quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Miami se transforma para receber calorosamente os brasileiros gastadores

Por Lizette Alvarez, Miami (EUA), Tradução: George El Khouri Andolfato.
Fonte: The New York Times, em 29/12/2011


Até mesmo em uma cidade que abraçou tantas ondas de latinos a ponto de ser tratada como brincadeira de única capital sul-americana na América do Norte, nenhum grupo tem sido tão cortejado e paparicado quanto os brasileiros.

Cheios de dinheiro de uma economia em boom e apaixonados pelo luxo, os brasileiros estão visitando o sul da Florida em grande número e gastando milhões de dólares em imóveis de férias, roupas, joias, móveis, carros e arte, tudo muito mais barato aqui do que no Brasil.

Como agradecimento, os cidadãos da Flórida estão criando modos inovadores de deixar os brasileiros de língua portuguesa contentes. Corretores imobiliários, por exemplo, formaram empresas que reúnem em uma só parada decoração de interiores, serviços de concierge, assessoria jurídica e ajuda com vistos. Alguns corretores abriram escritórios no Brasil para simplificar o processo.

Cientes de que os brasileiros não gastarão à vontade a menos que se sintam em casa, os shoppings centers os atraem com funcionários que falam português para venderem vestidos Dulce & Gabbana e relógios Hublot. Até mesmo a Target coloca avisos de contratação de funcionários em português.

Os restaurantes brasileiros também estão florescendo por toda Miami, incluindo uma rede popular do Brasil –a Giraffas– que oferece pão de queijo brasileiro e cortes especiais de carne.

“Hola” e beijos no ar ainda são o padrão aqui, mas o “Oi” está perceptivelmente avançando.

“Nós viemos para Miami para investir, porque no meu país os imóveis residenciais estão muito caros”, disse Claudio Coppola Di Todaro, um investidor de fundo hedge de São Paulo, que comprou recentemente um apartamento nas Trump Towers, em Sunny Isles Beach, e outro na Trump SoHo, em Manhattan (os brasileiros também adoram Nova York). “Nós gostamos de passar férias em Miami algumas vezes por ano. Muitos brasileiros fazem isso agora.”

Enquanto os Estados Unidos e a Europa continuam enfrentando uma recessão, a economia do Brasil continua galopando à frente, movida pelas exportações, uma crescente base manufatureira e recursos naturais abundantes. O desemprego em outubro era de 5,8% e nesta semana o Brasil ultrapassou o Reino Unido, se transformando na sexta maior economia do mundo.

Os brasileiros atentos a grifes adoram usar seu dinheiro (em espécie, acima de tudo), figurando em primeiro lugar per capita em gastos entre os 10 principais grupos de turistas estrangeiros nos Estados Unidos, uma lista que inclui franceses, britânicos e alemães. Ao todo, 1,2 milhão de brasileiros visitaram em 2010 e gastaram US$ 5,9 bilhões, ou US$ 4,940 por visitante. Apenas turistas da Índia e da China gastam mais que os brasileiros, mas eles são em número bem menor e não figuram entre os 10 mais.

O Departamento do Comércio espera que o número total de turistas brasileiros será ainda maior neste ano.

O impacto econômico dos brasileiros é tão grande que os setores de turismo, restaurante e varejo, juntamente com a Câmara de Comércio dos Estados Unidos, estão fazendo lobby em Washington para permitir que os brasileiros viajem sem a necessidade de visto, como podem os cidadãos dos países da União Europeia. Em novembro, o Departamento de Estado concordou em aumentar o número de consulados para acelerar o procedimento de visto.

A American Airlines tem 52 voos por semana de cinco cidades no Brasil para Miami e fez pedido para mais rotas.

A Flórida é o Estado que mais se beneficia com a nova riqueza do Brasil e com o crescimento de sua classe média. A maioria dos brasileiros que vêm aos Estados Unidos visita a Flórida, e nos primeiros nove meses deste ano, cerca de 1,1 milhão de brasileiros gastaram US$ 1,6 bilhão no Estado, um aumento de quase 60% em comparação ao ano anterior. Entre os países estrangeiros, apenas o Canadá envia mais visitantes à Flórida.

O dinheiro dos brasileiros ajudou a ressuscitar o mercado imobiliário em Miami. Estrangeiros são responsáveis por mais da metade de todas as vendas de imóveis em Miami, e prédios de apartamentos que antes estavam vazios estão esgotando rapidamente.

“De muitas formas, os brasileiros têm sido a salvação aqui”, disse Edgardo Defortuna, presidente da Fortune International Realty, que tem escritórios no Brasil e em Miami. “O preço não é um problema para eles.”

Os brasileiros entram aqui no estilo de vida latino-americano –jantares tarde da noite e moda, alimentos e música familiares. E a relativa segurança dos Estados Unidos é um bônus. A taxa de homicídios do Rio de Janeiro, apesar de em queda, é quase três vezes maior do que a de Miami.

Ávidos por fazer compras e passar tempo com parentes e amigos, os brasileiros costumam comprar apartamentos no mesmo prédio, como o W em South Beach.

“Em Miami, eles podem vir e usar relógios caros, andar em seus conversíveis e ninguém cortará o braço deles para roubar uma joia, como acontece em casa”, disse Alexandre Piquet, um advogado brasileiro da Piquet Realty, que foi fundada por seu irmão, Cristiano, um conhecido piloto de corrida. “Aqui não temos que nos preocupar com crianças atravessando a rua e sendo sequestradas, alguns dos problemas que ainda enfrentamos lá. É a realidade.”

A Piquet Realty, aberta em 2005, dobrou seus negócios no ano passado, disse Cristiano Piquet. Alguns apartamentos que ele vende são entregues plenamente mobiliados pela Artefacto, uma proeminente empresa brasileira de design de móveis. Se os brasileiros precisam de ajuda com transações legais, impostos ou orientações sobre imigração, a empresa também oferece. Se um cliente quiser uma Ferrari, a Piquet Realty também providencia.

Como muitas empresas no sul da Flórida, a empresa promove agressivamente a si mesma no Brasil, como a junta de turismo de Miami. O governador da Flórida, Rick Scott, viajou ao Brasil neste ano em uma missão comercial.


Agora, Orlando está tentando atrair os brasileiros, que preferem os shoppings da cidade a seus parques temáticos. A Pegasus Transportation opera visitas regulares a shoppings, levando milhares de brasileiros a eles. O outlet da grife de moda Tommy Hilfiger e a loja de eletrônicos H.H. Gregg abrem cedo apenas para eles.

“Eles estão comprando tudo o que é imaginável”, disse Claudia Menezes, vice-presidente da Pegasus. “Laptops, câmeras, roupas de grife –muito Prada e Louis Vuitton.”

O gosto por gastar é o principal motivo para a batalha dos vistos estar começando a repercutir no Capitólio.

Há apenas quatro consulados americanos no Brasil, um país quase do mesmo tamanho dos Estados Unidos. Para obter um visto, muitos brasileiros precisam viajar longas distâncias para ser entrevistados no consulado. Apesar do processo oneroso, foram feitos 820 mil pedidos de visto neste ano, com uma média de espera de 50 dias –tempo demais, dizem autoridades de turismo.

Os lobistas estão pressionando o Congresso e o Departamento de Estado para mudar o processo. Caso isso não seja possível, eles pedem por mais consulados e um programa que possibilite a seleção dos requerentes de visto por meio de videoconferência. Sete projetos de lei estão tramitando no Congresso a respeito da questão do visto.

Enquanto isso, dizem as autoridades de turismo, a Europa atrai um grande número de brasileiros porque viajar para lá é muito mais fácil. A Europa Ocidental recebe 52% de todos os brasileiros que viajam ao exterior e os Estados Unidos recebem 29%.

“Seria possível dobrar o número de brasileiros nos Estados Unidos” se o visto não fosse necessário, disse Patricia Rojas, vice-presidente da Associação de Turismo dos Estados Unidos. “Nós estamos em grande desvantagem.”

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Entrevista - Gérard Duménil

 ''O mundo já ingressou na segunda fase da crise''

O economista francês Gérard Duménil é autor de vários livros e ensaios sobre o capitalismo contemporâneo. Este ano publicou, em parceria com Dominique Lévy, o livro The crisis of neoliberalism (Harvard University Press, 2011). Duménil esteve na Unicamp para uma palestra sobre a crise atual no Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) no âmbito do programa de pós-graduação em ciência política do Instituto de Filosofia e Ciências  Humanas (IFCH) da Unicamp. Na ocasião, concedeu a entrevista que segue ao cientista político Armando Boito Júnior, professor titular do IFCH, publicada pelo jornal da Unicamp, 12 a 18 de dezembro de 2011.

Fonte: UNISINOS

Você vem pesquisando o capitalismo neoliberal há muito tempo. Na sua análise, como se deve caracterizar essa etapa atual do capitalismo?

O neoliberalismo é a nova etapa na qual ingressou o capitalismo com a transição dos anos 70 e 80. Eu e Dominique Lévy falamos de uma nova “ordem social”. Com essa expressão nós designamos a configuração de poderes relativos de classes sociais, dominações e compromissos. O neoliberalismo se caracteriza, desse modo, pelo reforço do poder das classes capitalistas em aliança com a classe dos gerentes (classe des cadres) – sobretudo as cúpulas das hierarquias e dos setores financeiros.

No decorrer dos decênios posteriores à Segunda Guerra Mundial, as classes capitalistas viram o seu poder e suas rendas diminuírem sensivelmente na maior parte dos países. Simplificando, nós poderíamos falar numa ordem “social-democrata”. As circunstâncias criadas pela crise de 1929, a Segunda Guerra Mundial e a força internacional do movimento operário tinham conduzido ao estabelecimento dessa ordem social relativamente favorável ao desenvolvimento econômico e à melhoria das condições de vida das classes populares – operários e empregados subalternos. O termo “social-democrata” para caracterizar essa ordem social se aplicava, evidentemente, melhor à Europa que aos Estados Unidos.

Com o estabelecimento da nova ordem social neoliberal, o funcionamento do capitalismo foi radicalmente transformado: uma nova disciplina foi imposta aos trabalhadores, em matéria de condições de trabalho, poder de compra, proteção social etc., além da desregulamentação (notadamente financeira), abertura das fronteiras comerciais e a livre mobilidade dos capitais no plano internacional – liberdade de investir no exterior. Esses dois últimos aspectos colocaram todos os trabalhadores do mundo numa situação de concorrência, quaisquer que sejam os níveis de salário comparativos nos diferentes países.

No plano das relações internacionais, os primeiros decênios do pós-guerra, ainda na antiga ordem “social democrata”, foram marcados por práticas imperialistas dos países dos países centrais: no plano econômico, pressão sobre os preços das matérias-primas e exportação de capitais; no plano político, corrupção, subversão e guerra. Com a chegada do neoliberalismo, as formas imperialistas foram renovadas. É difícil julgar em termos de intensidade, fazer comparação. Em termos econômicos, a explosão dos investimentos diretos no estrangeiro na década de 1990 certamente multiplicou o fluxo de lucros extraído dos países periféricos pelas classes capitalistas do centro. O fato de os países da periferia desejarem receber esses investimentos não muda nada a natureza imperialista dessas práticas – sabe-se que todos os trabalhadores “desejam” ser explorados a ficar desempregados.

