Barcas, em Parnaíba, deveria ser erguido um monumento em honra ao abolicionista piauiense, Mandu Ladino.