sábado, 29 de agosto de 2009

Leonardo Boff

Marina Silva: um novo olhar sobre o Brasil.
Fonte: UNISINOS



Erram os que pensam que a saida da senadora Marina Silva do PT obedeçe a propósitos oportunistas de uma eventual candidatura à Presidência da República. Marina Silva saiu porque possuía um outro olhar sobre o Brasil, sobre o PAC (Programa de Acelaração do Crescimento) do governo que identifica desenvolvimento com crescimento meramente material e com maior capacidade de consumo. O novo olhar, adequado à crescente consciência da humanidade e à altura da crise atual, exige uma equação diferente entre ecologia e economia, uma redefinição de nossa presença no planeta e um cuidado consciente sobre o nosso futuro comum. Para estas coisas a direção atual do PT é cega. Não apenas não vê. É que não tem olhos. O que é pior.

Para aprofundar esta questão, valho-me de uma correspondência com o sociólogo de Juiz de Fora e Belo Horizonte, Pedro Ribeiro de Oliveira, um intelectual dos mais lúcidos que articula a academia com as lutas populares e as Cebs e que acaba de organizar um belo livro sobre “A consciência planetária e a religião”(Paulinas 2009) Escreve ele:

Efetivamente, estamos numa encruzilhada histórica. A candidatura da Marina não faz mais do que deixá-la evidente. O sistema produtivista-consumista de mercado teima em sobreviver, alegando que somente ele é capaz de resolver o problema da fome e da miséria – quando, na verdade, é seu causador. Acontece que ele se impôs desde o século XVI como aquilo que a Humanidade produziu de melhor, ajudado pelo iluminismo e a revolução cultural do século XIX, que nos convenceram a todos da validade de seu dogma fundante: somos vocacionados para o progresso sem fim que a ciência, a técnica e o mercado proporcionam. Essa inércia ideológica que continua movendo o mundo se cruza, hoje, com um outro caminho, que é o da consciência planetária. É ainda uma trilha, mas uma trilha que vai em outra direção”.

Muitos pensadores e analistas descobriram a existência dessa trilha e chamaram a atenção do mundo para a necessidade de mudarmos a direção da nossa caminhada. Trocar o caminho do progresso sem fim, pelo caminho da harmonia planetária”.

Esta inflexão era a voz profética de alguns. Mas agora, ela já não clama mais no deserto e sim diante de um público que aumenta a cada dia. Aquela trilha já não aparece mais apenas como um caminho exclusivo de alguns ecologistas mas como um caminho viável para toda a humanidade. Diante dela, o paradigma do progresso sem fim desnuda sua fragilidade teórica e seu dogma antes inquestionável ameaça ruir. Nesse momento, reunem-se todas as forças para mantê-lo de pé, menos por meio de uma argumentação consistente do que pela repetição de que “não há alternativas” e que qualquer alternativa “é um sonho”.

É aqui que situo a candidatura da Marina. É evidente que o PV é um partido que pode até ter sido fundado com boas intenções mas hoje converteu-se numa legenda de aluguel. Ninguém imagina que a Marina – na hipótese de ganhar a eleição – vá governar com base no PV. Se eventualmente ela vencer, terá que seguir o caminho de outros presidentes sul-americanos eleitos sem base partidária e recorrer aos plebiscitos e referendos populares para quebrar as amarras de um sistema que “primeiro tomou a terra dos índios e depois escreveu o código civil”, como escreveu o argentino Eduardo de la Cerna”.

Mesmo que não ganhe, sua candidatura será um grande momento de conscientização popular sobre o destino do Brasil e do Planeta. Marina Silva dispensará os marqueteiros, e entrarão em campanha os seguidores de Paulo Freire”.

Esta é a diferença da candidatura Marina. Serra, do alto da sua arrogância, estimula a candidatura Marina para derrubar Lula e manter a política de crescimento e concentração de riqueza. Lula, por sua vez, levanta a bandeira da união da esquerda contra Serra, mas também para manter a política de crescimento e de concentração da riqueza, embora mitigada pelas políticas sociais”.

Marina representa outro paradigma. Não mais a má utopia do progresso sem fim, mas a boa utopia da harmonia planetária. A nossa visão não é restrita a 2010-2014. Estamos mirando a grande crise de 2035 e buscando evitá-la enquanto é tempo ou, na pior das hipóteses, buscar alternativas ao seu enfrentamento. É por isso, por amor a nossos filhos, netos e netas, temos que dar força à candidatura da Marina. E que Paulo Freire nos ajude a fazer dessa campanha eleitoral uma campanha de educação popular de massas”.

Digo eu com Victor Hugo:”Não há nada de mais poderoso no mundo do que uma idéia cujo tempo já chegou”.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

José Castello

Sob o poder de um novo deus

O mercado é o deus do mundo pós-moderno, diz o filósofo francês Dany-Robert Dufour. Não, ele não usa uma metáfora, mas faz uma afirmação literal. "É preciso não esquecer que o mercado não é uma invenção dos mercadores, mas de teólogos", afirma. "O que era justamente o caso de Adam Smith, como hoje se sabe." A reportagem é de José Castello e publicada pelo jornal Valor, 14-08-2009.
Fonte: UNISINOS


O economista e filósofo escocês Adam Smith (1723-1790) foi o primeiro a falar a respeito de uma "mão invisível" que levaria o mercador ou negociante a, mesmo sem decidir isso, "fazer o bem". Afirma Dufour: "A expressão que emprego - o divino mercado - não é uma metáfora, ela deve ser entendida literalmente: está postulado que existe uma religião natural". De acordo com ela, não é preciso ceder à santidade; basta deixar agir o interesse privado.

"O Divino Mercado" é justamente o título do mais recente livro de Dany Dufour (Companhia de Freud, tradução de Procópio Abreu). Nesse novo ensaio, Dufour, que é professor de Ciências da Educação na Universidade Paris VIII e diretor de programa no Colégio Internacional de Filosofia, desenvolve algumas das teses já tratadas em "A Arte de Reduzir as Cabeças", estudo sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal (Companhia de Freud, 2005, tradução de Sandra Regina Felgueiras). Como pano de fundo dos dois livros, os efeitos da grave crise econômica que sacode o planeta.

Por que um filósofo se interessa pelo estudo da sociedade ultraliberal contemporânea? O motivo é simples: no seu entender, o salto do liberalismo clássico para a sociedade ultraliberal produziu, além de mudanças radicais na realidade econômica e social, uma drástica alteração na noção de sujeito. Ela mudou os parâmetros a partir dos quais o sujeito se constitui.