Quando em meados dos anos 90, nós introduzimos essa interpretação do neoliberalismo em termos de classe, ela suscitou pouco interesse. Mas a explosão das desigualdades sociais deu a essa interpretação a força da evidência. A particularidade da análise marxista é a referência às classes mais que a grupos sociais. Esse caráter de classe está inscrito em todas as práticas neoliberais e inclusive os keynesianos de esquerda se exprimem, agora, nesses termos. Uma recusa a essa interpretação, no entanto, ainda se mantém; muitos não aceitam o papel importante que atribuímos aos gerentes (cadres) na ordem social neoliberal.

Entre os marxistas, continua-se a recusar que o controle dos meios de produção no capitalismo moderno é assegurado conjuntamente pelas classes capitalistas e pela classe dos gerentes (classe de cadres), o que faz dessa última uma segunda componente das classes superiores. Essa recusa é ainda mais desconcertante quando se tem em mente que as rendas das categorias superiores dos gerentes (cadres) no neoliberalismo explodiram ainda mais que as rendas dos capitalistas.

Para alguns autores, o neoliberalismo foi um ajuste inevitável provocado pela crise fiscal do Estado; para outros foi o resultado, também inevitável, da globalização.

A explicação do neoliberalismo pela “crise fiscal” e frequentemente também pela inflação é a explicação da direita; é uma defesa dos interesses capitalistas. Ela especula com as inconsequências dos blocos políticos que dirigiam a ordem social do pós-guerra. Esses foram incapazes de gerir a crise dos anos 70 e preparam a cama para o neoliberalismo. Passa-se o mesmo com a explicação que apresenta o neoliberalismo como consequência da globalização. Esse argumento inverte as causalidades. O que o neoliberalismo faz é orientar a globalização, uma tendência antiga, para novas direções e acelerar o seu curso, abrindo a via para a “globalização neoliberal”. O movimento altermundialista lutou por uma outra globalização, solidária, e não baseada na exploração em proveito de uma minoria.

Você acaba de publicar, juntamente com o seu colega Dominique Lévy, um livro sobre a crise econômica atual. Na sua avaliação, qual é a natureza dessa crise?

A crise atual é uma das quatro grandes crises – crises estruturais – que o capitalismo atravessou desde o final do século XIX: a crise da década de 1890, a crise de 1929, a crise da década de 1970 e a crise atual – iniciada em 2007/2008. Essas crises são episódios de perturbação de uma duração de cerca de uma dezena de anos (para as três primeiras). Elas ocorrem com uma periodicidade de cerca de 40 anos e separam as ordens sociais que evoquei na resposta à primeira pergunta. A primeira e a terceira dessas crises, as das décadas de 1890 e de 1970, seguiram-se a fases de queda da taxa de lucro e podem ser designadas como crises de rentabilidade. As duas outras crises, a de 1929 e a atual, nós as designamos como “crises de hegemonia financeira”. São grandes explosões que ocorrem na sequência de práticas das classes superiores visando ao aumento de suas rendas e de seus poderes. Todos os procedimentos do neoliberalismo estão aqui em ação: desregulamentação financeira e globalização. O primeiro aspecto é evidente, mas a globalização foi também, como vou indicar, um fator chave da crise atual.

Queda da taxa de lucro e explosão descontrolada das práticas das classes capitalistas são dois grandes tipos de explicação das grandes crises na obra de Marx. O primeiro tipo é bem conhecido. No Livro III de O Capital, Marx defende a tese da existência de uma “tendência decrescente da taxa de lucro” inerente ao caráter da mudança tecnológica no capitalismo (a dificuldade de aumentar a produtividade do trabalho sem realizar investimentos muito custosos, o que Marx descreve como a “elevação da composição orgânica do capital”).

Note-se que Marx refuta explicitamente a imputação da queda da taxa de lucro ao aumento da concorrência. (O segundo grande tipo de explicação para as crises já aparece em esboço nos escritos de Marx da década de 1840.) No Manifesto do Partido Comunista, Marx descreve as classes capitalistas como aprendizes de feiticeiros, desenvolvendo mecanismos capitalistas sob formas e em graus perigosos e perdendo, finalmente, o controle sobre as consequências de sua ação. Os aspectos financeiros da crise atual remetem diretamente às análises do “capital fictício”, aos quais Marx consagrou longos desenvolvimentos no Livro II de O Capital, desenvolvimentos que ecoam as ideias do Manifesto. De uma maneira bem estranha, alguns marxistas só aceitam a explicação das grandes crises pela queda da rentabilidade, excluindo qualquer outra explicação, e passam a multiplicar cálculos mal fundamentados.

Mas a crise atual não é uma simples crise financeira. É a crise de uma ordem social insustentável, o neoliberalismo. Essa crise, no centro do sistema, deveria acontecer, de qualquer modo, um dia ou outro, mas ele chegou de uma maneira bem particular em 2007/2008, vinda dos Estados Unidos. Dois tipos de mecanismos convergiram. Encontramos, de uma parte, a fragilidade induzida em todos os países neoliberais pelas práticas de financeirização e de globalização (notadamente financeira), motivada pela busca desenfreada de rendimentos crescentes por parte das classes superiores, reforçada pela recusa de regulamentação. O banco central dos EUA, em particular, perdeu o controle das taxas de juros e a capacidade de conduzir políticas macroeconômicas em decorrência da globalização financeira. De outra parte, a crise foi o efeito da trajetória econômica estadunidense, uma trajetória de desequilíbrios cumulativos, que os EUA puderam manter devido à sua hegemonia internacional – contrariamente à Europa que, considerada no seu conjunto, não conheceu tais desequilíbrios.

Desde 1980, o ritmo da acumulação de capital nos Estados Unidos desacelerou no território do próprio país enquanto cresciam os investimentos diretos no exterior. A isso é necessário acrescentar: um déficit crescente do comércio exterior, uma grande elevação do consumo (da parte das camadas mais favorecidas) e um endividamento igualmente crescente das famílias. O déficit de comércio exterior (o excesso de importações frente às exportações) alimentava um fluxo de dólares para o resto do mundo que tinha como única utilização a compra de títulos estadunidenses, levando ao financiamento da economia daquele país pelos estrangeiros – uma “dívida” vis-à-vis o estrangeiro, simplificando um pouco.

Por razões econômicas que eu não explicarei aqui, o crescimento dessa dívida exterior devia ser compensado por aquele da dívida interna, a das famílias e a do Estado, a fim de sustentar a atividade no território do país. Isso foi feito encorajando o endividamento das famílias pela política de crédito e pela desregulamentação – a dívida do governo teria podido substituir o endividamento das famílias mas isso ia contra as práticas neoliberais de antes da crise. Os credores das famílias (bancos e outros) não conservavam os créditos criados, mas os revendiam sob a forma de títulos (obrigações), cuja metade, mais ou menos, foi comprada pelo resto do mundo.

De tanto emprestar às famílias para além da capacidade delas saldarem as dívidas, as inadimplências se multiplicaram desde o início do ano de 2006. A desvalorização desses créditos desestabilizou o frágil edifício financeiro, nos EUA e no mundo, sem que o banco central dos Estados Unidos estivesse em condição de restabelecer os equilíbrios no contexto de desregulamentação e de globalização que ele próprio tinha favorecido. Esse foi o fator desencadeador, mas não o fundamental, da crise – combinação de fatores financeiros (a loucura neoliberal nesse domínio) e reais (a globalização, o sobre-consumo estadunidense e o déficit do comércio exterior desse país).

Você falou em suas palestras no Brasil que a crise econômica teria entrado numa segunda fase. Como a crise vem se desenvolvendo?

O mundo já ingressou na segunda fase da crise. É fácil compreender as razões. A primeira fase atingiu o pico no outono de 2008, quando caíram as grandes instituições financeiras estadunidenses, quando começou a recessão e quando a crise se propagou para o resto do mundo. As lições da crise de 1929 foram bem aprendidas. Os bancos centrais intervieram massivamente para sustentar as instituições financeiras (com medo de uma repetição da crise bancária de 1932) e os déficits orçamentários dos Estados atingiram níveis excepcionais. Mas essas medidas keynesianas, estimulando a demanda, só podiam ter por efeito uma sustentação temporária da atividade. Os governos dos países do centro ainda não tomaram consciência do caráter estrutural da crise. Eles agem como se a crise tivesse sido puramente financeira, já ultrapassada; entretanto, as medidas keynesianas só criaram um sursis. Nenhuma medida antineoliberal séria foi tomada nos países do centro. São apenas políticas que visam o reforço da exploração das classes populares.

Nos Estados Unidos, a administração de Barak Obama elaborou uma lei, a lei Dodd-Frank, para regulamentar as práticas financeiras, mas os republicanos bloquearam completamente a aplicação. Em outras esferas, como gestão das empresas, exportação, déficits do comércio exterior, nada foi feito. Na Europa, a crise não é identificada como a crise do neoliberalismo. A Alemanha é apresentada como tendo provado a sustentabilidade do caminho neoliberal. A crise é imputada à incapacidade de gestão de certos Estados, notadamente a Grécia e Portugal.

Em toda parte, a direita retomou a ofensiva. Ela se atém à questão dos déficits orçamentários e da elevação da dívida pública. Ela finge não ver que a austeridade orçamentária, além da transferência, que a felicita, do peso da dívida para as classes populares, não pode senão provocar a recaída numa nova contração da atividade. Essa é a segunda fase da crise. Essa segunda fase não será a última. O novo mergulho na recessão necessitará novas políticas. Contrariamente à Europa, os Estados Unidos se lançaram massivamente no financiamento direto da dívida pública pelo banco central (o quantitative easing). Muito mais coisa será necessária, apesar da direita. Nós temos dificuldade em ver como a Europa poderá escapar disso.

É sabido que a crise econômica atingiu mais fortemente, pelo menos até agora, os EUA e a Europa. Na década de 1990, ao contrário, as crises econômicas foram mais fortes na periferia. Por que essa diferença? Como a crise atual se manifesta nas diferentes regiões do globo?

Até a segunda metade da década de 1990, o neoliberalismo produziu estragos no mundo, notadamente na América Latina e na Ásia. Mesmo hoje, as taxas de crescimento na América Latina permanecem inferiores àquelas dos primeiros decênios do pós-Segunda Guerra Mundial, e isso a despeito da redução massiva dos salários reais – que foi reduzido à metade desde a crise de 1970 em alguns países da região. Na década de 1990 – e em 2001 na Argentina – os avanços do neoliberalismo provocaram grandes crises, das quais a crise argentina é um caso emblemático.

O mundo entrou, agora, numa fase nova. A transição para o neoliberalismo provoca um tipo de “divórcio”, nos países do centro, entre os interesses das classes superiores e os do país como território econômico. O caso dos Estados Unidos é espetacular. Como eu disse, as grandes empresas desse país investem cada vez menos no território do país e, cada vez mais, no resto do mundo. A globalização levou a um deslocamento da localização da produção industrial para as periferias: na Ásia, na América Latina e, inclusive, em alguns países da África sub-saariana.

