O papel do indivíduo na história e a Obamamania
Francisco Carlos Teixeira é Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Lênin, numa pequena passagem, escreveu que o papel indivíduo era uma bagatela na historia. Claro, o revolucionário russo era coerente com os ensinamentos da teoria marxista. No marxismo as principais categorias de análise são coletivas. A história é o resultado da luta de classes, do combate dos grupos sociais organizados e nunca dos indivíduos, por mais significativos que possam ser. Também é evidente que o indivíduo possui um papel ativo na história – como o próprio Marx destacou na análise sobre Napoleão III no “18 Brumário”.
Francisco Carlos Teixeira é Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Lênin, numa pequena passagem, escreveu que o papel indivíduo era uma bagatela na historia. Claro, o revolucionário russo era coerente com os ensinamentos da teoria marxista. No marxismo as principais categorias de análise são coletivas. A história é o resultado da luta de classes, do combate dos grupos sociais organizados e nunca dos indivíduos, por mais significativos que possam ser. Também é evidente que o indivíduo possui um papel ativo na história – como o próprio Marx destacou na análise sobre Napoleão III no “18 Brumário”.
O Individuo e os movimentos sociais
Contudo, neste caso – onde inclusive o indivíduo Napoleão III assumia grande autonomia política, alma do conceito bonapartismo – isso só era possível pela exaustão política das classes sociais em conflito, incapazes de resolver em proveito próprio a tremenda crise de hegemonia pela qual passava a sociedade francesa. Em suma, Marx dizia que os homens fazem a história. Mas, não fazem conforme sua vontade. São necessárias condições. São tais circunstâncias históricas que moldam, limitam e lançam à frente a ação humana. E no conjunto dos casos em que indivíduos assumiram a tremendas tarefas de mudar a história, o fizeram enquanto lideranças de movimentos sociais massivos, como o próprio Lênin durante a revolução russa. O indivíduo significativo para a história encarna e traduz a grandeza de movimentos sociais. É assim hoje com as novas lideranças populares e indígenas, por exemplo, na Bolívia ou no Paraguai. Obama é um líder de um movimento social que busca a mudança?
Indivíduo e Ideologia
Neste sentido o pensamento marxista ( mais uma vez!) invertia tendências tradicionais da análise política e histórica tradicionais no Ocidente. De um lado, a já antiga tradição advinda da Reforma Protestante, em especial o núcleo agostiniano do pensamento luterano e calvinista. A perda do livre arbítrio em favor da revelação (e do toque) divina, núcleo da teologia calvinista, dava muito pouca liberdade ao homem. Aqueles que seriam salvos possuíam um vínculo direto com o divino, acima das práticas externas e além da hierarquia romana. Era uma questão de fé, imposta pela centelha divina. Naturalmente estes homens, os salvos, tinham a revelação, e o divino os recompensava mesmo aqui na terra. Os sinais externos de enriquecimento – no alvorecer do capitalismo – não eram, assim, pecados. Ao contrário, Deus recompensava aqueles que seguiam seus preceitos.
De forma muito prática estes homens deveriam se esforçar como exemplos da salvação possível. Assim, o trabalho e a frugalidade – na fase áurea da acumulação de capitais – era um sinal externo de salvação. Desta forma, o liberalismo econômico e social associava-se, bastante bem, com as religiosidades reformadas. O mito do “self-made-men” acoplava-se perfeitamente bem ao homem salvo por Deus. Sucesso no plano econômico, ascensão social e salvação divina eram, no fundo, a mesma coisa.
Os Estados Unidos nasceram sob o signo destas duas poderosas e seminais tradições: calvinismo e liberalismo. Nesta simbiose combinava-se a liberdade do homem em traçar, por seu esforço (o trabalho duro) o seu próprio futuro e a recompensa da salvação divina. A “saga” repetida, reinventada, ensinada até tornar-se parte da mitologia nacional americana é acima de tudo a história de homens iluminados por Deus e capazes, por seu único esforço, de construir o seu destino. Assim foi escrita a história dos “Pilgrims”, dos Pais Fundadores, dos colonizadores do Meio-Oeste, da marcha para Califórnia e o Alasca, os roteiros de Hollywood sobre a fronteira e criados personagens do naipe de John Wayne. Liberdade e a Mão de Deus, sempre juntos.
E os excluídos?
Claro, não havia – até muito pouco tempo atrás, ao menos até os anos ’60 – espaço para o duro trabalho escravo, o massacre dos índios, a exploração de milhões de imigrantes que foram em busca do sonho americano. Estes nem reconheciam o Deus dos americanos, nem eram dotados das condições mínimas do exercício da liberdade.
Não é por acaso que hoje, na América, a maior de todas as ofensas que se possa dirigir a alguém seja chamá-lo de “perdedor” ( loser, em inglês ). O perdedor é aquele que não conseguiu seguir uma trilha de sucesso no emprego, na acumulação de capital e prestígio, nem mesmo consegue ser “popular”. Aí, nestas condições instala-se uma forte competição individual que escurece a questão social, sempre em busca do prestígio, de ser “popular” individualmente.
Trata-se de uma sociedade que confunde, voluntariamente, “problema” (nitidamente individual ) com “questão” (definitivamente social ). Os perdedores são sempre desajustados individuais, nunca são produtos de uma questão social maior. A sociedade americana continuaria sendo, desta forma, uma sociedade aberta, pronta para permitir o sucesso de cada um. Basta o toque do divino e o trabalho duro. Se você não o consegue, “loser”, é pura e simplesmente por sua própria incapacidade!
Ora, por que todo esse arrazoado? Por uma razão simples: a ascensão de Barack Hussein Obama a presidência dos Estados Unidos é, em termos simbólicos e mediáticos, uma poderosa confirmação da ideologia fundante da própria América.
