Mais de 35 milhões de pessoas ultrapassaram a faixa da pobreza no Brasil nos últimos 40 anos. O milagre econômico da década de 70, o aumento do nível educacional, o fim da inflação, os programas de transferência de renda e a valorização do mínimo fizeram a parcela de pobres baixar dos inacreditáveis 68,4% da população em 1970, com 61,1 milhões de pobres, para 14,1% nos dias atuais. Mas esse número poderia ser bem menor se não fosse a persistência da verdadeira chaga da sociedade brasileira: a extrema desigualdade de renda. A reportagem é de Cássia Almeida e Letícia Lins e publicada pelo jornal O Globo, 23-08-2009.
Fonte: UNISINOSO modelo de crescimento dos anos 70, patrocinado pelo governo militar, aumentou a concentração de renda, e a hiperinflação cobrou dos mais pobres um imposto alto.
Resultado: no século XXI ainda estamos correndo atrás dos indicadores de igualdade da década de 60. O Índice de Gini (quanto mais perto de zero, mais igualitário é o país), um dos principais medidores de desigualdade, mostra isso.
Em 2009, a taxa estava em 0,543, ainda acima do índice de 0,537 encontrado em 1960.
Em seu estudo sobre pobreza desde 1970, a economista Sonia Rocha, do Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (Iets), mostra que o aumento da desigualdade na década pôde ser constatado pela distância entre a renda dos não-pobres e dos pobres. Em 1970, a renda dos mais ricos equivalia a 2,83 vezes a dos pobres. Em 1980 sobe para 5,2 vezes.
“Se o crescimento da renda tivesse sido neutro do ponto de vista distributivo, teria sido possível obter uma redução ainda mais acentuada da pobreza”, diz o estudo.
País mais inclusivo nos anos 80
Ana Saboia, chefe da Divisão de Indicadores Sociais do IBGE, lembra ainda o papel da queda da fecundidade, que mudou o perfil sóciodemográfico:
— Com a população crescendo mais devagar, as políticas de redução da pobreza e da desigualdade tornaram-se mais efetivas. A desigualdade regional também se mantém elevada. O Nordeste, que tinha 90% da população abaixo da linha de pobreza, consegue reduzir o contingente para 28,3% em 2002. No entanto, a participação da região entre os pobres se mantém em 39% desde 70.
Segundo estudo do economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), a distribuição de renda está mais equânime hoje do que em 1970, medida pelo Índice de Gini:
— Houve crescimento forte da economia, mas não se investiu em educação. A demanda por profissionais mais preparados aumentou com a expansão econômica, e a diferença entre os rendimentos cresceu. Foi o efeito colateral negativo do milagre, desde os anos 60.
O economista Marcelo Medeiros, que foi coordenador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no Centro Internacional de Pobreza da ONU, afirma que somente no fim dos anos 80 o país começou verdadeiramente a se preocupar com os grupos mais pobres, com o marco da Constituição Cidadã de 1988:
— Houve a universalização do sistema educacional, de saúde e de acesso à energia elétrica. Melhorou muito também a infraestrutura de transporte. Houve um movimento claro do Estado, que ficou mais ativo para os pobres.
Mesmo com os ganhos na qualidade de vida dos brasileiros, a mobilidade social ainda é muito baixa no Brasil, de acordo com Medeiros.
— A chance de uma pessoa que vem de família pobre sair da pobreza ainda é pequena.
Ele cita os ganhos com a democracia. Foi possível, com o fim da ditadura, cobrar melhorias:
— E isso não foi o trabalho de um governo, mas de milhares de prefeitos e governadores também.
Para o sociólogo do Iuperj, Adalberto Cardoso, que acabou de concluir livro sobre a concentração de renda no Brasil, a desigualdade se mantém a mesma há 200 anos:
— O Brasil é assim há 200 anos. E a concentração é maior no topo da pirâmide de renda. Se tirássemos os 20% mais ricos, teríamos um Índice de Gini sueco, o país mais igualitário. Tirando os 10% mais ricos, o Gini seria europeu. É fácil perceber isso nas estatísticas.
Enquanto o 1% mais rico, que está em 560 mil domicílios, detém 12,5% da renda familiar, os 50% mais pobres, que representam 28 milhões de domicílios, ficam com só um pouquinho mais: 14,7% do bolo.
Nordeste, o retrato da desigualdade
Isso fica mais flagrante no Nordeste.
De um lado, centros de tecnologias avançadas, como o Porto Digital, que oferecem soluções em informática para as maiores empresas de telecomunicações do mundo.
Do outro, as sedes do poder, inclusive da prefeitura. No meio, a comunidade do Pilar é o retrato da desigualdade que separa bairros sofisticados como o de Boa Viagem (na Zona Sul) da favela do Rato, como é mais conhecida a Comunidade do Pilar. É nessa favela que mora Mariluce de Vasconcelos. Desempregada, só teve carteira assinada uma vez na vida e, foi há 15 anos. Desde então, vive de biscates. Tem oito filhos e netos. Dinheiro fixo, só o do Bolsa Família: R$ 102 mensais, que complementa fazendo faxinas.
— O máximo que consigo são dois trabalhos por mês, com diária entre R$ 30 e R$ 40.
Ela mora numa construção improvisada com madeiras velhas, sem água e sem banheiro. A exemplo dos irmãos sertanejos — que andam da roça até açudes distantes em busca de água —, Mariluce perde uma hora por dia abastecendo a casa. Lata na cabeça, vai até um cano quebrado que serve a toda comunidade. Luz vem de uma ligação clandestina. De acordo com um levantamento da prefeitura, na comunidade de Mariluce, 62% dos moradores vivem com menos de um salário mínimo, e a taxa de analfabetismo supera 23%.