"As mudanças na economia mercantil não são tão inócuas para a economia psíquica", diz Dufour. Mudou a economia, mudou o sujeito que nela se movimenta. O antigo sujeito que chegava aos consultórios de psicanálise era, em geral, um indivíduo "crítico e neurótico", isto é, guiado pelo desejo de compreender e pela retenção de suas pulsões. Problemas que levava para seu analista.

Afirma Dufour: "O novo sujeito que hoje se apresenta é acrítico e pós-neurótico". Compreender não lhe interessa mais, é algo que, antes disso, o entedia. O mercado promete atender a cada um de seus apetites - logo, em vez de reter as pulsões, ele as "resolve" com o vício, o mais frequente deles por drogas. Esse novo sujeito, acrescenta Dufour, "é levado a adotar condutas perversas (instrumentação do outro em função de seus gozos e interesses pessoais)". E, consequência final, "se ele não consegue fazer isso, ele se deprime, o que acontece frequentemente".

Drogas, perversão, depressão - marcas de um novo sujeito, figura típica de um mundo onde os padrões de regulação social se enfraqueceram ou desapareceram. Cenário despedaçado, nos sugere Dufour, que levou à grave crise financeira de hoje. O novo sujeito, além de tudo, habita um presente contínuo e imóvel. Argumenta Dufour que a nova religião do mercado "deixa um vazio quanto ao velho tormento humano da origem e do fim".

Na nova vida ultrapragmática de hoje - extremo paradoxo - há um aumento da necessidade de transcendência. Essa necessidade, alerta o filósofo, "pode permanecer dentro dos limites do razoável, mas pode ir até os delírios fundamentalistas". Não é por acaso, portanto, que o fundamentalismo de vários matizes se espalha pelo planeta; sua disseminação é o avesso de um vazio que a nova realidade do mercado acentua. É o vazio criado pelo deus mercado que exacerba a onda fundamentalista. Ela não passa de sua contrapartida. Assim como a ascensão dos dogmas é o avesso do desprestígio do pensamento crítico.

Acredita Dufour que muitos dos mais graves problemas contemporâneos estão associados a esse novo deus. Por exemplo, os escândalos de corrupção que ocupam, cada vez com mais frequência, as manchetes dos jornais. Afirma ainda que a corrupção - ao contrário do que em geral acreditamos - não pode mais ser vista na perspectiva da psicologia individual, como um desvio de conduta ou uma expressão da maldade. A corrupção, ele diz, é hoje um problema que está muito além do caráter e da moral.

"Como querer que um sistema que tem como fundamento o princípio do egoísmo não suscite inúmeras formas de corrupção?", Dufour pergunta. Para ele, a atual crise financeira fez "desabar um mito mantido cuidadosamente pela narrativa ultraliberal: aquele que afirma ser preciso distinguir os negócios saudáveis dos negócios suspeitos".

É evidente: não que todo mercado seja sujo e todo negócio, digno de desconfiança. "Nenhuma pessoa séria pode ser contra o mercado em geral", o filósofo argumenta. "Pela simples razão de que o mercado é como o pulmão: é por onde as pessoas respiram." Recorda Dufour, a propósito, a beleza de dois tradicionais mercados que visitou recentemente: o de Tepoztlán, no México, e o da Medina de Fez, no Marrocos. "Por que eles são tão bonitos? Simplesmente porque neles a economia está inserida no social." Em todos os tempos, acrescenta, o mercado soube integrar o princípio altruísta que dá à cultura o seu lugar.

Ao contrário, o que caracteriza o mercado da era ultraliberal é a destruição das culturas. "Ele é, abertamente, a promoção da anomia [a ausência de leis], a suspensão das interdições e de tudo o que possa interpô-las ao ímpeto dos apetites." Para Dufour, essas mudanças não só produzem um novo sujeito, obsessivo, perverso e deprimido, mas põem profundamente em questão a própria civilização.

Diz ainda Dany Dufour que, no mundo ultraliberal de hoje, "a distinção entre dois mundos, um perverso e outro moral, não somente não se sustenta como se trata de um puro trompe-l'oeil, ilusório e mentiroso". Não se trata de um problema de caráter ou da maldade deste ou daquele agente econômico em particular. Não é um problema pessoal, mas um problema estrutural.

Pensando novamente na crise econômica de agora, lembra Dufour que em 2000, nos Estados Unidos, eram lavados, a cada dia, cerca de US$ 1 milhão "provenientes de máfias diversas". Número que representava entre dois terços e a metade dos investimentos estrangeiros diretos. "O produto criminal bruto, no ano 2000, ultrapassava em muito 1 bilhão de dólares anuais, ou seja, 20% do comércio mundial." Para agravar a situação, a atividade econômica oficial pôs-se a fornecer, ela também, uma massa de capitais suspeitos.

Comenta Dufour: "Esses capitais corrompidos provêm de uma série de atividades bastante difundidas em grandes empresas, tal como demonstraram vários escândalos recentes". E enumera exemplos: cartéis, dumping, vendas forçadas, especulação, absorção e desmonte de concorrentes, balancetes falsos, manipulação de contabilidade, fraudes e evasão fiscal, desvios de créditos públicos, etc.

Lembra ele ainda - e a crise atual aí está como prova - que "o último estágio da dominação do capital financeiro sobre o capital industrial consistiu em diversas montagens de operações financeiras ultra-arriscadas, como o empréstimo em grande escala de dinheiro inexistente a pessoas que não tinham como pagar suas dividas". A desordem se instalou, a anomia tomou conta do mercado, e a crise que hoje enfrentamos se tornou inevitável.

Analisa: "Trata-se de um momento de regressão sem precedentes". Constatação que não o impede, porém, de conservar algum otimismo. Diz Dufour que aos indivíduos resta, em vez de consumir obsessivamente os objetos manufaturados que lhe prometem a felicidade, "trabalhar para desenvolver o objeto singular que só ele pode produzir". O investimento no singular se torna fundamental para a sobrevivência do indivíduo e para o desenvolvimento de uma comunicação viva com os outros homens.

A produção desses objetos singulares, seja na literatura, na música, na psicanálise, etc. -, "ainda são remédios, ou antídotos, à produção de indivíduos estandardizados", sugere. Ajuda a compreender que temos apenas uma vida e que, melhor do que permitir que ela seja manipulada, é "dar a essa única manhã de primavera, como dizia o filósofo, um sentido ou um sabor que só você pode dar".

Ministrando conferências pelo mundo, como a que pronunciou no dia 8 a convite do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Dany Dufour tem ouvido, muitas vezes, que suas ideias colocam em palavras claras o que as pessoas hoje sentem de modo confuso. "Essa consciência de uma ameaça planando sobre nós existe. As pessoas esperam novas maneiras de reagir, distantes dos esquemas do passado, como 'a grande noite', 'a revolução' ou o que seja mais."