Mudança e Continuidade na América
Claro que a eleição foi uma mudança. Só um tolo acharia que nada mudou. A eleição de um homem negro para mais importante cargo do planeta é uma mudança. Faz pouco tempo que os negros não votavam, viviam em guetos urbanos em grandes cidades ou oprimidos em comunidades rurais sulistas. A mudança é notável. Porém, não é Obama que mudou. Obama é produto de um longo processo, iniciado por movimentos sociais massivos liderados (por indivíduos) como Paul Robinson, Martin Luther King, Malcom X, Mohamed Ali e Stockley Carmichael entre outros... O que une todos estes homens, em suas ações e opções diferenciadas? Capitaneavam movimentos de massa, coletivos, de rebeldia ativa e, mesmo, violenta.
Obama surge daí, sem tais movimentos não teríamos a última eleição. “Nós podemos”, a consígna política de Obama, é fruto de “Eu sonho”, de Martin Luther King. Mas, o que impulsiona Obama? Quais as forças sociais que o apóiam e o empurram para frente? Isso é, ainda, um mistério...
Também as medidas iniciais da Administração Obama marcam mudanças. Não me refiro ao mediático fechamento da prisão de Guantánamo (em um ano!). Refiro-me a extinção das chamadas “Comissões Militares”. Tratavam-se de tribunais militares especiais e secretos. Uma anomalia jurídica de grandes proporções. Nenhum Estado de Direito pode conviver com tribunais especiais, externos ao ordenamento jurídico constitucional. Este é, em verdade, o grande passo. Da mesma forma, Obama deu novo fôlego à liberdade de escolha das mulheres perante a gravidez indesejada e reabriu o debate cientifico sobre o uso das células- tronco. Mudanças! Mas, são mudanças em relação aos oito anos de obscurantismo da Administração Bush, posto que Bill Clinton já houvesse autorizado tal legislação, revogada por Bush. A mudança, neste caso, é uma volta ao passado!
Os desafios
Em outros campos, a mudança ainda está por vir e o horizonte é longínquo. Ok, não podemos fazer muitas exigências. Temos apenas dias da Administração Obama. Mas, o material que temos em especial as declarações dos auxiliares escolhidos, não é animador. Obama – “Eu sou a mudança!”- cercou-se, no mais alto nível do seu governo, de homens e mulheres que espelham as forças tradicionais e conservadoras da “establishmment” político de Washington. Criticou o sistema eleitoral, e bateu todos os recordes de arrecadação financeira, incluindo aí doações da indústria petrolífera e farmacêutica (que comemora a liberação dos testes com células-tronco!). Nomeou lobistas para a Casa Branca e chamou políticos conservadores (Joe Biden, Robert Gates, Hillary Clinton, Paul Volcker) para os principais cargos do país.
Em suma, Obama representa mudança, mas trabalha também numa clara linha de continuidade, onde seu próprio discurso sobre a América – um país que permite tudo a todos, com fé em Deus e trabalho duro – reafirma uma ideologia exclusivista, expansionista centrada em um “Destino Manifesto”.
Joseph Nye Jr., um professor próximo dos Clintons, definiu com clareza as duas formas de a América atingir seus objetivos: o “hard power”, o jogo bruto, o uso extenso da musculatura militar, como fez (e perdeu!) George Bush. A outra forma da América atingir seus objetivos é o “soft power”, o poder brando, convencendo o mundo da excelência dos valores e dos méritos do “american way”.
Eis aí a hora e a vez de Barack Obama.
Fonte: Agência Carta Maior
Uma observação:
Não concordo com o autor do texto quando se refere ao "novo fôlego à liberdade de escolha das mulheres perante a gravidez indesejada". Não concordo com o aborto porque, entre outras razões, penso que esta "liberdade" é desejada apenas pela sociedade machista que sempre reservou para as mulheres lugares e situações que pudessem atender os desejos e as vontades dos homens. Penso ainda que o aborto retira da sociedade a responsabilidade de implementar lutas pelo bem-estar das mulheres, nas suas mais diferentes dimensões. As responsabilidades de uma gravidez indesejável é também do homem, mas apenas a mulher, com o aborto, é penalizada. Assim, tudo fica mais fácil para o homem que será o único beneficiado com a tal "liberdade" feminina. Separando as questões do aborto e da vida em si, eu poderia até concordar com o aborto desde que para o homem, responsável pela gravidez indesejável, se tornasse obrigatória a realização de uma vasectomia irreversível. É radical? O aborto também é radical!! Penso ser míope um dos argumentos muito utilizado pelos defensores (as) do aborto quando dizem ser "direito da mulher de dispor do seu corpo e decidir livremente sobre sua vida". Ora, a vida iniciada na gravidez não pertence mais à mulher que já possui sua própria vida. A responsabilidade dessa nova vida deve ser assumida pela mulher e pelo homem. A vida não pode ser descartada como uma mercadoria indesejável. Se sou defendora dos direitos à vida de homens, mulheres e crianças, nos seus mais variados aspectos, seria incoerência aceitar a morte como fruto de um decisão "livre" feminina!! Liberdade que apenas alimenta o continuado e sempre presente patriarquismo social . Concluindo, gostaria ainda de registrar o meu respeito a todas as pessoas que pensam diferente. Uma delas é a Irmã Ivone Gebara, criatura humana pela qual nutro profunda admiração. Já li inúmeros livros seus e todos eles enriqueceram o meu olhar para o mundo e para a teologia. Álias, posso afirmar que o meu pensamento sobre o aborto é fruto também das leituras gebarianas.
Enoisa