As políticas propostas pelos dois grandes da União Europeia para superar a crise têm repetido as fórmulas neoliberais. Os mercados intimidam os governos; Sarkozy e Merkel exigem mais e mais cortes orçamentários. Por que insistem em uma política que, para muitos observadores, está na origem da crise? Que resultado a aplicação de tais políticas poderá produzir?

Eu não penso de jeito nenhum que o rigor orçamentário tenha sido uma das causas da crise. Isso é a expressão de uma crença keynesiana ingênua, tão ingênua quanto à crença na capacidade dessas políticas de suscitar a saída da crise, dispensando as necessárias transformações antineoliberais. Porém, nesse contexto, as políticas que visam erradicar os déficits não deixarão de provocar uma nova queda da produção.

Muitos analistas têm destacado que os partidos, sejam eles de direita ou de esquerda, não se diferenciam muito nas propostas para enfrentar a crise. Ademais, em vários países europeus, como a Inglaterra, a Espanha e Portugal, a direita foi eleitoralmente favorecida pela crise econômica. Os movimentos sociais poderiam construir uma alternativa de poder? Qual poderia ser um programa popular para enfrentar a crise atual?

Nós não falamos dos aspectos políticos do neoliberalismo. A aliança na cúpula das hierarquias sociais entre classes capitalistas e classes dos gerentes (classes de cadres) logrou, por diversos mecanismos, afastar as classes populares da política “politiqueira”. Quero dizer: as afastou dos jogos dos partidos e dos grupos de pressão. Para as classes populares, só restou a (luta de) rua.

É preciso fazer entrar em cena grupos sociais que se encontram na “periferia” das classes dos gerentes (classes de cadres): os intelectuais e os políticos profissionais. No compromisso social dos pós-Segunda Guerra, frações relativamente importantes desses grupos eram partidárias da aliança com as classes populares (às quais elas não pertenciam), que elas apoiavam nos seus campos próprios de atuação. No contexto do colapso do movimento operário mundial, as classes capitalistas lograram, no neoliberalismo, a selar uma aliança com as classes dos gerentes – usando o recurso da remuneração, notadamente – conduzindo gradualmente esses grupos periféricos (a universidade fornece muitas ilustrações sobre esse fenômeno) no empreendimento de conquista social do neoliberalismo. A proporção de grupos sociais motivados para uma aliança com as classes populares estreitou-se consideravelmente, ficando reduzida a alguns grupos “iluminados” aos quais eu próprio pertenço.

O sofrimento das classes populares não chega ao grupo dos gerentes e, no plano político, não há mais nenhum grande partido de esquerda. Na França, sabe-se no que se tornou o Partido Socialista, completamente ganho pela “globalização”, um termo para ocultar o neoliberalismo. Algo semelhante poderíamos dizer dos democratas nos Estados Unidos e eu deixo para vocês mesmos julgarem a situação do Brasil a esse respeito.

A vida política – politiqueira – se reduz à alternância entre dois partidos não equivalentes; mas o partido que se diz de esquerda é incapaz de propor uma alternativa, para não falar da sua implementação. O voto se reduz àquilo que nós chamamos na França o “voto sanção”. A direita sucede a esquerda na Espanha, por exemplo, porque a esquerda estava no poder durante a crise; a direita não tem, evidentemente, nenhuma capacidade superior para gerir a crise.

Muitos observadores têm falado da possibilidade de extinção do euro. Você acredita que isso poderá ocorrer? Na sua avaliação, quais seriam os desfechos mais prováveis para a crise atual?

É possível que alguns países saiam da zona do euro. Isso não resolveria o problema da dívida deles, que se tornaria ainda impagável depois da desvalorização da nova moeda substituta do euro. O problema é o do cancelamento da dívida ou de sua adoção pelo banco central. A crise da dívida atingiu agora os países do centro da Europa, e será necessário que esses países tomem consciência da amplitude e da verdadeira natureza do problema.

Isso remete às características daquilo que nós chamamos a “terceira fase da crise”. Quais políticas serão adotadas face à nova recessão? Como será gerida a crise na Itália e, depois, na França? Como a Alemanha responderá à pressão dos “mercados” (as instituições financeiras internacionais)? Uma coisa é certa: essas dívidas não devem ser pagas, o que exige a transferência delas para fora dos bancos ou uma forte intervenção na sua gestão.

Agora, o ponto fundamental é a vontade dos governos dos países mais poderosos da Europa, notadamente a Alemanha, de reforçar a integração europeia (em vez de estourar a zona do euro), que se opõe à vontade de “desglobalização” de alguns. Esse debate oculta a questão central: qual Europa? Uma Europa das classes superiores ou a de um novo compromisso de esquerda?

Entrevista - Reinaldo Gonçalves

Os rumos do capitalismo global: locomotivas voltam para os trilhos, vagões descarrilam. Crises econômicas têm quatro manifestações distintas: real, financeira, fiscal e cambial. No médio prazo os EUA e países desenvolvidos da Europa devem sair da crise. Já o Brasil será atingido se não houver mudanças significativas na estratégia e política econômicas

Por: Graziela Wolfart e Márcia Junges
Fonte: UNISINOS

Economista Reinaldo Gonçalves, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Gonçalves é formado em Economia/UFRJ, Mestre em Economia/FGV-RJ e Doutor em Letters and Social Sciences pela University of Reading/Inglaterra. Atualmente leciona na UFRJ. É autor de Economia internacional. Teoria e experiência brasileira (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004) e Economia política internacional. Fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005). Publicou também com Luís Filgueiras, o livro A economia política do governo Lula (Rio de Janeiro: Contraponto, 2007).

IHU On-Line – Quais são as perspectivas para o Brasil frente a crise econômica?

Reinaldo Gonçalves – Há risco crescente de que o número de países atingidos por crises econômicas aumente. No entanto, o cenário mais provável é que os Estados Unidos e os principais países desenvolvidos da Europa saiam da crise atual no médio prazo. O Brasil, porém, tende a ser atingido pela crise se não ocorrerem mudanças significativas na estratégia e na política econômicas. Assim, o cenário atual parece indicar que as locomotivas voltarão para os trilhos e o vagão de terceira classe descarrilará mais uma vez.

IHU On-Line – Por que ocorrem essas crises no capitalismo reiteradamente? Isso aponta para o esgotamento desse sistema?

Reinaldo Gonçalves – Crise é a irmã mais nova da instabilidade. Ela é filha natural do capitalismo. Instabilidade, no capitalismo, significa alternância de situações de prosperidade e crise. Os economistas chamam de fases esses fenômenos – ascendentes e descendentea – do ciclo econômico. Na fase descendente, surge a crise econômica, que é a perda ou risco crescente de perda de renda e bem-estar por parte de parcela expressiva da sociedade. Crise, portanto, é fase difícil ou grave da evolução dos processos, estruturas e relações econômicas.

Há crise real quando o processo de geração de renda e emprego apresenta significativa desaceleração ou retrocesso (recessão). Há crise financeira quando as estruturas de financiamento de indivíduos e empresas são rompidas ou não funcionam de modo adequado. Isto é, ocorrem problemas graves nos bancos e mercado de capitais. Há crise fiscal quando o governo tem dificuldade para expandir a dívida pública (mercado de títulos públicos). Há crise cambial ou de contas externas quando relações comerciais e financeiras com outros países são restringidas, o que impede a geração de renda no país e o financiamento dos gastos no exterior.

Crises no capitalismo também ocorrem porque a ânsia de riqueza e renda (fenômeno também chamado de “espírito animal” do capitalista) gera variações extraordinárias de preços de bens (petróleo e outros), moedas (dólar, euro, etc.) e ativos financeiros (ações e outros) e reais (exemplo, imóveis). O aumento extraordinário de preços é conhecido como formação de “bolhas”. O resultado da especulação é que as “bolhas” explodem quando há reversão de expectativas e, nesse momento, há eclosão de crise. Riquezas desaparecem de um dia para outro. Os que perderam riqueza contraem seus gastos, os endividados quebram, os trabalhadores são demitidos e o lucro do capitalista desaparece.

IHU On-Line – Quais são os motivos que levaram a essa crise econômica internacional? Em termos gerais, o que causa as crises dessa natureza?

Reinaldo Gonçalves – A principal causa da atual crise econômica internacional é a ruptura do sistema de financiamento de imóveis nos Estados Unidos em 2007 e 2008. Nesse país houve ampla oferta de financiamento para a compra de imóveis, inclusive para aqueles sem poupança ou renda adequadas (crédito subprime, ou grande risco de crédito). A onda de inadimplência – calote – levou à queda dos preços dos imóveis (38% entre junho de 2006 e junho de 2011) e à quebra de parte do sistema financeiro da maior economia do mundo em 2008 e 2009.

Entretanto, crises econômicas também são causadas por erros de política de governo que, em geral, atendem grupos de interesses capitalistas. Houve avanço significativo de liberalização e desregulamentação financeira mundial nas duas últimas décadas. Esse processo implicou crescimento extraordinário dos fluxos internacionais de capitais, e isso interconectou os diversos sistemas financeiros nacionais. Com essa interdependência, problemas graves em um país importante como os Estados Unidos são transmitidos para o resto do mundo. Portanto, vários governos erraram quando tomaram decisões que promoveram essa liberalização financeira internacional.

Governos também erram quando estimulam uma expansão extraordinária do crédito e, portanto, do endividamento de indivíduos e empresas. Ou quando elevam a dívida pública para níveis insustentáveis. Ou ainda quando deixam em níveis inadequados, por muito tempo, variáveis macroeconômicas fundamentais, como taxa de juro e taxa de câmbio. Os governos dos Estados Unidos, de países da Europa e do Brasil cometeram esses erros nos últimos anos – se não todos, ao menos alguns.

Evidentemente, há outras causas de crises econômicas que não são próprias do capitalismo. É o caso dos desastres naturais. Quebras de produção agrícola, terremotos, maremotos e guerras ocorrem em qualquer sistema econômico. Para ilustrar, basta lembrar que o Japão deve sofrer queda de renda em decorrência do terremoto e do tsunami ocorridos em março de 2011.

IHU On-Line – Há diferentes tipos de crises econômicas? Quais são suas características?

Reinaldo Gonçalves – Crises econômicas têm quatro manifestações distintas: real, financeira, fiscal e cambial. A grande maioria das crises capitalistas são crises reais, ou seja, resultam da volatilidade do comportamento dos capitalistas quanto às decisões de investimento produtivo. Há crise real quando a redução dos investimentos trava a geração de renda e emprego. Também há a crise financeira, como a que aconteceu nos Estados Unidos em 2008 e resultou da quebra do mercado subprime de imóveis. A crise financeira gerou crise real: a taxa de desemprego praticamente dobrou nos últimos cinco anos naquele país, e está previsto fraco desempenho econômico em 2011 e 2012.

