Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, doutor em Engenharia de Produção pela COPP-UFRJ e autor de “A lógica do capital-informação: da fragmentação dos monopólios à monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais” (Ed. Contraponto). Fonte: Agência Carta Maior
Em meados do século XIX, o Império brasileiro mergulhou em uma muito séria crise financeira e fiscal. A única fonte de renda do Estado, eram os impostos de importação, cobrados nas alfândegas existentes nos diversos portos do país. Ninguém pagava imposto. Os latifundiários escravocratas não pagavam porque não pagam até hoje. Os grandes comerciantes não pagavam porque ninguém lhes cobrava. O resto da população era muito pobre para pagar imposto. Sem falar dos escravos...
Para viver, o Brasil dependia dos generosos empréstimos feitos pela banca londrina. Foi tomando empréstimos, tomando empréstimos, até que, tantos empréstimos e uma Guerra do Paraguai depois, viu-se sem rendas alfandegárias suficientes para pagá-los. Ao Imperador Pedro II não restou outra opção: aumentou os impostos de importação. Assim, embora esta não fosse sua intenção, tornou mais caras as mercadorias importadas: trilhos, locomotivas, navios, tecidos e até tijolos ingleses; vestidos, espelhos, bidês e talheres franceses; vinhos portugueses. Evidentemente, a pequena elite brasileira da época sentiu-se insultada: de repente, diante do encarecimento desses produtos que lhe permitia ostentar ares de “primeiro mundo”, via-se obrigada a consumir produtos brasileiros. Um horror!
Disso se aproveitaria Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, e mais um punhado de ricos comerciantes brasileiros. Com o mercado fechado a produtos de fora, começaram a investir na industrialização do país. E este país ainda escravocrata, viu surgir por aqui as suas primeiras siderúrgicas, o seu primeiro estaleiro naval, as suas primeiras fábricas de tecido. Junto com essas indústrias, claro, expandia-se uma classe operária recrutada entre ex-escravos. E, no lugar de vestidos, importava engenheiros ingleses, isto é técnicos qualificados, que, nos seus cérebros, para cá traziam o conhecimento e a tecnologia que até então era monopólio exclusivo dos europeus.
Nada disso durou muito. A crise passou, as finanças se reequilibraram, as elites sentiam-se envergonhadas por não exibir bidês franceses e tijolos ingleses em seus sobrados, e o Imperador, dez anos depois, reduziu as tarifas de importação. Mauá e centenas de outros, como sabemos, foram à falência. E o Brasil seguiu sendo o país do café, do cacau, da borracha, da miséria, da exclusão social, do analfabetismo, do atraso científico e tecnológico, da democracia de fancaria. Mas a aristocracia e a reduzida classe média ficaram muito felizes podendo ostentar sua falsa riqueza e seus arrogantes ares parisienses na recém-aberta avenida Central, no Rio, ou na “elegante” avenida Paulista.
Em 1929, o mundo capitalista entrou em crise. Os tempos de bonança que tanto beneficiaram a economia do café e da borracha, se foram. Fez-se a Revolução de 30. E o governo Getulio começou a tomar medidas anti-crise, dentre elas, naturalmente, conter a remessa de divisas com importações supérfluas. Graças tais medidas, o Brasil viu expandir-se a sua indústria têxtil, essa indústria que já existia há mais de 100 anos na Inglaterra e noutros países. Voltou a crescer a indústria siderúrgica e metalúrgica. Bidês, tijolos e velas passaram a serem fabricados aqui. Expande-se a classe operária e, também, a classe média, pois se expandem os mais diversos serviços e empregos. O País se urbaniza. O processo será aprofundado nos governos seguintes, especialmente com Juscelino Kubitschek. Uma decisão sua, elevando a níveis proibitivos as tarifas sobre a importação de automóveis, estimula a Volkswagen, a Ford, a GM a instalaram linhas de montagem no Brasil.
Com elas, o Brasil passa a dispor também de indústrias de auto-peças, algumas memoráveis, como a Metal Leve e as molas Suéden. Expande-se, também, o consumo de rádio, televisores, geladeiras, outros aparelhos eletrodomésticos. As barreiras de importação estimulam empresas estrangeiras a trazerem suas linhas de montagem para o Brasil e ainda permitem nascer e crescer empresas brasileiras como a Tonelux, ABC-Color, Gradiente e outras.
No Brasil, mesmo numa cidade como o Rio de Janeiro, capital da República, nos anos 1960, quase ninguém tinha telefone, faltavam luz e água todos os dias. No imenso Brasil, energia elétrica era quase desconhecida. Getúlio, JK, depois os governos militares construíram hidrelétricas e linhas de comunicação, sem as quais o povo brasileiro não poderia, hoje, assistir sua televisão à noite, depois de um dia de trabalho, falar ao telefone, sacar dinheiro em qualquer caixa bancário automático, tecnologia esta, aliás, criada por empresas 100% nacionais como a Itautec, a Cobra e a Digirede.