Em resumo: a expansão do divino mercado exige a produção de novas posições críticas e de novas estratégias que abandonem os velhos modelos de contestação e tenham a coragem de encarar o presente.

Luís Fernando Verissimo

A truta


Sob o título "A truta", Luís Fernando Verissimo, escritor, publicou , no jornal O Globo, 23-08-2009, a seguinte crônica.
Fonte:UNISINOS




O homem pediu truta e o garçom perguntou se ele não gostaria de escolher uma pessoalmente.

- Como, escolher?

- No nosso viveiro. O senhor pode escolher a truta que quiser.

Ele não tinha visto o viveiro ao entrar no restaurante. Foi atrás do garçom. As trutas davam voltas e voltas dentro do aquário, como num cortejo. Algumas paravam por instante e ficavam olhando através do vidro, depois retomavam o cortejo. E o homem se viu encarando, olho no olho, uma truta que estacionara com a boca encostada no vidro à sua frente.

- Essa está bonita... - disse o garçom.

- Eu não sabia que se podia escolher. Pensei que elas já estivessem mortas.

- Não, nossas trutas são mortas na hora. Da água direto para a panela.

A truta continuava parada contra o vidro, olhando para o homem.

- Vai essa, doutor? Ela parece que está pedindo...

Mas o olhar da truta não era de quem queria ir direto para uma panela. Ela parecia examinar o homem. Parecia estar calculando a possibilidade de um diálogo.

Estranho, pensou o homem. Nunca tive que tomar uma decisão assim. Decidir um destino, decidir entre a vida e a morte. Não era como no supermercado, em que os bichos já estavam mortos e a responsabilidade não era sua - pelo menos não diretamente. Você podia comê-los sem remorso. Havia toda uma engrenagem montada para afastar você do remorso. As galinhas vinham já esquartejadas, suas partes acondicionadas em bandejas congeladas, nada mais distante da sua responsabilidade. Os peixes jaziam expostos no gelo, com os olhos abertos mas sem vida. Exatamente, olhos de peixe morto. Mas você não decretara a morte deles. Claro, era com sua aprovação tácita que bovinos, ovinos, suínos, caprinos, galinhas e peixes eram assassinados para lhe dar de comer. Mas você não estava presente no ato, não escolhia a vítima, não dava a ordem. Não via o sangue. De certa maneira, pensou o homem, vivi sempre assim, protegido das entranhas do mundo. Sem precisar me comprometer. Sem encarar as vítimas. Mas agora era preciso escolher.

- Vai essa, doutor? - insistiu o garçom.

- Não sei. Eu...

- Acho que foi ela que escolheu o senhor. Olha aí, ficou paradinha. Só faltando dizer ''Me come''.

O homem desejou que a truta deixasse de encará-lo e voltasse ao carrossel junto com as outras. Ou que pelo menos desviasse o olhar. Mas a truta continuava a fitá-lo. Ele estava delirando ou aquele olhar era de desafio?

- Vamos - estava dizendo a truta. - Pelo menos uma vez na vida, seja decidido.

Me escolha e me condene à morte, ou me deixe viver. A decisão é sua. Eu não decido nada. Sou apenas um peixe, com cérebro de peixe. Não escolhi estar neste tanque. Não posso decidir a minha vida, ou a de ninguém. Mas você pode. A minha e a sua. Você é um ser humano, um ente moral, com discernimento e consciência. Até agora foi um protegido, um desobrigado, um isento da vida. Mas chegou a hora de se comprometer. Você tem uma biografia para decidir. A minha. Agora. Depois pode decidir a sua, se gostar da experiência. O que não pode é continuar se escondendo da vida, e....

- Vai essa mesmo, doutor? - quis saber o garçom, já com a rede na mão para pegar a truta.

- Não - disse o homem. - Mudei de ideia. Vou pedir outra coisa.

E de volta na mesa, depois de reexaminar o cardápio, perguntou:

- Esses camarões estão vivos?

- Não, doutor. Os camarões estão mortos.

- Pode trazer.

domingo, 23 de agosto de 2009

Menos pobre e tão desigual

Mais de 35 milhões de pessoas ultrapassaram a faixa da pobreza no Brasil nos últimos 40 anos. O milagre econômico da década de 70, o aumento do nível educacional, o fim da inflação, os programas de transferência de renda e a valorização do mínimo fizeram a parcela de pobres baixar dos inacreditáveis 68,4% da população em 1970, com 61,1 milhões de pobres, para 14,1% nos dias atuais. Mas esse número poderia ser bem menor se não fosse a persistência da verdadeira chaga da sociedade brasileira: a extrema desigualdade de renda. A reportagem é de Cássia Almeida e Letícia Lins e publicada pelo jornal O Globo, 23-08-2009.
Fonte: UNISINOS

O modelo de crescimento dos anos 70, patrocinado pelo governo militar, aumentou a concentração de renda, e a hiperinflação cobrou dos mais pobres um imposto alto.

Resultado: no século XXI ainda estamos correndo atrás dos indicadores de igualdade da década de 60. O Índice de Gini (quanto mais perto de zero, mais igualitário é o país), um dos principais medidores de desigualdade, mostra isso.

Em 2009, a taxa estava em 0,543, ainda acima do índice de 0,537 encontrado em 1960.

Em seu estudo sobre pobreza desde 1970, a economista Sonia Rocha, do Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade (Iets), mostra que o aumento da desigualdade na década pôde ser constatado pela distância entre a renda dos não-pobres e dos pobres. Em 1970, a renda dos mais ricos equivalia a 2,83 vezes a dos pobres. Em 1980 sobe para 5,2 vezes.

“Se o crescimento da renda tivesse sido neutro do ponto de vista distributivo, teria sido possível obter uma redução ainda mais acentuada da pobreza”, diz o estudo.

País mais inclusivo nos anos 80

Ana Saboia, chefe da Divisão de Indicadores Sociais do IBGE, lembra ainda o papel da queda da fecundidade, que mudou o perfil sóciodemográfico:

— Com a população crescendo mais devagar, as políticas de redução da pobreza e da desigualdade tornaram-se mais efetivas. A desigualdade regional também se mantém elevada. O Nordeste, que tinha 90% da população abaixo da linha de pobreza, consegue reduzir o contingente para 28,3% em 2002. No entanto, a participação da região entre os pobres se mantém em 39% desde 70.

Segundo estudo do economista Marcelo Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), a distribuição de renda está mais equânime hoje do que em 1970, medida pelo Índice de Gini:

— Houve crescimento forte da economia, mas não se investiu em educação. A demanda por profissionais mais preparados aumentou com a expansão econômica, e a diferença entre os rendimentos cresceu. Foi o efeito colateral negativo do milagre, desde os anos 60.