A crise fiscal se manifesta quando o governo tem dificuldade para financiar seus gastos, em função do elevado nível de endividamento público, entre outros fatores. A crise atual na Europa é marcada pela grande dificuldade que governos de países como Grécia, Portugal e Irlanda enfrentam para pagar sua dívida pública e obter novos empréstimos. Em geral, a crise fiscal é precedida por crescimento extraordinário dos gastos públicos, seja para financiar infraestrutura (como as obras das Olimpíadas em Atenas, na Grécia, em 2004), seja para enfrentar crises financeiras e crises reais (o que ocorreu a partir de 2008).

Os países em desenvolvimento sofrem, em particular, crise cambial. Nesse caso, ocorre o problema de dificuldade de obtenção de financiamento externo, que provoca elevação extraordinária da taxa de câmbio (desvalorizando a moeda nacional). Isso ocorreu no Brasil no segundo semestre de 2008, logo após a eclosão da crise financeira nos Estados Unidos: a taxa de câmbio (valor do dólar) saltou de R$ 1,70 em julho para mais de R$ 2,50 em dezembro. Em consequência, grandes empresas (Sadia e Aracruz) e bancos (Unibanco e Votorantim) tiveram sérios problemas, que resultaram em fusões e aquisições. As crises cambial e financeira provocaram crise real, visto que a renda per capita brasileira caiu 1,8% em 2009.

Nos países desenvolvidos, a situação atual é de séria crise econômica. Na Europa, há desaceleração do crescimento da renda e, portanto, risco de crise real ainda maior no futuro próximo. Os índices de desemprego estão muito elevados em inúmeros países. Há séria crise fiscal com altos níveis de endividamento público. Há ainda riscos quanto à saúde do sistema financeiro: os bancos estão muitos expostos, porque emprestaram muito para indivíduos, empresas e governos que agora estão com dificuldades para saldar seus compromissos.

Crise real

Nos Estados Unidos, há crise real com forte perda de confiança e, portanto, expectativas desfavoráveis que comprometem o investimento privado e a geração de emprego. Também se prevê desaceleração do crescimento econômico naquele país. Há ainda problemas remanescentes da crise do subprime hipotecário, pois as dívidas de hipotecas imobiliárias que foram renegociadas ainda podem se transformar em calote. E as dificuldades do governo em relação ao endividamento público têm sido crescentes. Portanto, Estados Unidos e Europa combinam elementos de crise real, financeira e fiscal. O Japão, por sua vez, é o país desenvolvido com maior nível relativo de endividamento público.

Nos países emergentes, a situação é bastante diferente, embora existam fatores comuns, como os riscos decorrentes da desaceleração do comércio internacional e da volatilidade dos fluxos financeiros internacionais. Países como a China, de um lado, protegem-se com elevados níveis de competitividade internacional e baixa dependência em relação a recursos financeiros externos. De outro lado, no Brasil esses riscos são particularmente elevados, porque o país depende significativamente da exportação de produtos básicos (minério de ferro, carne, soja e outros) e da captação de recursos externos para sustentar seu crescente e elevado déficit nas contas externas (as transações comerciais, de serviços e financeiras com os outros países). Ou seja, as despesas do Brasil em moedas estrangeiras são maiores do que as suas receitas. Em 2010 o país precisou captar 48 bilhões de dólares para fechar suas contas externas. Em 2011 este “buraco” pode superar 55 bilhões. Portanto, há crescente risco de crise cambial, que tende a causar crises financeira, real e fiscal.

IHU On-Line – Qual é o cenário mais provável a médio prazo para os Estados Unidos e a Europa? Que meios de superação estão sendo pensados?

Reinaldo Gonçalves – Se, por um lado, é certo que instabilidade e crise são próprias ao capitalismo, também é verdadeiro que esse sistema econômico desenvolveu mecanismos para superar crises. Por esta e outras razões, o capitalismo, marcado por desperdício, injustiça e instabilidade, sobrevive e avança há séculos. Nos últimos três anos, os principais países desenvolvidos perderam graus de liberdade na aplicação de políticas macroeconômicas convencionais (redução de juros e aumento de gastos públicos). Entretanto, esses países dispõem de pelo menos quatro instrumentos de grande impacto na economia: progresso técnico, competitividade internacional, distribuição de renda e guerra. Portanto, pode-se prever, de modo otimista, que os principais países capitalistas retomarão a fase ascendente em médio prazo (de dois a três anos). Este argumento aplica-se às principais economias capitalistas do mundo (EUA, Alemanha, França e Japão). É bem verdade que economias pouco importantes (Grécia, Portugal, etc.) continuarão em crise.

O progresso técnico implica aumento de produtividade e lançamento de novos produtos, que elevam a massa de lucros. Há, então, estímulo para os investimentos dos capitalistas. A competitividade internacional permite vender mais produtos no mercado internacional. A guerra impulsiona os gastos bélicos e, portanto, a geração de renda e emprego, além de estimular o progresso tecnológico. Nesse sentido, Afeganistão, Iraque e Líbia são oportunidades extraordinárias, além de outras que podem ser criadas (Paquistão, Irã, Síria, etc.). E o processo de distribuição de riqueza e renda gera ampliação do consumo dos trabalhadores. Entretanto, é pouco provável que ocorra este processo no horizonte previsível. Muito pelo contrário, parte expressiva do ajuste frente às crises deve recair sobre os grupos de menor renda.

Países em desenvolvimento, como o Brasil, em geral não dispõem desses instrumentos. A exceção é a distribuição de renda com base em políticas assistencialistas, benefícios da previdência e salário mínimo, que levam a aumento do consumo. O Brasil, além disso, apresenta crescente déficit nas contas externas e elevado passivo externo (o montante aplicado no país por estrangeiros é quatro vezes maior que as reservas internacionais brasileiras). Portanto, o país está preso a uma trajetória de crescente risco de crise cambial que, invariavelmente, resulta em crises real, financeira e fiscal.

Em síntese, o cenário mais provável no médio prazo é, de um lado, os Estados Unidos e países europeus importantes saírem da crise. De outro, se não houver mudanças significativas de estratégias e política, o Brasil, país marcado por enormes fragilidades e vulnerabilidades, tende a sofrer crise cambial e afundar em crises de todos os tipos. As locomotivas voltam para os trilhos e o vagão de 3ª classe descarrila mais uma vez.

domingo, 23 de outubro de 2011

Entrevista - Paulo Nogueira Batista Jr


'Ortodoxo', Nogueira Batista defende disciplina fiscal
A entrevista com Paulo Nogueira Batista Jr é de Assis Moreira, e foi publicada pelo jornal Valor, 18-10-2011.
Fonte: UNISINOS

Dá para escapar de nova recessão global?

O quadro hoje nos países desenvolvidos é de recessão, estagnação ou crescimento muito lento, com desemprego alto. E nos emergentes há uma desaceleração do crescimento, mesmo na China. Uma nova recessão mundial é possível, mas não é inevitável.

A China caminha para aterrissagem forçada?

Há um risco. Mas há 20 anos que escuto falar de risco de aterrissagem forçada da China e não aconteceu. Há vulnerabilidades na China, sim, no sistema financeiro e parece haver bolhas importantes nos mercados imobiliários. Mas o que está aparecendo são sinais de uma certa desaceleração. E como há inflação mais alta do que havia há dois, três anos, é difícil imaginar que a China possa responder à desaceleração interna e mundial com um impulso tão forte como o que ela deu em 2008 como parte da reação à crise global. A China está numa posição forte e, comparado a países desenvolvidos, então, nem se fala. Mas também tem menos munição do que tinha em 2008-2009. A escassez da munição é muito mais nítida na Europa, nos EUA, mas também se nota no caso da China. O impacto [para o Brasil] depende do tipo e da extensão do problema chinês. Se for desaceleração muito forte, vai afetar commodities. A China é nosso maior parceiro comercial e nossas exportações são sobretudo de commodities.

O cenário se deteriora, mas o Ministério da Fazenda projeta crescimento maior, de 5% em 2012, no Brasil. Quais ajustes são necessários para isso?

É importante que o Brasil tenha uma competitividade internacional mais forte. É bem vinda uma certa depreciação cambial, que começou a ocorrer com essa turbulência, desde que não seja muito rápida. A competição entre os países no mercado internacional vai se intensificar com o agravamento da situação mundial e vamos precisar de mecanismos eficazes de defesa contra concorrência desleal e subsídios abusivos. O Brasil já está caminhando nessa direção.

E no plano macro?

No plano macro, é importante o Brasil mudar sua 'policy mix', reduzir gradualmente a taxa de juro que vai ajudar inclusive as finanças públicas e o câmbio, empurrar o câmbio no sentido de uma certa depreciação. Mas, para que isso seja viável, é importante manter uma política fiscal muito disciplinada. Muitas vezes se diz no Brasil e em outros lugares que ajuste fiscal é politica ortodoxa. Pode ser, quem quiser use esse adjetivo. Mas é importante que se entenda que a única forma de o Estado nacional ficar independente dos mercados é controlando seu déficit e sua dívida.

Isso é o que diz François Hollande, o candidato socialista a presidência da França, que é chamado de "esquerda mole".

Ah, é? Eu não sabia. Mas é a grande realidade. Se o Estado nacional tiver déficit alto, dívida alta, cai nas mãos dos mercados. É indispensável que o Estado tenha controle de suas contas para ter raio de manobra, para fazer políticas sociais, distributivas, de investimento e desenvolvimento. Se quiserem chamar isso de ortodoxo, chamem, mas o importante é isso. O que não é bom no Brasil é essa combinação de câmbio valorizado e juro alto. Isso deprime a atividade, reduz a competitividade da economia, onera as contas públicas, aumenta o déficit. Se conseguirmos caminhar na direção, como já estamos, de juros mais próximos da média mundial, política fiscal forte, com câmbio um pouco mais depreciado e políticas de defesa comercial e de competitividade internacional, o Brasil pode, sim, continuar crescendo apesar do cenário internacional difícil.

A guerra cambial pode se agravar?

Estamos em plena guerra cambial. Você mora na Suíça, não? Se há seis meses alguém falasse que a Suíça adotaria teto para câmbio com o euro, ninguém acreditaria. Em todos os períodos de grande dificuldade econômica, desemprego alto, a tendência é aumentar a guerra cambial e a comercial. Estamos vivendo os dois fenômenos. Por isso é importante o Brasil ter política cambial competitiva e mecanismos de promoção da competição internacional do país.

O câmbio chegou a R$ 1,95 e voltou a R$ 1,75. É um nível bom?

Não acho que se possa fixar meta para taxa de câmbio. Apenas se você observar o que aconteceu nos anos recentes, o real foi das moedas que mais se valorizou. Isso não foi bom para o Brasil. Só não se valorizou mais porque o Banco Central e o Ministério da Fazenda atuaram várias vezes para conter essa valorização, que mesmo assim continuou. E só agora, com a intensificação da crise na área do euro, houve reversão parcial.

Essa reversão pode continuar?

Se houver uma tranquilização da situação na Europa, com uma cúpula europeia de 23 de outubro e a cúpula do G-20 de Cannes muito bem sucedidas, o cenário mais provável é de volta ao quadro anterior, em que o Brasil vai estar sofrendo de excesso de liquidez. Por quê? Porque todos os principais bancos centrais, inclusive o Banco Central Europeu, estão com políticas monetárias super expansionistas, provendo liquidez abundantemente, com taxas de juros muito baixas, negativas em termos reais. Se a crise aguda for debelada, provavelmente voltará o cenário de o real ser uma moeda atraente. Daí porque é importante uma redução gradativa do juro e manter política fiscal forte.