A cada avanço, mais empresas industriais e de serviço precisavam ser criadas e mais empregos qualificados eram gerados para atender à demanda por equipamentos industriais, computadores, caminhões, etc., etc., etc.
Em meio século, a partir dos anos 1930-1950, o Brasil mudou: tornou-se um país industrializado, urbanizado, moderno. Qualquer pessoa com mais de 60 anos se lembra, sem saudades, daqueles tempos pré-industriais e pré-urbanizados felizmente superados. O Brasil tornou-se, também, um país muito desigual, todos sabemos. Sobretudo porque, durante a ditadura militar, quando mais longe foi o nosso desenvolvimento, também mais fundo foi a exclusão social.
Então, o capitalismo, lá fora, passou a viver uma nova grande era de prosperidade e voltamos a ouvir aqueles mesmos velhíssimos argumentos a favor de abertura comercial e contra a indústria brasileira (boa parte, aliás, na verdade estrangeira). Da noite para o dia, derrubaram-se as barreiras de importação. E quase acabou a indústria nacional. Marcas famosas até poucos anos atrás sumiram da memória – os mais novos sequer sabem que um dia existiram. As últimas que ainda resistiram, estão entregando os pontos agora, no Governo Lula.
Vamos voltando a ser um país exportador de produtos primários – soja, minério de ferro, carne de frango, açúcar de ca..., digo, etanol. E, nas nossas ruas, milhares e milhares de desempregados transformam-se em camelôs ou biscateiros, quando não simplesmente bandidos. As favelas invadem as cidades. Em São Paulo, Rio de Janeiro, outras grandes cidades, os ricos e remediados vivem atrás de grades ou de ruas guardadas por cancelas e guaritas. O ensino público e a saúde pública continuam péssimos – aliás, o ensino público, antes de 1964, era excelente! O Brasil andou para trás. E somos obrigados a ler, na coluna da Sra. Mirian Leitão, que o Brasil se modernizou depois de tamanho desastre econômico e social. Sem dúvida: não importa mais bidês, importa iPods... Mudam as moscas, mas...
Pressionado pelos fatos, o governo Lula, assim como Pedro II no século XIX ou Getulio Vargas no século XX, acaba de recriar algumas barreiras às importações. E os herdeiros atuais daquela mesma mentalidade senhorial, atrasada, subdesenvolvida, provinciana, enfatuada, anti-produtiva dos tempos áureos do café (e dos escravos) já começaram a protestar. De fato, o Brasil sempre se desenvolveu, quando se desenvolveu, não porque suas elites e seus ventríloquos tivessem um projeto para desenvolver o país mas porque as circunstâncias, algumas vezes, obrigaram-nas a isso. Quem sabe, não vem por aí uma nova chance?
Em meados do século XIX, o Império brasileiro mergulhou em uma muito séria crise financeira e fiscal. A única fonte de renda do Estado, eram os impostos de importação, cobrados nas alfândegas existentes nos diversos portos do país. Ninguém pagava imposto. Os latifundiários escravocratas não pagavam porque não pagam até hoje. Os grandes comerciantes não pagavam porque ninguém lhes cobrava. O resto da população era muito pobre para pagar imposto. Sem falar dos escravos...
Para viver, o Brasil dependia dos generosos empréstimos feitos pela banca londrina. Foi tomando empréstimos, tomando empréstimos, até que, tantos empréstimos e uma Guerra do Paraguai depois, viu-se sem rendas alfandegárias suficientes para pagá-los. Ao Imperador Pedro II não restou outra opção: aumentou os impostos de importação. Assim, embora esta não fosse sua intenção, tornou mais caras as mercadorias importadas: trilhos, locomotivas, navios, tecidos e até tijolos ingleses; vestidos, espelhos, bidês e talheres franceses; vinhos portugueses. Evidentemente, a pequena elite brasileira da época sentiu-se insultada: de repente, diante do encarecimento desses produtos que lhe permitia ostentar ares de “primeiro mundo”, via-se obrigada a consumir produtos brasileiros. Um horror!
Disso se aproveitaria Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, e mais um punhado de ricos comerciantes brasileiros. Com o mercado fechado a produtos de fora, começaram a investir na industrialização do país. E este país ainda escravocrata, viu surgir por aqui as suas primeiras siderúrgicas, o seu primeiro estaleiro naval, as suas primeiras fábricas de tecido. Junto com essas indústrias, claro, expandia-se uma classe operária recrutada entre ex-escravos. E, no lugar de vestidos, importava engenheiros ingleses, isto é técnicos qualificados, que, nos seus cérebros, para cá traziam o conhecimento e a tecnologia que até então era monopólio exclusivo dos europeus.
Nada disso durou muito. A crise passou, as finanças se reequilibraram, as elites sentiam-se envergonhadas por não exibir bidês franceses e tijolos ingleses em seus sobrados, e o Imperador, dez anos depois, reduziu as tarifas de importação. Mauá e centenas de outros, como sabemos, foram à falência. E o Brasil seguiu sendo o país do café, do cacau, da borracha, da miséria, da exclusão social, do analfabetismo, do atraso científico e tecnológico, da democracia de fancaria. Mas a aristocracia e a reduzida classe média ficaram muito felizes podendo ostentar sua falsa riqueza e seus arrogantes ares parisienses na recém-aberta avenida Central, no Rio, ou na “elegante” avenida Paulista.