O economista Marcelo Medeiros, que foi coordenador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no Centro Internacional de Pobreza da ONU, afirma que somente no fim dos anos 80 o país começou verdadeiramente a se preocupar com os grupos mais pobres, com o marco da Constituição Cidadã de 1988:

— Houve a universalização do sistema educacional, de saúde e de acesso à energia elétrica. Melhorou muito também a infraestrutura de transporte. Houve um movimento claro do Estado, que ficou mais ativo para os pobres.

Mesmo com os ganhos na qualidade de vida dos brasileiros, a mobilidade social ainda é muito baixa no Brasil, de acordo com Medeiros.

— A chance de uma pessoa que vem de família pobre sair da pobreza ainda é pequena.

Ele cita os ganhos com a democracia. Foi possível, com o fim da ditadura, cobrar melhorias:

— E isso não foi o trabalho de um governo, mas de milhares de prefeitos e governadores também.

Para o sociólogo do Iuperj, Adalberto Cardoso, que acabou de concluir livro sobre a concentração de renda no Brasil, a desigualdade se mantém a mesma há 200 anos:

— O Brasil é assim há 200 anos. E a concentração é maior no topo da pirâmide de renda. Se tirássemos os 20% mais ricos, teríamos um Índice de Gini sueco, o país mais igualitário. Tirando os 10% mais ricos, o Gini seria europeu. É fácil perceber isso nas estatísticas.

Enquanto o 1% mais rico, que está em 560 mil domicílios, detém 12,5% da renda familiar, os 50% mais pobres, que representam 28 milhões de domicílios, ficam com só um pouquinho mais: 14,7% do bolo.

Nordeste, o retrato da desigualdade

Isso fica mais flagrante no Nordeste.

De um lado, centros de tecnologias avançadas, como o Porto Digital, que oferecem soluções em informática para as maiores empresas de telecomunicações do mundo.

Do outro, as sedes do poder, inclusive da prefeitura. No meio, a comunidade do Pilar é o retrato da desigualdade que separa bairros sofisticados como o de Boa Viagem (na Zona Sul) da favela do Rato, como é mais conhecida a Comunidade do Pilar. É nessa favela que mora Mariluce de Vasconcelos. Desempregada, só teve carteira assinada uma vez na vida e, foi há 15 anos. Desde então, vive de biscates. Tem oito filhos e netos. Dinheiro fixo, só o do Bolsa Família: R$ 102 mensais, que complementa fazendo faxinas.

— O máximo que consigo são dois trabalhos por mês, com diária entre R$ 30 e R$ 40.

Ela mora numa construção improvisada com madeiras velhas, sem água e sem banheiro. A exemplo dos irmãos sertanejos — que andam da roça até açudes distantes em busca de água —, Mariluce perde uma hora por dia abastecendo a casa. Lata na cabeça, vai até um cano quebrado que serve a toda comunidade. Luz vem de uma ligação clandestina. De acordo com um levantamento da prefeitura, na comunidade de Mariluce, 62% dos moradores vivem com menos de um salário mínimo, e a taxa de analfabetismo supera 23%.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Entrevista - Irène Théry

A paridade não é um ideal de igualdade


Feminista desde 1968, mas sem ser doutrinária. É dessa forma que Irène Théry, socióloga do direito, da família e da vida privada, gosta de ser apresentada. Ela é autora do célebre livro Le démariage (Odile Jacob, 1993), e mais recentemente de La distinction de sexe, une approche de l’égalité (Odile Jacob, 2007). Avessa às categorizações simplistas entre homens machos e mulheres vítimas, ela prefere ver como são representadas e unidas as relações entre os dois sexos, depois que saímos da sociedade hierárquica. Seu credo: a igualdade homens-mulheres não se reduzirá a uma política de aprovação de cotas com vistas a equilibrar os lugares e os papéis entre os dois sexos. Isso deverá passar também por uma refundação global de nosso sistema de relações sociais. Para ela, nós estamos apenas no começo desta revolução. Casal, família, parentalidades, filiação, ela nos dá aqui a sua visão das possíveis reconfigurações da nossa sociedade. Suas tomadas de posição podem desconcertar. Entretanto, as suas análises e argumentos trazem uma certa serenidade aos debates que, frequentemente, carecem disso. A entrevista é de Armelle Breton e está publicada na revista francesa La Vie, 30-07-2009, p. 9-11. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


Um relatório preconiza que, dentro de seis anos, 40% dos chefes de empresas francesas serão mulheres. Depois da lei sobre a paridade, o caminho rumo à igualdade com os homens está pavimentado?

Entre as questões que suscitam mais esperança, há legitimamente esta de imaginar sociedades construídas sobre o valor da igualdade de sexo. Mas é preciso notar que esta ideia, tida hoje como o valor cardeal de nossas democracias, é muito nova. Ela remonta aos anos 1970. Antes, na França, e apesar de a Revolução ter proclamado a igualdade dos indivíduos, a nossa sociedade admitia uma hierarquia dos sexos na vida pública ou familiar. O voto das mulheres é de 1945 e o abandono da autoridade marital e paternal, de 1970. De fato, nós não sabemos o que é uma sociedade fundada sobre o princípio da igualdade dos sexos. Em todo o caso, me parece ingênuo pensar que pelo fato de não fazermos mais diferença entre um homem e uma mulher ou termos colocado 50% de mulheres numa assembleia, teremos atingido a igualdade. A paridade não pode ser apresentada como um ideal de igualdade. Para mim, ela trancafia as mulheres numa metade da humanidade, empurrá-las a “rivalizar” entre elas.

Mas, assim mesmo, é por isso que devemos passar?

A paridade – ou as cotas – é um mal necessário que deve ser temporário. No fundo, penso que com essas medidas auto-restritivas fingimos ter solucionado o problema. Porque não tocamos nas causas desta situação: as dificuldades da conciliação vida familiar-vida profissional, coisas que explicam porque as mulheres estão ausentes nesses lugares. Se realmente quisermos avançar rumo à igualdade dos sexos, será preciso parar de considerar essas dificuldades como da ordem privada. Uma vez que nós não queremos mais uma divisão entre um mundo masculino e um mundo feminino, mas um mundo misto, onde teremos ao mesmo tempo a felicidade da vida privada e a glória do sucesso – profissional, social, ou político –, o futuro passa pela socialização das relações com as crianças, os doentes, as pessoas idosas... Eu não acho que seja inconveniente exigir das empresas que elas se preocupem com isso. A questão das creches, da organização do trabalho noturno (na Europa do Norte, os executivos param às 18 horas) e da gravidez, deve sair do domínio privado.

