Nesta entrevista, Armando Hart Dávalos, um dos líderes da Revolução Cubana, acredita ser necessário “reinventar a forma de se fazer o socialismo”, e diz que no continente podem ser sentadas “as bases de um diálogo” entre setores populares e acadêmicos. A reportagem é de Gerardo Arreola, publicada no jornal Pagina/12, 19-01-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Armando Hart Dávalos Armando Hart Dávalos, um dos dirigentes históricos da revolução, afirma que se deve “reinventar” os modos de construir o socialismo e crê que, com os processos de integração na América Latina e as mudanças políticas nos Estados Unidos, pode-se perfilar um grande diálogo hemisférico entre setores populares, acadêmicos e científicos. Além disso, prevê “um novo cenário no confronto” de Cuba com o imperialismo norte-americano se Barack Obama eliminar as restrições às viagens dos cubanos que vivem nesse país e se produzir assim um reencontro de gerações nascidas na ilha, mas com experiências antagônicas.
Apenas se tinha graduado em Direito, Hart Dávalos se lançou à resistência contra o golpe de Fulgencio Batista, em 1952. Três anos mais tarde, uniu-se ao Movimiento 26 de Julio, no qual foi um ativo organizador das redes clandestinas. Participou no levante da cidade de Santiago de Cuba e mais tarde na criação de uma frente de oposição de profissionais e setores médios, o Movimiento de Resistencia Cívica.
Detido em 1957, em La Habana, conseguiu fugir do edifício dos julgados e voltar à vida secreta, mas no ano seguinte voltou a ser preso. Quando a revolução triunfou, há 50 anos, estava encarcerado em Isla de Pinos. Logo viajou para La Habana em, na cidade de Camagüey, se encontrou com Fidel Castro, que lhe anunciou que seria designado ministro da Educação. Uma semana depois do triunfo revolucionário, com apenas 28 anos, assumiu o cargo e enfrentou um cenário com um milhão de analfabetos, a metade das crianças em idade escolar sem acesso às aulas e um nível médio de escolarização inferior à terceira série.
Como uma de suas primeiras tarefas, Hart Dávalos encabeçou a campanha que, em menos de três anos, erradicou o analfabetismo de Cuba. Depois, dirigiu a construção de um sistema educativo nacional, trabalhou na formação do Partido Comunista, foi ministro da Cultura e, desde a década passada, está a cargo de um programa de difusão do pensamento de José Martí.
Teórico e polemista, com 78 anos, há pouco escreveu um artigo que chamou a atenção dentro e fora de Cuba, ao advertir que o triunfo de Obama poderia se converter em um desafio para a Revolução Cubana e para os Estados Unidos. “Eu me referi a que, se Obama triunfasse e cumprisse uma mínima parte do prometido, derrogando as posições de Bush que obstaculizam e perseguem as visitas a Cuba de aproximadamente 1,2 milhão de cubanos que residem nos EUA, e que também impedem as dos próprios norte-americanos, isso constituiria, além de uma grande vitória sobre o bloqueio, um desafio para enfrentar, sobre fundamentos culturais, um novo cenário no confronto histórico com o imperialismo”.
“Por outro lado – acrescenta –, há setores acadêmicos, econômicos, de movimentos sociais da América do Norte interessados em desenvolver algum tipo de relação com o nosso país, que poderiam incidir também nessa situação. Temos que projetar novas concepções teóricas e propagandísticas sobre as nossas idéias e sua origem. Fidel dizia que, frente à indústria cultural do imperialismo, o socialismo não criou os antídotos suficientes”.
Em que termos essa luta vai se produzir?
Deve-se ganhar alguns deles. Há jovens que foram embora confundidos. Deve-se fazer uma projeção nova de como captá-los. Com que tese vão aparecer agora, depois de derrotado o neoliberalismo? Que outra doutrina, ideia, teoria, pode se levantar depois da derrota do neoliberalismo como projeto histórico? Como aspiramos manter no alto a bandeira do socialismo, é necessário pesquisar, estudar e promover a tradição nacional cubana, demonstrar como o liberalismo europeu de Napoleão e da Santa Aliança e o dos Estados Unidos, que defende o direito de propriedade, não é o mesmo que o liberalismo latino-americano de Bolívar, Juárez, Alfaro e Martí, que é anti-imperialista e de conteúdo social, como entrelaçamos nossas aspirações com o pensamento de Marx, Engels y Lênin, e como as ideias desses teóricos foram tergiversadas e caíram em um grande descrédito universal.
Deve-se reconstruir ou reformular o socialismo?
O socialismo não. O que deve ser reinventado é a forma de fazê-lo. Propormo-nos o socialismo de uma forma nova. A velha, a que conhecemos como o socialismo real, já caducou. Agora, está se comprovando que se deve estudar Marx para conhecer os problemas da economia, o que não quer dizer que se deva tomá-lo como dogma. Deve-se assumir a herança do marxismo, como disse, “em benefício do inventário”. Isto é, aceitando a herança sem comprometer-se com as dívidas. O socialismo tem que ser visto como um horizonte. É universal ou não é socialismo. Não existe socialismo em um só país ou em dois países. Temos que encontrar a união entre o mais elevado pensamento socialista e o movimento liberal latino-americano e caribenho, como Hugo Chávez e Fidel Castro estão interpretando.
Em um discurso de 2005, Fidel Castro deixou em aberto a pergunta sobre se a Revolução Cubana era reversível. Que respostas existem?
Isso só pode ser respondido com a ação. Depende de que adquiramos consciência plena, por meio da ação e por meio do que eu chamo cultura de fazer política. Vejo a política como uma categoria da prática.
O que a América Latina pode esperar de Obama?
Obama é uma esperança para muita gente. Eu não quero caracterizá-lo, mas quero sim dizer que ele foi eleito por uma esmagadora maioria de votos e que teve algumas propostas que devem nos mover à reflexão. Por outro lado, a recente reunião latino-americana do Brasil manda uma mensagem aos Estados Unidos e ao mundo: a de que esta é a única região que está, agora, em um processo de integração multinacional. Os sonhos de 50 anos atrás que serviram de força impulsora da revolução triunfante estão à nossa vista. Aí estão as bases de um diálogo. Pode-se dialogar mediante um movimento que tente vincular os setores populares, acadêmicos e científicos dos Estados Unidos com os da América Latina. Há uma declaração de intelectuais que me parece excelente, que propõe um verdadeiro programa de fundo e que, creio, deve ser estudado.
Hart Dávalos estende uma cópia de uma carta a Obama, assinada por mais de 400 acadêmicos do continente: o texto pede que os Estados Unidos deixe de ser adversário da América Latina e se converta em aliado contra o modelo econômico fracassado, que reformule a agenda de migração e de drogas, que renove a defesa dos direitos humanos na área e facilita o intercâmbio cultural com Cuba. Em resumo, que haja “mudança, não só nos Estados Unidos”.