A Europa mapeou o que fazer para combater sua crise, mas falta decidir. No caso do sistema financeiro, a tendência é de grande contração dos bancos e do crédito?

Pela avaliação que se tem, muitos bancos europeus precisam reforçar seu capital. Se os bancos resolverem responder a essa necessidade vendendo ativos, isso vai provocar contração do crédito e agravar o movimento recessivo que se desenha na Europa. E como a Europa tem importância ainda grande, embora declinante, haverá repercussão internacional. O que se quer é reforçar o capital e não levar os bancos a reduzir ativos. Se vários bancos simultaneamente reduzirem ativos, o efeito será forte.

Que impacto essa situação dos bancos europeus pode ter no Brasil?

Fatalmente, uma crise na Europa tem efeito em partes do mundo, inclusive no Brasil, e no nosso caso o canal é financeiro. O Brasil tem que estar muito atento, e creio que está, para a situação das filiais de bancos estrangeiros no país, inclusive europeus. As autoridades de supervisão bancária têm que acompanhar muito bem esses bancos e acredito que estejam acompanhando com cuidado. Como a situação é muito tensa no mercado bancário internacional, e especialmente na Europa, isso é básico.

A proposta brasileira de reforçar a capacidade financeira do FMI é contestada agora por desenvolvidos. Qual a chance de a proposta decolar em Cannes?

Essa ideia é defensável porque, num momento de crise grave, se os países mostram capacidade de atuação conjunta, é importante e os recursos podem inclusive nunca precisar ser usados. O Brasil passou por muitas crises e uma conclusão que os brasileiros tiraram foi de que numa crise, especialmente financeira, o governo tem que reagir de maneira além do que se espera para conter a crise. Até agora, os europeus têm feito o contrário. É necessário agir rápido. No caso do FMI, existem USS 400 bilhões [para empréstimos], talvez seja suficiente, mas numa situação tão vulnerável seria mais prudente criar uma linha de defesa adicional.

Os recursos adicionais para o FMI seriam da ordem de centenas de bilhões de dólares?

Sim, mas isso tudo tem que ser avaliado. É prematuro falar [em cifras], mas para ter efeito teria de ser um valor expressivo.

Antonio Delfim Netto

Homem e trabalho

Artigo de Antonio Delfim Netto, economista, em artigo publicado no jornal Valor, 18-10-2011.
Fonte: UNISINOS


Uma das construções mais impressionantes de Marx é a sua leitura do papel do trabalho nos "Manuscritos" de 1844, antes dele ter sido seduzido por Ricardo. O trabalho é o processo pelo qual o homem se produz e projeta fora dele as condições de sua existência e a sua capacidade de transformar o mundo.

A organização social em que vivemos é produto de um processo histórico. O homem, ao construir o mundo com seu trabalho, exerce uma pressão seletiva no sentido de aumentar a sua liberdade de expressão, o que exige cada vez maior eficácia produtiva. Há uma evolução simultânea, civilizatória e quase biológica, que amplia o altruísmo e a solidariedade social, exatamente porque a cooperação é mais "produtiva" e libera mais tempo para a expressão criativa do homem.

No atual estágio evolutivo, a sociedade divide-se entre os que têm capital e "empregam" o trabalho em troca de salário, e os que detêm a força de trabalho e só podem utilizá-la "alugando-a" ao capital, em troca de salário. Com as políticas sociais, o Estado do Bem-Estar transformou (transitoriamente!) o sistema salarial alienante de Marx no símbolo da segurança do trabalho. Ele dá, por sua vez, a garantia para o funcionamento das instituições da nossa organização social, particularmente os mercados e a propriedade privada.

Os economistas precisam incorporar, como disse Mauss ("Sociologie et Anthropologie", 1950), que o trabalho é o "fato global". O desemprego involuntário é o impedimento insuperável do cidadão de incorporar-se à sociedade. Por motivos que independem de sua vontade, ele não pode sustentar honestamente a si e à sua família. O desemprego involuntário é o "mal social global"! Não importam as filosofias ou as ideologias. No presente estágio evolutivo da organização social que o homem continua procurando para fazer florescer plenamente a sua humanidade, é a natureza e a qualidade do seu trabalho que o coloca na sua posição social e econômica, que afeta sua situação física e emocional e que determina o nível do seu bem-estar.

É com esse sentido do papel do trabalho, com o qual o homem se constrói e produz um mundo onde tenta acomodar-se numa estrutura social conveniente, que devemos entender os protestos dos "indignados com Wall Street", que se espalham por todo os EUA. Não se trata de "excluídos" sociais (talvez alguns deles o sejam), mas de cidadãos honestos, educados e que até bem pouco tempo tinham a oportunidade de ganhar a sua vida, sustentar a sua família, educar seus filhos, comprar sua casa, realizar, enfim, o "sonho americano", com o qual os EUA venderam o lago azul ao mundo.

É verdade que alguns deles já estão na terceira geração vivendo à custa dos outros, graças à miopia e inércia de um Estado do Bem-Estar distraído, o que faz a força do "Tea Party". Mas é verdade, também, que a renda média do americano não cresce desde 1996 e que a distribuição de renda tem piorado. Nada disso, entretanto, acendeu o fogo. O agente eficiente foi o nível de desemprego de quase 10% por tempo longo e que parece não ter fim. O agente eficiente foi a proteção ao sistema financeiro a cujos responsáveis o governo protegeu de forma abusiva e entregou a execução das hipotecas, à custa de 25 milhões que perderam a âncora social do emprego organizado.

"Ocupar Wall Street" é menos um protesto contra a economia de mercado e seus problemas, do que o profundo sentimento de injustiça social derivado da incapacidade do governo e do Banco Central, que permitiram, sob seus olhos complacentes, a destruição do emprego e do patrimônio de incautos cidadãos, assaltados livremente por um sistema financeiro desinibido com suas "inovações".

O efeito final desse movimento será medido nas eleições de novembro de 2012. A resposta imediata de Washington deve ser pequena a não ser, talvez, acender o espírito de urgência do Executivo e estimular a resistência dos republicanos para continuar a expô-lo como "responsável" pela crise. Mas o desconforto é enorme. O presidente Obama referiu-se a ele ligeira e quase temerosamente. O secretário do Tesouro Geithner empurrou a culpa para o sistema financeiro, que "aumentou as tarifas bancárias em resposta aos novos controles de Wall Street e aumentou a já existente irritação popular contra ele". E o presidente do Fed, Bernanke, com aquela figura de Papai Noel arrependido, limitou-se a afirmar que "as pessoas estão descontentes com o estado da economia. Elas reprovam - e não sem razão - o setor financeiro pela situação em que nos encontramos e estão descontentes com a resposta das autoridades". Que autoridades? Obama, Geithner e Bernanke!

Quando se trata de entender o verdadeiro papel do trabalho, os economistas do "mainstream" saem mal na foto: tratam-no como um "fator de produção", sujeito às leis da oferta e da procura. Por definição não há desemprego "involuntário". Como disse um economista que viria a ser nobelista, o desemprego em massa é apenas manifestação de "vagabundagem da classe trabalhadora".

Na mais recente versão do "The Palgrave Dictionary on Economics" (2008), não há uma entrada para "trabalho". Ela é dissolvida e desidratada em "disciplina do trabalho" e "economia do trabalho", com ênfase no "capital humano". Trata-se do mesmo artigo da 1ª edição (1987), ao qual se acrescentou o apêndice "As Novas Perspectivas da Economia do Trabalho". Tudo muito pobre, técnico, abstrato e sem história, como se a economia de mercado - codinome do atual capitalismo - estivesse escrito no Big-Bang e destinada a nos acompanhar até o fim dos tempos...

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Valéria Silva

As juventudes, o #contraoaumento e a política dos novos tempos






Valéria Silva é Doutora em Sociologia Política. Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia-PPGAArq-UFPI. Membro do Núcleo de Pesquisa sobre Crianças, Adolescentes e Jovens-NUPEC-UFPI.



Teresina experimenta um momento ímpar, porém, já vivido por outras capitais brasileiras. As manifestações juvenis contra o aumento da passagem do ônibus dos últimos dias têm-se constituído num cenário político particular da vida da cidade, conferindo-lhe rotinas e dinâmicas inéditas. O movimento só encontra similares nos idos dos anos 80 quando os estudantes ocuparam quase as mesmas ruas e praças denunciando a opressão do regime militar.

O movimento pelo transporte poderia ser analisado por vários ângulos, posto que pleno de sentidos sociais, políticos, culturais, econômicos. Aqui priorizo olhá-lo pelo enfoque político,dimensão através da qual os atores implicados mais fortemente se puseram em cena, dando corpo à disputa de interesses variados.

Primeiramente, entendo que as manifestações ocorridas, embora com existência própria e marcadas por especificidades, não podem ser vistas apartadas do Movimento Passe Livre-MPL, há algum tempo, campo de militância de alguns segmentos estudantis do Brasil. Vejo estreita correspondência entre a cultura política consolidada nas manifestações do MPL de Salvador, de Florianópolis e outras capitais e os contornos obtidos pelo #Contraoaumento de Teresina. Existe um nexo, um fio que articula a luta dos jovens e penso, inclusive, que é desse ponto de vista que deve ser olhado, por exemplo, o significado político maior da demanda básica da luta posta na rua: a redução do preço da passagem do ônibus.

Demandar o direito de não pagar a passagem - ou de ter o seu preço estabelecido em patamares toleráveis - remete-nos imediatamente a um direito civil básico do pacto social estabelecido numa democracia, que é o direito de ir e vir. Nossa Constituição Federal consagra como livre o direito de locomoção. Sabemos, por outro lado, que na realidade das grandes cidades, das sociedades complexas a operacionalização desse direito implica em que uma série de condicionantes seja atendida, tais como a indispensável disponibilidade de meios para torná-la possível quando a locomoção situa-se para além da capacidade física de cada um. Desse modo,questionar o preço da passagem é, antes, questionar até que ponto a fruição deste direito se mostra real, factível nos termos vivenciados em nossa sociedade; é questionar a existência concreta da suposta liberdade de ir e vir.

Um segundo desdobramento diz respeito aos principais atores da reivindicação, os estudantes. O movimento parece deixar entender que as juventudes estudantis, tomadas pela sociedade como responsáveis pela continuidade social, demandam nas ruas que o alto custo do preparo dessas novas gerações deixe de ser administrado individualizada e arduamente pelas famílias. Que a tarefa passe a ser também do Estado, responsável pela gestão dos bens e serviços financiados publicamente, e de alguns setores da sociedade, os quais acessam as maiores parcelas da riqueza social, no caso, o empresariado do setor. O corolário da atitude é a desconstrução do entendimento naturalizado de que a formação daqueles que nos substituirão coletivamente é de responsabilidade exclusiva do núcleo familiar.