O caminho corre o risco de ainda ser longo?

Isso evolui nas empresas, especialmente, que compreenderam que desenvolver programas de igualdade dos sexos é bom para a sua imagem. E que favorecer as carreiras das mulheres não se opõe aos seus interesses. Mas é verdade, isso evolui melhor nos grandes grupos que nas pequenas empresas; melhor nos escritórios do que nos supermercados, e melhor no terciário do que no setor agroalimentar. Dito isto, não podemos mais nos contentar com um discurso estereotipado que prevaleceu nos últimos 35 anos, que traz uma visão de igualdade como uma elevação para o patamar 50-50. Não, a igualdade é a recusa de uma sociedade organizada sobre um modo hierárquico em que a mulher é englobada pelo homem. Nós saímos disso, mas de agora em diante precisamos enfrentar a grandeza e a miséria da igualdade. Como disse o filósofo Cornelius Castoriadis: “A igualdade não é uma resposta, é uma nova maneira de colocar as questões”.

Que questões já se colocam e que prefiguram o nosso futuro?

Quando entramos na democracia, há dois séculos, não tínhamos mais os problemas da sociedade monárquica, mas começamos a descobrir os da democracia. Hoje, devemos atacar aqueles produzidos pela igualdade dos sexos, e ver como a emancipação das mulheres redefine a filiação, a parentela, as normas sexuais e, evidentemente, o casal. Em tempos idos, era 1 + 1 = 1. O homem representava a si mesmo e o casal. Dizia-se, por exemplo, a senhora Jacques Gauthier. Hoje, é 1 + 1 = 2. O que passa a ser central são duas pessoas que têm cada uma seu voto, sua opinião, seu ponto de vista, seus valores. Estamos no par, como na música ou na dança, onde os dois parceiros devem poder desempenhar a sua divisão. A tal ponto que, quando o par não funciona mais, temos o sentimento de que o casal se esvaziou de sua substância.

O divórcio será uma regra geral?

As gerações futuras vão se confrontar com um novo desafio: como tornar duradoura uma relação que se tornou mais contratual, onde se permanece junto aconteça o que acontecer. Mas, não podemos nos contentar em dizer que o divórcio será banalizado. Porque todos os estudos mostram isso: o sonho de uma vida partilhada em comum, de um amor que seja duradouro sempre permanece extremamente forte. Não passamos totalmente à ideia de que a vida é uma poligamia terrena. Ora, se quisermos imaginar o futuro, é preciso tomar os valores das pessoas como ponto de partida. E não me parece que, do ponto de vista afetivo, vai se reivindicar o CDD (contrato por tempo determinado)! Ninguém deseja envelhecer sozinho, ainda vai se procurar ter relações de longo prazo.

Que soluções podemos encontrar para essas novas questões?

Uma das soluções que se vislumbra consiste em distinguir entre o casal no sentido da relação afetiva e sexual (meu companheiro, minha companheira) e o casal no sentido da “vida comum compartilhada”, com um projeto de vida e de filhos. É um fenômeno novo: as pessoas fazem uma diferenciação entre esses dois tipos de relação, que são, por outro lado, socialmente aceitos. Dos 17 aos 30 anos ou mais, a sociedade aceita um período em que os jovens adultos vivam as relações que não são da ordem da vida comum. E as famílias compreenderam isso. Elas sabem que não devem “familiarizar” exageradamente as relações dos amiguinhos de seus filhos, para permitir que uma separação seja possível sem ser um drama. Ao organizar uma vida na qual as relações que não são de conjugalidade sejam admitidas e possíveis durante muito tempo, a nossa sociedade dá uma resposta parcial à questão do risco do divórcio. Ainda haverá divórcios, mas talvez um e não dois ao longo de uma vida.

Que recomposições familiares podemos esperar?

É difícil fazer prognósticos. Nós estamos numa sociedade que experimenta e elabora suas normas. Mas já há uma em marcha: a adesão à parentalidade dos homossexuais. Quanto mais nos afastamos de uma concepção naturalista de partilha dos papéis feminino e masculino em proveito de uma aproximação cultural, mais pensamos que dois homens ou duas mulheres podem muito bem ser um casal. Hoje, a concepção de homossexualidade mudou. Já não é mais uma patologia nem uma sexualidade inferior, e aqueles que gostam de pessoas do mesmo sexo querem viver abertamente com elas, amá-las, ter um lugar familiar e, eventualmente, não renunciar a ter filhos.

Como vamos apreender o que se poderia qualificar como ruptura antropológica?

Há muitas diferenças entre o que nós estamos em vias de viver e a maneira como delas falamos. Nós já estamos em uma sociedade que aceita que haja mais de um homem e uma mulher na concepção de uma criança, quer seja com a adoção ou as procriações médico-assistidas (MPA). Mas nós continuamos, apesar de tudo, a querer reduzir a parentalidade a um pai e a uma mãe, nem um a mais nem um a menos. Os doadores (as crianças têm o direito de saber quem é seu genitor) são simplesmente apagados. Fizemos a mesma coisa antes com a adoção ao silenciar suas origens à criança. As questões sobre o engendramento, a filiação... a homoparentalidade nos obrigam a enfrentá-las. É um paradoxo. Mas a nossa sociedade, que organiza muitos tipos de parentalidades – mais de dois no engendramento (com as inseminações artificiais) ou na história biográfica (com a adoção), mais de dois na educação no dia-a-dia (com as recomposições familiares) –, e admitindo apenas um único pai e uma única mãe, nega o real. No dia em que assumirmos essa realidade, poderemos debater mais serenamente a homoparentalidade.

Com a igualdade dos sexos, o indivíduo ganha muito mais importância. Como evitar a armadilha de uma sociedade que reivindica sempre mais direitos particulares?

Se quisermos pensar o futuro, é preciso abordar as novas questões colocadas às nossas sociedades, sem renunciar a nos interrogar sobre o que nos mantêm juntos. Da fato, a igualdade dos sexos vem acompanhada de um aprofundamento do individualismo, no sentido positivo da palavra, isto é, onde o indivíduo encarna a humanidade inteira. Isso não tem nada a ver com uma certa ideologia individualista que nega a nossa dimensão relacional social. Uma sociedade concebida como uma coleção de indivíduos, não funciona. Precisamos reinventar uma antropologia da igualdade que entrelace o feminino e o masculino, para fazer sociedade juntos.