Em 1929, o mundo capitalista entrou em crise. Os tempos de bonança que tanto beneficiaram a economia do café e da borracha, se foram. Fez-se a Revolução de 30. E o governo Getulio começou a tomar medidas anti-crise, dentre elas, naturalmente, conter a remessa de divisas com importações supérfluas. Graças tais medidas, o Brasil viu expandir-se a sua indústria têxtil, essa indústria que já existia há mais de 100 anos na Inglaterra e noutros países. Voltou a crescer a indústria siderúrgica e metalúrgica. Bidês, tijolos e velas passaram a serem fabricados aqui. Expande-se a classe operária e, também, a classe média, pois se expandem os mais diversos serviços e empregos. O País se urbaniza. O processo será aprofundado nos governos seguintes, especialmente com Juscelino Kubitschek. Uma decisão sua, elevando a níveis proibitivos as tarifas sobre a importação de automóveis, estimula a Volkswagen, a Ford, a GM a instalaram linhas de montagem no Brasil.
Com elas, o Brasil passa a dispor também de indústrias de auto-peças, algumas memoráveis, como a Metal Leve e as molas Suéden. Expande-se, também, o consumo de rádio, televisores, geladeiras, outros aparelhos eletrodomésticos. As barreiras de importação estimulam empresas estrangeiras a trazerem suas linhas de montagem para o Brasil e ainda permitem nascer e crescer empresas brasileiras como a Tonelux, ABC-Color, Gradiente e outras.
No Brasil, mesmo numa cidade como o Rio de Janeiro, capital da República, nos anos 1960, quase ninguém tinha telefone, faltavam luz e água todos os dias. No imenso Brasil, energia elétrica era quase desconhecida. Getúlio, JK, depois os governos militares construíram hidrelétricas e linhas de comunicação, sem as quais o povo brasileiro não poderia, hoje, assistir sua televisão à noite, depois de um dia de trabalho, falar ao telefone, sacar dinheiro em qualquer caixa bancário automático, tecnologia esta, aliás, criada por empresas 100% nacionais como a Itautec, a Cobra e a Digirede.
A cada avanço, mais empresas industriais e de serviço precisavam ser criadas e mais empregos qualificados eram gerados para atender à demanda por equipamentos industriais, computadores, caminhões, etc., etc., etc.
Em meio século, a partir dos anos 1930-1950, o Brasil mudou: tornou-se um país industrializado, urbanizado, moderno. Qualquer pessoa com mais de 60 anos se lembra, sem saudades, daqueles tempos pré-industriais e pré-urbanizados felizmente superados. O Brasil tornou-se, também, um país muito desigual, todos sabemos. Sobretudo porque, durante a ditadura militar, quando mais longe foi o nosso desenvolvimento, também mais fundo foi a exclusão social.
Então, o capitalismo, lá fora, passou a viver uma nova grande era de prosperidade e voltamos a ouvir aqueles mesmos velhíssimos argumentos a favor de abertura comercial e contra a indústria brasileira (boa parte, aliás, na verdade estrangeira). Da noite para o dia, derrubaram-se as barreiras de importação. E quase acabou a indústria nacional. Marcas famosas até poucos anos atrás sumiram da memória – os mais novos sequer sabem que um dia existiram. As últimas que ainda resistiram, estão entregando os pontos agora, no Governo Lula.
Vamos voltando a ser um país exportador de produtos primários – soja, minério de ferro, carne de frango, açúcar de ca..., digo, etanol. E, nas nossas ruas, milhares e milhares de desempregados transformam-se em camelôs ou biscateiros, quando não simplesmente bandidos. As favelas invadem as cidades. Em São Paulo, Rio de Janeiro, outras grandes cidades, os ricos e remediados vivem atrás de grades ou de ruas guardadas por cancelas e guaritas. O ensino público e a saúde pública continuam péssimos – aliás, o ensino público, antes de 1964, era excelente! O Brasil andou para trás. E somos obrigados a ler, na coluna da Sra. Mirian Leitão, que o Brasil se modernizou depois de tamanho desastre econômico e social. Sem dúvida: não importa mais bidês, importa iPods... Mudam as moscas, mas...
Pressionado pelos fatos, o governo Lula, assim como Pedro II no século XIX ou Getulio Vargas no século XX, acaba de recriar algumas barreiras às importações. E os herdeiros atuais daquela mesma mentalidade senhorial, atrasada, subdesenvolvida, provinciana, enfatuada, anti-produtiva dos tempos áureos do café (e dos escravos) já começaram a protestar. De fato, o Brasil sempre se desenvolveu, quando se desenvolveu, não porque suas elites e seus ventríloquos tivessem um projeto para desenvolver o país mas porque as circunstâncias, algumas vezes, obrigaram-nas a isso. Quem sabe, não vem por aí uma nova chance?