Na luta empreendida, os jovens apontam modelos de política que viessem a atender suas necessidades atuais: negam para si a assunção do ônus do transporte por se reconhecerem sujeitos de direito quanto à proteção que o Estado brasileiro os promete em discursos e textos legais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA. Recusam as saídas paliativas para a problemática vivenciada, como as políticas públicas compensatórias, como o bolsa-família, ou repressoras, como as tais medidas sócio-educativas. Reivindicam mais a liberdade de trânsito na cidade do que as condições para pagarem o cobrado pelo empresariado, mais a oportunidade de freqüentar a escola de qualidade do que vagas em empregos/trabalhos precoces, precarizados e vazios de sentido.

As juventudes parecem cobrar das instituições o cumprimento cabal de suas responsabilidades, aclarando os campos de luta e rompendo, nesse sentido, a perspectiva de adequação à política hegemônica de Estado. Desse modo, assumem-se como pessoas em formação e afirmam, na participação política de resistência, a condição de sujeitos dos seus próprios destinos.

Por outro lado, os jovens passaram a colocar sob suas miras o capital. A cobrança direta que fazem dos setores privados introduz aos levantes uma característica nova em relação aos movimentos sociais juvenis de décadas atrás, os quais focavam apenas o Estado como interlocutor e adversário político. Adotar, numa luta concreta, o capital como adversário direto coloca o movimento pelo transporte em aproximação com os movimentos juvenis mundiais contemporâneos,os quais – organizados sob as mais diferentes maneiras – se insurgem contra outras expressões do capital, presentes nesse novo mundo que povoamos. O enfrentamento de questões relativas à exclusão social, tão crônicas e triviais para nós, no Brasil e no Piauí, se expressa nas ruas a partir de uma nova leitura, extensiva ao coletivo local e estimulada pelos movimentos mundiais e nacionais de resistência ao capital sem pátria e igualmente virulento.

Até onde consigo ver, os agentes privados têm decodificado perfeitamente o sentido das lutas e têm organizado sua reação à altura do risco urdido pela audácia juvenil. Só por essa razão poderemos compreender a força repressiva que se alastra sobre os jovens de Teresina e do Brasil afora. É a defesa intransigente de um território comum e “intocável”, onde estão blindados políticos e seus interesses eleitorais x empresários beneficiários de gestões apartadas dos interesses sociais básicos, ambos orquestrando a manutenção do establishment.

As juventudes na rua operam uma síntese potente entre o novo e o velho, ao tempo em que desenham um presente/futuro onde nos substituem/substituirão confiantemente. Para quem acreditava que os jovens estavam “mortos” fica a reflexão: novos tempos, novos sujeitos, novas lutas.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Marcelo Justo

Quem são as “bestas selvagens” inglesas?

Com mais 2.300 prisões e mais de 1.200 processados por roubo ou violência, o desfile pelos tribunais não mostrou nenhuma “besta selvagem”. Ao invés disso, o perfil dos acusados surpreendeu os britânicos que tiveram que enterrar a primeira caracterização simplista – negros, afrocaribenhos, pobres e excluídos. Designers gráficos, estudantes universitários, professores, adolescentes, púberes, desempregados, marginais, um aspirante a entrar no exército, uma modelo: a variedade desafia qualquer estereótipo. O artigo é de Marcelo Justo, correspondente da Carta Maior em Londres.
Fonte: Carta Maior



“Indignados” não são. Nenhum discurso articula o protesto, não existe uma lista mínima de demandas como ocorreu com as manifestações dos estudantes ingleses contra a triplicação do valor das matrículas universitárias no ano passado. Os distúrbios em Londres e outras cidades inglesas se parecem mais com os de Paris em 2005, ou os de Los Angeles em 1992. O primeiro ministro David Cameron e a poderosa imprensa conservadora não querem entrar em complexas reflexões sociológicas. “O que ocorreu é extremamente simples. Trata-se de pura delinquência”, disse Cameron no debate parlamentar convocado em caráter de emergência. O autor de vários livros de história militar, entre eles “A batalha das Malvinas”, Max Hastings, foi mais longe: “São bestas selvagens.

Comportam-se como tais. Não têm a disciplina que se necessita para ter um emprego, nem a consciência moral para distinguir entre o bem e o mal”, escreveu no Daily Mail.

Com mais 2.300 prisões e mais de 1.200 processados por roubo ou violência, o desfile pelas cortes não permitiu ver nenhuma “besta selvagem”. Ao invés disso, o perfil dos acusados surpreendeu os britânicos que tiveram que enterrar a primeira caracterização simplista – negros, afrocaribenhos, pobres e excluídos – para começar a entender um fenômeno complexo. Designers gráficos, estudantes universitários, professores, adolescentes, púberes, desempregados, marginais, um aspirante a entrar no exército, uma modelo: a variedade era de um tamanho suficiente para desafiar qualquer estereótipo. Cerca de 80% dos que desfilaram pelos tribunais têm menos de 25 anos. A metade dos processados são menores de 18: muito poucos superam os 30 anos.

O apelido de “besta selvagem” tem uma arrogância de classe que não deveria ocultar seu principal objetivo: despojar os distúrbios de qualquer significado. A milhões de anos luz desta perspectiva, Martins Luther King dizia que “os distúrbios são a linguagem dos que não têm voz”. Na Inglaterra, o problema é que esta linguagem foi, em vários momentos, um balbucio ininteligível.

Macbeth na encruzilhada

O conflito começou com os protestos pela morte de Mark Duggan, no bairro de Tottenham, baleado pela polícia que, aparentemente, foi rápida demais no gatilho. Em um primeiro momento era um protesto político local marcado pela tensão étnica em um bairro pobre: o primeiro objeto de ataque foram dois carros de patrulha da polícia queimados pelos manifestantes. Este pontapé inicial converteu-se rapidamente em quatro noites de saques de grandes lojas, roubo indiscriminado de comércios de bairro e indivíduos e enfrentamentos com a polícia em bairros pobres de Londres e da maioria das grandes cidades da Inglaterra.

Mas além de expressar uma exuberância dionisíaca, destrutiva e raivosa, que sentido pode ter o incêndio de uma pequena loja familiar de móveis no sul de Londres que havia sobrevivido a duas guerras mundiais? Como explicar que dois tipos com aspecto de hooligans simularam ajudar um jovem ferido para roubar-lhe o que ainda não tinham lhe roubado, como ocorreu com o estudante malaio Ashrag Haziq? Os distúrbios foram então “um relato contato por um idiota cheio de som e fúria que não significa nada”, como na famosa definição que Shakespeare faz da vida em Macbeth?

Nos distúrbios houve de tudo. A presença de bandos de jovens e o roubo meramente oportunista estiveram tão na ordem do dia como o uso de torpedos via celular para coordenar os ataques em lojas e bairros. Em uma sociedade onde o dinheiro se converteu em valor absoluto, a identidade parece definir-se, para muita gente, pela posse de tênis de marca ou do modelo de celular mais recente, ao qual essas pessoas não tem acesso porque vivem mergulhados na pobreza. Se a oportunidade aparece, por que não? Isso é o que fazem os banqueiros, os políticos, as grandes fortunas.

O atual ministro da Educação, Michael Gove, disparou indignado contra “uma cultura da cobiça, da gratificação instantânea, do hedonismo e da violência amoral”. O mesmo Gove gastou em 2006, 10 mil dólares para sua casa e passou a conta para a Câmara dos Comuns como parte de sua “dieta” parlamentar. Entre os objetos adquiridos, havia uma mesa que custou mais de 1.000 dólares, um móvel Manchu por 700 dólares e um abajur de 250 dólares.

Pobreza e gangues

Um dos casos que contribuíram para romper o estereótipo foi o de Alexis Bailey, um professor de escola primária de 31 anos, muito respeitado em seu trabalho, preso em uma loja da Hi-fi em Croydon, sul de Londres. Bailey ganha 1.000 libras em mês (cerca de 1.600 dólares) e paga de aluguel mais da metade disso: 550 libras (uns 900 dólares). No caso de Bailey, como no de Trisha, graduada em Psicologia Infantil que acaba de perder seu trabalho, percebe-se o núcleo de uma narrativa distinta da “mera delinquência” de “bestas selvagens”. “Ainda estou pagando o empréstimo que recebi para estudar. Cameron não faz nada. Não tem ideia do que é ser jovem. Dizem que nos aproveitamos dos benefícios. Mas queremos trabalho”, disse Trisha ao The Guardian.

Estes germens de discurso apareceram várias vezes. Na voz de uma mãe em um supermercado (“não tem nada, o que vão fazer?”), na de um jovem desempregado (“é preciso se rebelar”). As gangues juvenis são a expressão final e niilista deste fenômeno de não pertencimento social e de falta de perspectiva de vida. “As gangues oferecem uma relação de pertencimento a uma estrutura, uma disciplina, um respeito que os jovens não encontram em nenhum outro lado”, escreve Ann Sieghart no The Independent.

Esta semana, em um primeiro distanciamento de sua própria caracterização dos distúrbios, David Cameron lançou uma revisão de toda a política governamental para “recompor uma sociedade exausta”, evitar uma “lenta desintegração moral” e “solucionar problemas sociais que cresceram durante muito tempo”. É um começo. O que está claro é que as prisões, que em sua maioria já estão superpovoadas, não resolvem o problema de fundo: em alguns meses os mesmos jovens sairão para as ruas. A grande questão é se uma coalizão como a conservadora-liberal democrata, que fez do ajuste fiscal uma religião, pode levar adiante uma política mínima que comece a lidar com um fenômeno que tem complexas raízes econômicas sociais e culturais.

Entrevista - Maria da Conceição Tavares

“Colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: é a treva!”

Por Saul Leblon/Carta Maior.
Fonte: Carta Maior

As manifestações mórbidas de ortodoxia fiscal nos EUA e, antes, o martírio inútil da Grécia, mas também as rebeliões de indignação que tomam as ruas do mundo, em contraste com o alarme sangrento da intolerância neonazista vindo da Noruega, romperam uma blindagem de opacidade e resignação que revestia a crise mundial.

Depois de anos de abordagem asséptica por parte dos governos, e do tratamento complacente e obsequioso desfrutado na mídia, causas e conseqüências da débâcle mais ruidosa do capitalismo desde 1929 adquirem progressiva transparência.

Arcado sob um vácuo de liderança assustador, os EUA de Obama e do Tea Party, mas também a Europa da rendição socialdemocrata, expõem a dimensão política da crise, que realimenta seu impasse econômico.

Nos confrontos de rua entre uma população desesperada e um poder político de representatividade dissolvente, desnuda-se a brutal incompatibilidade entre os mercados financeiros desregulados e os valores da democracia. Na ascendência do Tea Party, pautando um arrocho ortodoxo que joga o planeta às portas de uma Depressão, desaba a confiabilidade na democracia norte-americana que se transforma em fator de insegurança mundial.

A conversa fiada dos centuriões midiáticos que durante o ciclo neoliberal venderam o peixe podre, segundo o qual, democracia e laissez-faire selvagem são personas indissociáveis do capitalismo desregulado, derreteu. Da poça de desilusão escorre um veio de discernimento que se espalha aos poucos pelas praças do mundo: a crise só será efetivamente superada com uma democracia reinventada pela participação popular.