Para ler mais:


Entrevista - Daniel Dayan

A mídia como instrumento de interpretação do mundo

“Uma vez que cada um de nós não pode nem conhecer o mundo, nem mesmo nossa própria sociedade, nós somos reduzidos a imaginar com os meios que as mídias nos dão. E estes meios de imaginar o mundo são confiáveis?” Quem faz essa reflexão e lança esta pergunta é o pesquisador francês Daniel Dayan diretor de pesquisa no Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS), de Paris. Dayan concedeu por e-mail para a revista IHU On-Line.
Fonte: UNISINOS



IHU On-Line - Que relação o senhor estabelece entre informação e espetáculo na mídia?

Daniel Dayan - Em princípio nenhuma. Ao menos não nas mídias visuais. Os dois termos têm um valor normativo e se contradizem. A informação é boa, o espetáculo, mau. Penso que se trata de uma oposição um pouco ultrapassada, levando a gesticulações inúteis. Como demonstra Hannah Arendt, em sua noção de “aparecer em público”, todo ato político é espetáculo. Trata-se então, não de extinguir os espetáculos da cidade, como Platão extinguia os poetas, mas de julgá-los, avaliá-los, sabendo pertinentemente que são espetáculos. Quais são, então, os vícios e as virtudes destes espetáculos que chamamos por convenção de “informações”?

IHU On-Line - Qual a diferença entre um acontecimento social e um acontecimento midiático?

Daniel Dayan - Não há, doravante. É raríssimo que um acontecimento social não se torne um acontecimento mediático, salvo em um regime totalitário. Todavia, não se pode esquecer a tese de Boorstin. Alguns acontecimentos são também mediáticos. Outros acontecimentos são somente mediáticos (os pseudo-acontecimentos). Mas estes últimos se tornaram crucialmente importantes. O atentado de 11 de setembro fora concebido para ser um acontecimento mediático. Os mortos do terrorismo servem geralmente de autentificadores, ou de “efeitos reais”. Eles são o que permite aos acontecimentos mediáticos adquirirem uma dimensão social, e de atravessar, assim, as grades do “gatekeeping”.

IHU On-Line - Em que medida a midiatização interfere na cultura democrática?

Daniel Dayan - Para o bem, criando uma opinião pública informada. Para o mal, criando uma opinião pública fabricada. É preciso distinguir aqui entre uma função da informação das mídias e uma função de sinalização das mídias. A segunda é raramente discutida, mas essencial.

IHU On-Line - Quais as consequências de vivermos em uma cultura midiática?

Daniel Dayan - A midiatização da cultura e a cultura midiática são duas coisas diferentes. Além disso, existem simultaneamente várias culturas e várias formas de midiatizar. Como demonstra Appadurai, é esta multiplicidade que define nossa ecologia cultural.

IHU On-Line - A mídia realmente tem tanta força para fazer transformações tão profundas em nossa sociedade?

Daniel Dayan - Sim, mas, para demonstrar isso, é preciso apelar mais para uma argumentação vinda da história do que da psicologia social. Em outros termos, a enormidade do impacto das mídias consegue paradoxalmente torná-lo invisível.

IHU On-Line - Nesse contexto de crise financeira atual, alguns teóricos falam em desglobalização, que há um freio na retórica da globalização. A midiatização ainda teria forças nesse cenário?

Daniel Dayan - A globalização não é simplesmente um caso de retórica e a desglobalização, ao que me parece, uma questão de voluntarismo. Não é um trem do qual se pode descer na próxima parada. As tentativas de desglobalização podem se revelar elas próprias globais.

IHU On-Line - Que relação o senhor estabelece entre o fenômeno da midiatização e a crise financeira internacional? Acredita que a mídia aumenta a crise no sentido de que provoca um sentimento de pânico coletivo?

Daniel Dayan - Há uma relação inevitável desde que a economia repousa sobre um jogo de antecipações da conduta do outro. Deixadas a elas mesmas, as mídias irão evidentemente aumentar a crise e criar pânico. Mas elas podem igualmente adotar o papel que é seu desde as grandes catástrofes: acompanhamento terapêutico da população. Mas este papel pressupõe que se saiba o que fazer.

IHU On-Line - Nesse processo de midiatização, que questões são colocadas ao ser humano do século XXI e que são cruciais para nossa existência?

Daniel Dayan - Uma vez que cada um de nós não pode nem conhecer o mundo, nem mesmo nossa própria sociedade, nós somos reduzidos a imaginar com os meios que as mídias nos dão. E estes meios de imaginar o mundo são confiáveis?

IHU On-Line - O que os governos devem levar em conta ao formular políticas públicas a partir das transformações e mutações que a sociedade vem sofrendo em função da midiatização?

Daniel Dayan - Entre as várias áreas a serem consideradas, destaco duas aqui:

1- Os governos devem refletir sobre a deontologia das mídias e sobre as condições nas quais ela pode se exercer. É essencial que a instituição do jornalismo sobreviva e se reforce. Mas, para isso, esta instituição deve continuar credível, o que está longe de ser o caso. Como fugir, então, das diferentes patologias do jornalismo? Meu amigo R. Silverstone escrevia que hoje os jornalistas deveriam ser melhores, superiores a nós nos aspectos intelectual e moral. Concordo com ele. Mas penso que uma grande parte dos problemas encontrados pelo jornalismo deve-se mais à ausência de tal superioridade do que às circunstâncias nas quais os jornalistas trabalham. Cultivando uma ética da convicção, substituída por uma ética da responsabilidade; solicitando-se um relativismo pós-moderno, substituído pelas noções de factualidade ou de verdade, os jornalistas se descredibilizam em nome do que eles acreditam ser suas principais virtudes.

2 - Os governos deveriam poder tirar as consequências de uma realidade que as organizações que os combatem conhecem perfeitamente. A maior parte, se não a totalidade das guerras contemporâneas, são ganhas não em campo de batalha, mas nas telas. No campo de batalha só se consegue vitórias. Nas telas, ganham-se as guerras, conquistam-se as opiniões públicas. É por esta razão que – para usar uma metáfora de Appadurai – as guerras entre os elefantes e os mosquitos se traduzem geralmente pela vitória dos mosquitos.

Para ler mais
Pedro Gilberto Gomes: A tecnologia digital está colocando a humanidade num patamar distinto
Muniz Sodré: A interação humana atravessada pela midiatização
José Luiz Braga: Midiatização: a complexidade de um novo processo social
Jairo Ferreira : Dispositivos midiáticos e processos sociais: um debate sobre a midiatização
Antonio Fausto Neto: “A midiatização produz mais incompletudes do que as completudes pretendidas, e é bom que seja assim”
Outros jornalismos, outra comunicação
Midiatização. Um modo de ser em rede comunicacional

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Frei Antonio Leandro da Silva

Abolicionista piauiense


Frei Leandro é doutorando em antropologia/PUC-SP-Bolsista CNPq
Fonte: Supera Piauí


A historiografia piauiense ainda carrega uma dívida biográfica sobre o indígena Mandu Ladino, que o chamo de “abolicionista piauiense”. Talvez poucos alunos do Ensino Médio e/ou universitários conheçam a importância desse líder que, incansavelmente, lutou contra os primeiros fazendeiros-criadores piauienses, em defesa dos direitos dos indígenas às suas terras. Por isso, descrever a vida desse guerreiro é uma questão muito complexa, pois, por causa da escassez de fontes documentárias primárias, pouco se sabe sobre o seu perfil social, étnico, político e ideológico. Contudo, baseado em algumas fontes bibliográficas, tentamos traçar o perfil desse abolicionista.

Os Anais Históricos da Província do Maranhão descrevem Mandu Ladino como “um índio chamado Manoel, com a antonomásia de Ladino que, nascido no grêmio católico, deve a sua educação aos missionários da Companhia de Jesus”. Percebe-se uma redução do termo Manoel para “Mandu”, um adjetivo que, popularmente, significa tolo, idiota, imbecil, pacóvio; e “Ladino” cujo adjetivo provém da raiz latina lad ou da variante lat, portanto, latinum ou latinu que significa “astuto, esperto, sagaz”. Ladino também era denominado o mestiço ou negro que aprendia e sabia qualquer ofício ou arte. Daí supõe-se que o abolicionista dos indígenas, com toda a sua astúcia e sagacidade, tivesse toda uma arte para combater os dominadores.

Semelhantemente a Zumbi dos Palmares (1687), surgiu, em 1712, Mandu Ladino, “um mestre na arte de combater” (BAPTISTA, 1994:36). Este líder - ganhando a simpatia dos indígenas revoltados com a crueldade dos fazendeiros-criadores, usurpadores das suas terras -, lutou contra as forças do “progresso” da época. Grupos de indígenas fugiram dos aldeamentos para se unir ao exército de Mandu Ladino. O abolicionista piauiense mobilizou, no Maranhão, Piauí e Ceará, um movimento de ruptura radical com o sistema de dominação, abalando assim a sua estrutura de produção. A partir daí foi intensificado a caça ao indígena que passou a ser estigmatizado de bárbaro, bravo e selvagem e, por isso, deveria ser aniquilado através da degola. Além disso, os detentores do poder diziam que o “astuto e forte” Mandu Ladino vagueava pelas serras e rios piauienses, causando terror e amedrontando os adeptos da “civilização”.

O historiador Manuel Aires de Casal, na obra “Corografia Brasílica”, assegura que “a conquista da gentilidade dos sertões do Piauí não custou grandes sacrifícios”. Eu refuto essa posição porque não procede, pois aconteceram muitas rebeliões e revoltas dos indígenas piauienses contra os fazendeiros-criadores que aqui se instalaram, em 1674. Não foram tão pacíficos como o autor descreve. Ademias, Aires de Casal limita-se a dizer que Mandu Ladino era um “índio doméstico” que fugira de Pernambuco para o Piauí, onde conquistou os índios Poti. Em torno dessas informações existem ainda algumas incógnitas que precisam de uma análise documental mais aprofundada.

Porém, há duas correntes que descrevem a procedência étnica de Mandu Ladino. A primeira afirma que o guerreiro pertencia à tribo Poti (Tremembé) e morava no rio Poti, desde o primeiro contato, em 1674. Segundo a classificação de João Gabriel Baptista (1994), a etnia Cariri (ou Kariri) constituía-se de quatro famílias: Tremembé, Aranhi (ou Arani), Poti e Crateús. Estes povos tinham 60 tribos, localizadas no Delta do rio Parnaíba. Alguns historiadores afirmam que Mandu Ladino fazia parte da tribo Aranhi, situada às margens do Parnaíba. Mas uma segunda corrente assegura que Mandu Ladino pertencia à etnia Tupi, portanto, da nação Tabajara, e deveria ter feito parte de uma das tribos que estava localizada ao Norte, mais ao litoral ou perto. Esta nação encontrava-se também na Serra Grande ou Ibiapaba e era conhecida como Tobajara ou Tujupar.

Para os autores Benedito Prezia e Eduardo Hoomaert (2000), Mandu Ladino “liderou esse movimento com mão firme e tornou-se, por sete anos, o homem mais forte da região. Ele era da nação Kariri (Cariri), mas muitos povos de língua tupi, que moravam no Ceará, juntaram-se a ele contra os fazendeiros. Foi uma importante rebelião que abalou mais uma vez o sertão nordestino. Muitos portugueses morreram e muitas fazendas foram destruídas no Ceará e no Piauí”.

Para conter as rebeliões e revoltas dos Tapuias do Norte, em 1712, o governador da Província do Maranhão enviou Antônio da Cunha Souto Maior para o Campo da Conquista do Piauí. Mas as guerras travadas pelo representante do governador não prosperaram, e este foi assassinado, em 1713, pelos próprios índios Tapuias com quem fazia a guerra contra “todos os de corso [os Aranhis] daquele vastíssimo país [Província do Maranhão]”. Por causa disso, em 1716 (ou 1718?), o governador do Maranhão enviou Cavalcante de Albuquerque para a casa forte do Iguara, com o objetivo de, unindo-se a Carvalho e Aguiar, combater os Aranhis. Estes seguiram, juntamente com Mandu Ladino, para o Porto das Barcas (situado ao litoral), onde nova luta se desencadeou. O valente Mandu Ladino resistiu, porém, foi cercado pelo exército e, no duro combate, caiu no rio Igaraçu, onde foi assassinado pelo soldado Manoel Peres, que recebeu carta régia de agradecimento pelo acontecimento (ALENCASTRE, 1981).

Tombava, portanto, nosso valente e combatente abolicionista que fez acontecer a primeira, e talvez a única, tentativa revolucionária e englobante dos indígenas brasileiros contra os dominadores. Sem deixar-se abater, o guerreiro foi um mestre na arte de combater. Por isso, a data de 1716 (ou 1718) deveria fazer parte das comemorações cívicas do Estado, e no Porto das Barcas, em Parnaíba, deveria ser erguido um monumento em honra ao abolicionista piauiense, Mandu Ladino.

domingo, 16 de agosto de 2009

Entrevista - Marcio Pochmann

O fim da miséria no Brasil já está no horizonte, afirma Pochmann


“Em um período de cinco anos, quase quatro milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza no Brasil e entraram para o mercado de consumo. Nas seis regiões metropolitanas que estudamos, a pobreza não cresce desde o último trimestre do ano passado. Em crises anteriores, a pobreza teria crescido. Além de não crescer, tende a cair. Isso é resultado de aumento do salário mínimo e de políticas de inclusão, como o Bolsa Família”. A opinião é de Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em entrevista para a revista IstoÉ Dinheiro, 19-08-2009.
Fonte: UNISINOS


Como avalia a crise mundial e os efeitos dela para o Brasil?