O movimento não se completa, todavia, apesar da truculência incomum, porque a explosão carece, ainda, daqueles atores dos quais se espera , historicamente, a expressão organizada e programática do conflito social: os partidos políticos, mais especificamente, as legendas alinhadas ao campo da esquerda.

Tal vazio afirma a natureza verdadeiramente sistêmica da atual crise, cujo atributo não se restringe ao colapso do corpo econômico de uma época. A crise paradoxalmente trouxe a política de volta porque nenhuma solução de mercado resolverá os impasses causados por ele e por seus mitos.

Essa singularidade não passa desapercebida pelos que se debruçam, como sempre se debruçaram, na análise das crises e impasses do sistema capitalista em busca de respostas progressistas para o presente e o futuro do desenvolvimento brasileiro. Entre as mais importantes contribuições desse indispensável engajamento intelectual está a voz da professora Maria da Conceição Tavares.

Em março deste ano, quando Obama se preparava para aterrissar no Brasil, em meio a confetes e serpentinas de uma mídia obsequiosa, a narrativa dominante saltitava ao som de um novo samba enredo. Um esforço coreográfico enorme procurava convencer o distinto público sobre a veracidade de algumas fantasias e adereços. A saber: a viagem era um ponto de ruptura entre a ‘política externa de esquerda’ do Itamaraty – leia-se de Lula , Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães – e o suposto empenho da Presidenta Dilma em uma reaproximação ‘estratégica’ com o aliado do Norte; a visita selaria um a nova agenda, ‘uma reconciliação’ entre Brasília e Washington ancorada em concessões e acordos expressivos; Obama seria o paradigma de uma modernidade a ser seguida por Dilma, distinta do ‘populismo’ político e econômico da ‘escumalha’ latinoamericana – ele usa twitter, é cool, não gosta de Lula, nem de Chávez.

Em entrevista à Carta Maior algumas horas antes daquela prometida apoteose que, como é sabido, redundou em fiasco, a professora Maria da Conceição Tavares aspergiu certeiras bisnagas de realismo sobre o entrudo inebriado.

Carta Maior voltou a conversar agora com a economista a quem todos ligam quando o mundo despenca e é preciso saber para que lado ir. E é isso que o mundo está fazendo há dias, metafórica e financeiramente: despencando.

A extrema direita republicana pautou Obama, como Conceição havia antevisto; asfixiou a política fiscal da maior economia do planeta. O anúncio de cortes de gastos públicos da ordem de US$ 2,4 trilhões de dólares sobre um metabolismo econômico combalido, equivale a ordenar aos mercados que imitem o Barão de Munchausen e se ergam pelos próprios cabelos. O Barão de Munchausen era um contador de lorotas. Só a convicção colegial desastrosa do Tea Party no laissez-faire - cujo equivalente nativo é a mídia e seus consultores - pode inspirar-se nas metáforas capilares do velho Barão para pautar os destinos da economia e da sociedade.

Os mercados sabem que a coisa não funciona assim. Investidores e especuladores urbi et orbi farejaram o desastre e se anteciparam fugindo em massa de ações e títulos, candidatos a perder o valor de face na recessão em curso.

Antes de atender Carta Maior, a professora Maria da Conceição já havia recebido telefonemas de Brasília, com a mesma inquieatação: ‘E agora?’.

A decana dos economistas brasileiros entende de crise. Ela nasceu em abril de 1930, poucos meses depois da 5º feira negra de outubro de 1929, quando as bolsas reduziram todo um ciclo a riqueza especulativa a pó e pânico. Em questão de horas. A professora de reconhecida bagagem intelectual, respeitada mesmo pelos que divergem de seus pontos de vista, normalmente prefere não avançar na reflexão política e ideológica.

A seguir, trechos da conversa de Maria da Conceição Tavares (foto) com Carta Maior:

Carta Maior - No caso do Brasil, no que esta crise difere da de 2008 que superamos rapidamente? Dá para usar a mesma receita de então?

Maria da Conceição Tavares— “É muito difícil (suspira). Primeiro, pela natureza arrastada, enrustida desse longo crepúsculo. Você fica a tomar medidas pontuais. Tenta mitigar a questão do câmbio para evitar a concorrência predatória das importações. Mas tem efeito limitado. Voce aperta os controles aqui, mas o dólar está derretendo lá fora. Está derretendo sob o peso da recessão e do imobilismo político de quem deveria tomar as rédeas da situação. O Brasil não tem como impedir que o dólar derreta no sistema financeiro mundial.

CM—Isso foi diferente em 2008...

MCT—Em 2008 nós tivemos um efeito oposto; capitais em fuga migraram de várias partes do mundo, de filiais de bancos e multinacionais, para socorrer a quebra das matrizes na Europa e nos EUA. Então o que houve ali foi uma desvalorização cambial; o Real ficou mais fraco. Isso facilitou as coisas pelo lado das exportações e da contenção de importações, ainda que quase tenha levado à breca aqueles que especulavam contra a moeda brasileira, fazendo hedge fictício para ganhar na desvalorização. Mas do ponto de vista macroeconômico foi um quadro mais favorável. Hoje é o inverso.

CM - As reservas atuais, da ordem de US$ 340 bilhões são um alento?

MCT—Também há diferenças desfavoráveis nas contas externas. As reservas hoje são basicamente formadas pela conta de capitais; não tanto pelo superávit comercial, como era então. Significa que hoje são a contrapartida de algo fluido, capitais que não sabemos exatamente se representam investimento produtivo, de mais longo curso, ou especulação capaz de escapar abruptamente. Sobretudo, tenho receio porque uma parte considerável desse ingresso é dívida privada. Com a anomalia dos juros, os maiores do mundo – a nossa herança maldita - e a oferta barata e abundante de dinheiro lá fora, nossas empresas se endividaram a rodo. Se houver uma reversão do ciclo, se o dólar se valorizar, o descasamento entre um passivo em dólar e receitas em reais, no caso de quem não exporta, ou exporta pouco, será traumático. Essa contabilidade hoje por certo é mais grave do que o passivo em hedge que quase quebrou grandes grupos brasileiros em 2008.

CM - Então a margem de manobra do governo Dilma é menor?

MCT - (suspira) Estávamos melhor antes. E muito do que fizemos então não dá para fazer agora...

CM—Mas o governo pode...

MCT— O governo Dilma poderá agir de forma distinta e contundente se a crise virar o Rubicão; aí tudo é lícito e possível.

CM - Por exemplo?

MCT - Por exemplo centralizar o câmbio; controlar importações, remessas etc.

CM— E enquanto isso não ocorre?

MCT - Mas enquanto se arrasta assim, uma crise enrustida, que vai minando, desagregando, sem ser confrontada, fica difícil. Você toma medidas pontuais que se dissolvem.

CM - Há uma superposição de colapso do neoliberalismo com esfarelamento político que realimenta e reproduz o processo?

MCT - Veja, é um colapso empírico da agenda do neoliberalismo. Avulta que a coisa é um desastre e os meus colegas economistas dessa cepa, espero, devem estar conscientes disso. Mas que poder tem os economistas? Nenhum. O poder que conta está nas em outras mãos, a dos responsáveis pela crise. Vivemos um colapso neoliberal sob o tacão dos ultra-neoliberais. Não estamos falando de gente normal, é preciso entender isso. Não são neoliberais comuns. Meu Deus, o que é isso que estão fazendo nos EUA? É a treva! Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva! E ela se espalha desagregando, corroendo.

CM—Devemos nos preparar para uma crise longa?

MCT—Sem dúvida. Por conta dessa dimensão autofágica que não enseja um desdobramento político à altura, que inaugure um novo ciclo, como foi com Roosevelt e o New Deal em 29.

CM—As bases sociais do New Deal não existem mais nos EUA?

MCT - Não existem mais. Obama é o reflexo disso. É uma liderança intrinsecamente frouxa. Não tem a impulsão trabalhista e progressista que sustentou o New Deal. É frouxo. Seu eleitorado é difuso ah, ótimo, ele se comunica com os eleitores pelo twitter, etc. E aí? É uma força difusa, desorganizada, estruturalmente à margem do poder. Está fora do poder efetivo no Congresso que é da direita, dos ricos, dos grandes bancos e grandes corporações, como vimos agora no desenho do pacote fiscal. Está fora da indústria também que foi para a China. Esse limbo estrutural é o Obama. Ele pode até ser reeleito, tomara que seja. A alternativa é amedrontadora. Mas isso não mudará a sua natureza frouxa.

CM— Se não existe o componente político que assemelhe essa crise a de 1929, então o que é isso, essa’ treva’ que estamos vivendo?

MCT— (ri) Uma treva é uma treva... O que passamos agora é distinto de tudo o que se viu em 29...Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, como eu disse. Arrastado, latejante, sob o tacão de forças como essas dos ultra-neoliberais. Tampouco é um fascismo explícito, porém, como se viu na Europa, em 30. Até porque o nazismo, por exemplo, e isso não abona em nada aquela catástrofe genocida, postulava o crescimento com forte indução estatal. O que se tem hoje é o horror; um vazio político de onde emergem essas criaturas dos EUA, e coisas assemelhadas na Europa. Será uma crise longa, penosa, desagragdora, mais próxima da Depressão do final do século XIX...

CM- O declínio de um império, como foi o declínio do poder da Inglaterra no final século XIX?

MCT—Sim, é um quadro mais próximo daquele. O poder inglês foi sendo contrastado por nações com industrialização mais moderna. Um arranjo com estrutura de integração superior entre a indústria e o capital financeiro e que aos poucos ultrapassaria a hegemonia inglesa. Foi uma quebra, uma inflexão entre o capitalismo concorrencial e o capitalismo monopolista. A Inglaterra que havia sido a ‘fábrica do mundo’ perdeu o posto para o agigantamento fabril americano e alemão. Isso se arrastou por décadas. Foi uma Depressão, a primeira Depressão que tivemos no capitalismo (durou de 1873 a 1918). Levou à Primeira Guerra, que resultou na Segunda...

CM—Os EUA são a Inglaterra da nossa longa crise... E o novo hegemon?

MCT - As forças que se articularam na sociedade norte-americana, basicamente forças conservadoras, de um reacionarismo profundo, não em condições de produzir uma nova hegemonia propositiva. Claro, eles tem as armas de guerra. Não é pouco, como temos visto. Vão se impor assim por mais tempo. Mas daí não sai um novo hegemon. Vamos caminhar para um poder multilateral, negociado, sujeito a contrapesos que nos livrarão de coisas desse tipo, como a ascendência do Tea Party nos EUA. Uma minoria que irradia a treva para o mundo.

Noam Chosmky

Os Estados Unidos em decadência



Artigo de Noam Chomsky (foto), professor emérito de lingüística e filosofía do Instituto Tecnológico de Massachusetts. Seu livro mais recente é 9-11: Tenth Anniversary. Tradução: Katarina Peixoto.
Fonte: Carta Maior





É um tema comum que os Estados Unidos, que há apenas alguns anos era visto como um colosso que percorreria o mundo com um poder sem paralelo e um atrativo sem igual (...) estão em decadência, enfrentando atualmente a perspectiva de uma deterioração definitiva, assinala Giacomo Chiozza, no número atual de Political Science Quaterly.

A crença neste tema, efetivamente, está muito difundida. Em com certa razão, se bem que seja o caso de fazer algumas precisões. Para começar, a decadência tem sido constante desde o ponto culminante do poderio dos EUA, logo após a Segunda Guerra Mundial, e o notável triunfalismo dos anos 90; depois da Guerra do Golfo, foi basicamente um autoengano.

Outro tema comum, ao menos entre aqueles que não ficaram cegos deliberadamente, é que a decadência dos EUA, em grande medida, é auto-inflingida. A ópera bufa que vimos este verão em Washington, que desgostou o país e deixou o mundo perplexo, pode não ter comparação nos anais da democracia parlamentar. O espetáculo inclusive está chegando a assustar aos patrocinadores desta paródia. Agora, preocupa ao poder corporativo que os extremistas que ajudou a por no Congresso de fato derrubem o edifício do qual depende sua própria riqueza e seus privilégios, o poderoso estado-babá que atende a seus interesses.

A supremacia do poder corporativo sobre a política e a sociedade – basicamente financeira – chegou ao grau de que as formações políticas, que nesta etapa apenas se parecem com os partidos tradicionais, estão muito mais à direita da população nos principais temas em debate.

Para o povo, a principal preocupação interna é o desemprego. Nas circunstâncias atuais, esta crise pode ser superada só mediante um significativo estímulo do governo, muito mais além do que foi o mais recente, que apenas fez coincidir a deterioração no gasto estatal e local, ainda que essa iniciativa tão limitada provavelmente tenha salvado milhões de empregos.

Mas, para as instituições financeiras, a principal preocupação é o déficit. Assim, só o déficit está em discussão. Uma grande maioria da população está a favor de abordar o problema do déficit taxando os muito ricos (72%, com 27% contra), segundo uma pesquisa do The Washington Post e da ABC News. Fazer cortes nos programas de atenção médica conta com a oposição de uma esmagadora maioria (69% no caso do Medicaid, 78% no caso do Medicare). O resultado provável, porém, é o oposto.

O Programa sobre Atitudes de Política Internacional (PIPA) investigou como a população eliminaria o déficit. Steven Kull, diretor do PIPA, afirma: É evidente que, tanto o governo como a Câmara (de Representantes) dirigida pelos republicanos, estão fora de sintonia com os valores e as prioridades da população no que diz respeito ao orçamento.

A pesquisa ilustra a profunda divisão: a maior diferença no gasto é que o povo apoia cortes profundos no gasto militar, enquanto que o governo e a Câmara de Representantes propõem aumentos modestos. O povo também defende aumentar o gasto na capacitação para o trabalho, na educação e no combate à poluição em maior medida que o governo ou a Câmara.

O acordo final – ou, mais precisamente, a capitulação ante à extrema direita – é o oposto em todos os sentidos, e quase com toda certeza provocará um crescimento mais lento e danos de longo prazo para todos, menos para os ricos e as corporações, que gozam de benefícios sem precedentes.

Nem sequer se discutiu que o déficit poderia ser eliminado se, como demonstrou o economista Dean Baker, se substituísse o sistema disfuncional de atenção médica privada dos EUA por um semelhante ao de outras sociedades industrializadas, que tem a metade do custo per capita e obtém resultados médicos equivalentes ou melhores.

As instituições financeiras e as grandes companhias farmacêuticas são demasiado poderosas para que sequer se analisem tais opções, ainda que a ideia dificilmente pareça utópica. Fora da agenda por razões similares também se encontram outras opções economicamente sensatas, como a do imposto às pequenas transações financeiras.

Entretanto, Wall Street recebe regularmente generosos presentes. O Comitê de Atribuições da Câmara de Representantes cortou o orçamento da Comissão de Títulos e Bolsa, a principal barreira contra a fraude financeira. E é pouco provável que sobreviva intacta a Agência de Proteção ao Consumidor.

O Congresso brande outras armas em sua batalha contra as gerações futuras. Apoiada pela oposição republicana à proteção ambiental, a importante companhia de eletricidade American Eletric Power arquivou o principal esforço do país para captar o dióxido de carbono de uma planta atualmente impulsionada por carvão, o que significou um forte golpe às campanhas para reduzir as emissões causadoras do aquecimento global, informou o The New York Times.

Esses golpes auto-aplicados, ainda que sejam cada vez mais potentes, não são uma inovação recente. Datam dos anos 70, quando a política econômica nacional sofreu importantes transformações, que puseram fim ao que se costuma chamar de “época de ouro” do capitalismo de Estado.

Dois importantes elementos desse processo foram a financeirização (o deslocamento das preferências de investimento, da produção industrial para as finanças, os seguros e os bens imobiliários) e a externalização da produção. O triunfo ideológico das doutrinas de livre mercado, muito seletivo como sempre, desferiu mais alguns golpes, que se traduziram em desregulação, regras de administração corporativa que condicionavam as enormes recompensas aos diretores gerais com os benefícios de curto prazo e outras decisões políticas similares.

A concentração resultante da riqueza produz maior poder político, acelerando um círculo vicioso que aportou uma riqueza extraordinária para 1% da população, basicamente diretores gerais de grandes corporações, gerentes de fundos de garantia e similares, enquanto que a maioria das receitas reais praticamente estancou.

Ao mesmo tempo, o custo das eleições disparou para as nuvens, fazendo com que os dois partidos tivessem que escavar mais fundo os bolsos das corporações. O que restava de democracia política foi solapado ainda mais quando ambos partidos recorreram ao leilão de postos diretivos no Congresso, como apontou o economista Thomas Ferguson, no The Financial Times.

Os principais partidos políticos adotaram uma prática das grandes empresas varejistas, como Walmart, Best Buy e Target, escreve Ferguson. Caso único nas legislaturas do mundo desenvolvido, os partidos estadunidenses no Congresso colocam preço em postos chave no processo legislativo. Os legisladores que conseguem mais fundos ao partido são os que indicam os nomes para esses postos.

O resultado, segundo Ferguson, é que os debates se baseiam fortemente na repetição interminável de um punhado de consignas, aprovadas pelos blocos de investidores e grupos de interesse nacionais, dos quais depende a obtenção de recursos. E o país que se dane.

Antes do crack de 2007, do qual foram responsáveis em grande medida, as instituições financeiras posteriores à época de ouro tinham obtido um surpreendente poder econômico, multiplicando por mais de três sua participação nos lucros corporativos. Depois do crack, numerosos economistas começaram a investigar sua função em termos puramente econômicos. Robert Solow, prêmio Nobel de Economia, concluiu que seu efeito poderia ser negativo. Seu êxito aporta muito pouco ou nada à eficiência da economia real, enquanto seus desastres transferem a riqueza dos contribuintes ricos para o setor financeiro.

Ao triturar os restos da democracia política, as instituições financeiras estão lançando as bases para fazer avançar ainda mais este processo letal...enquanto suas vítimas parecem dispostas a sofrer em silêncio.

Projeto Excelências


Clique na imagem e leia as crônicas do professor Fonseca Neto no portal Acessepiauí

Este é um espaço para crítica social, destinado a contribuir para a transformação do Estado do Piauí (Brasil).

Livro

Livro
A autora, Grace Olsson, colheu dados e fotos sobre a situação das crianças refugiadas na África. Os recursos obtidos com a venda do livro possibilitará a continuação do trabalho da Grace com crianças africanas. Mais informações pelo e-mail: graceolsson@editoranovitas.com.br

Frei Tito memorial on-line

Frei Tito memorial on-line
O Memorial Virtual Frei Tito é um espaço dedicado a um dos maiores símbolos da luta pelos direitos humanos e pela democracia na América Latina e Caribe. Cearense, filho, irmão, frade, ativista, preso político, torturado, exilado, mártir... Conhecer a história de Frei Tito é fundamental para entender as lutas políticas e sociais travadas nos últimos 40 anos contra a tirania de regimes ditatoriais. Neste hotsite colocamos à disposição documentos, fotos, testemunhos, textos e outras informações sobre a vida de Tito de Alencar Lima, frade dominicano que colaborou com a luta armada durante a ditadura militar no Brasil.

Campanha Nacional de Solidariedade às Bibliotecas do MST

Campanha Nacional de Solidariedade às Bibliotecas do MST
Os trabalhadores e trabalhadoras rurais de diversos Estados do Brasil ocupam mais um latifúndio: o do conhecimento. Dar continuidade às conquistas no campo da educação é o objetivo da Campanha Nacional de Solidariedade às Bibliotecas do MST, que pretende recolher livros para as bibliotecas dos Centros de Formação. Veja como participar clicando na figura.

Fórum Social Mundial

Fórum Social Mundial
O Fórum Social Mundial (FSM) é um espaço aberto de encontro – plural, diversificado, não-governamental e não-partidário –, que estimula de forma descentralizada o debate, a reflexão, a formulação de propostas, a troca de experiências e a articulação entre organizações e movimentos engajados em ações concretas, do nível local ao internacional, pela construção de um outro mundo, mais solidário, democrático e justo. Em 2009, o Fórum acontecerá entre os dias 27 de janeiro a 1° de fevereiro, em Bélem, Pará. Para saber mais, clicar na figura.

Fórum Mundial de Teologia e Libertação

Fórum Mundial de Teologia e Libertação
É um espaço de encontro para reflexão teológica tendo em vista contribuir para a construção de uma rede mundial de teologias contextuais marcadas por perspectivas de libertação, paz e justiça. O FMTL se reconhece como resultado do movimento ecumênico e do diálogo das diferentes teologias contemporâneas identificadas com processos de transformação da sociedade. Acontecerá entre os dias 21 a 25 de janeiro em Bélem, Pará, e discutirá o tema "Água - Terra - Teologia para outro Mundo possível". Mais informações, clicar na figura.

IBASE

IBASE
O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) foi criado em 1981. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, é um dos fundadores da Instituição que não possui fins lucrativos e nem vinculação religiosa e partidária. Sua missão é de aprofundar a democracia, seguindo os princípios de igualdade, liberdade, participação cidadã, diversidade e solidariedade. Aposta na construção de uma cultura democrática de direitos, no fortalecimento do tecido associativo e no monitoramento e influência sobre políticas públicas. Para entrar no site do Ibase, clicar na figura.

Celso Furtado

Celso Furtado
Foi lançado no circuito comercial o DVD do documentário "O longo amanhecer - cinebiografia de Celso Furtado", de José Mariani. Para saber mais, clicar na figura.

O malabarismo dos camaleões

O malabarismo dos camaleões
Estranha metamorfose: os economistas e jornalistas que defenderam, durante décadas, as supostas qualidades do mercado, agora camuflam suas posições. Ou — pior — viram a casaca e, para não perder terreno, fingem esquecer de tudo o que sempre disseram. Para ler, clicar na figura.

A opção pelo não-mercantil

A opção pelo não-mercantil
A expansão dos serviços públicos gratuitos pode ser uma grande saída, num momento de recessão generalizada e desemprego. Mas para tanto, é preciso vencer preconceitos, rever teorias e demonstrar que a economia não-mercantil não depende da produção capitalista. Para ler, clicar na figura.