A crise está provocando uma reestruturação profunda no sistema capitalista mundial. Isso provocou uma decadência relativa dos Estados Unidos - estamos transitando de um sistema global de unipolaridade para uma nova realidade de multipolaridade, em que os Estados Unidos seguem importantes, mas ganha importância a União Europeia e se abre espaço para o Brasil na liderança da região sul-americana. O Brasil tem uma oportunidade de ganhar espaço, mas para isso precisamos ter uma política de reinserção.

O que é preciso fazer para ganhar este espaço?

O Brasil já ocupa espaço naturalmente pelo seu tamanho, mercado interno, sua população, estrutura produtiva, suas universidades, seu sistema de inovação. Mas ainda precisamos avançar em três pontos. Um deles é um sistema de defesa, com um grande avanço em desenvolvimento tecnológico para defesa. A segunda condição é ter uma moeda de curso internacional. E em terceiro lugar é preciso avançar no sistema de tecnologia, de inovação. Não são vocações. São condições criadas.

E o Brasil está avançando em alguma dessas áreas?

Para ter capacidade de liderar, uma nação precisa ter um projeto de longo prazo, um planejamento. Infelizmente, nas duas últimas décadas o Brasil abandonou a perspectiva de desenvolvimento, achando que a simples evolução das forças de mercado seria suficiente. O Ipea está trabalhando numa agenda de longo prazo, a Agenda 2022. Nosso esforço todo é para que em 2010 o Brasil tenha uma agenda do desenvolvimento, tratando dos seus nós, das suas dificuldades, e das potencialidades.

Muitos dizem que o principal problema do Brasil é a educação É a sua opinião?

O principal problema do Brasil é a ausência de uma maioria política que lidere um projeto de desenvolvimento. Nas crises, de um modo geral, o Brasil aproveitou as oportunidades. A crise de 1929 representou a depressão, as dificuldades, mas também permitiu a criação de uma maioria política que liderou um projeto de desenvolvimento por quase 50 anos. A crise da dívida externa praticamente rompeu com esta maioria política. A transição da democracia não teve uma maioria política combinada com desenvolvimento. O Brasil precisa ter esta liderança regional, que passa pela visão de uma maioria política que apoie este projeto. O governo do Lula e os outros antes dele são governos de disputa. Não há uma maioria consolidada. Há dificuldade em coordenar as políticas macroeconômicas. De certa forma, a crise está forçando uma maior convergência entre as políticas fiscal e monetária.

A crise ajudou a unificar o discurso e as ações. Mas, agora que a crise está passando, isso continua?

O risco que corremos é justamente achar que este esforço para superar a crise nos levará a uma situação de bem-estar pré-crise. Isso não necessariamente acontecerá. O que permitirá ou não avançarmos em direção a uma maior confluência será o desfecho eleitoral. O desfecho eleitoral poderá garantir mais oito anos, ou pelo menos quatro de continuidade desta combinação, que não é uma tradição no Brasil, de expansão econômica com melhoras sociais. A crise provocou uma inflexão neste movimento. Podemos sair da crise acentuando isso, ou não. A forma como estamos enfrentando a crise é uma forma inovadora. Nas crises anteriores, não adotamos políticas compensatórias como agora, de redução dos tributos, aumento do salário mínimo. Na crise dos anos 80, por exemplo, o BNDES teve um papel mais de hospital. Agora nós vemos um aporte de R$ 100 bilhões para uma reorganização patrimonial. Há um esforço de aproveitar a crise para fortalecer mecanismos que antes não estavam tão fortalecidos.

Mas houve avanços recentes no combate à pobreza, segundo a própria pesquisa do Ipea, não?

Houve, sim. Em um período de cinco anos, quase quatro milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza no Brasil e entraram para o mercado de consumo. Nas seis regiões metropolitanas que estudamos, a pobreza não cresce desde o último trimestre do ano passado. Em crises anteriores, a pobreza teria crescido. Além de não crescer, tende a cair. Isso é resultado de aumento do salário mínimo e de políticas de inclusão, como o Bolsa Família. Mas é algo lento e precisa ter continuidade e estar em sintonia com outras iniciativas, como a redução do desemprego e o fortalecimento das empresas. O fim da miséria no Brasil está no horizonte, o da extrema miséria, mas o combate à pobreza ainda levará mais tempo.

Em relação à crise, aqui no Brasil as medidas estão sendo tomadas no sentido correto?

Acho que foram no sentido correto. Na velocidade nem sempre. A redução dos juros, por exemplo, não teve a velocidade necessária. Primeiro que os juros não deveriam ter subido em 2008 para enfrentar uma inflação que não era de demanda. Em segundo lugar, só fomos reduzir a taxa a partir de janeiro.

A agora eles estão no nível adequado?

Um terceiro erro agora seria interromper a queda dos juros. Embora os juros tenham caído, ainda temos juros reais relativamente altos. Isso tem efeito no câmbio e não é adequado num ambiente de queda do comércio internacional. Quanto mais caírem os juros, não só estimulamos a economia como reduzimos o pagamento dos juros. Mas para aproveitar as oportunidades o Brasil tem que ter medidas mais ousadas. Para isso é preciso mudar o que nos tornou vulneráveis e interrompeu o ciclo de expansão. Nós tivemos uma recessão concentrada no setor industrial. Há três razões, que precisam ser enfrentadas com políticas ousadas. A primeira razão é a nossa dependência do crédito internacional. O Brasil precisa de uma reestruturação bancária e financeira. A segunda é o fortalecimento da política comercial. O Brasil precisa avançar mais rapidamente no comércio sul-sul. E a terceira razão é uma política mais agressiva de criação de empresas multinacionais no Brasil.

Vocês têm um grupo de trabalho sobre isso. Já conseguiram identificar as oportunidades?

O Ipea constituiu 20 grupos de trabalho de vários temas e um deles é sobre a grande empresa. Num mundo que é praticamente governado por 500 grandes corporações, só terá espaço o país que tiver grandes empresas. A China tem um projeto de ter 150 das 500 grandes empresas.

Onde o Brasil teria oportunidades de se destacar?

Por exemplo, em energia. Os grupos brasileiros são muito pequenos. Precisamos de uma grande empresa. Precisaríamos de um grande banco de financiamento comercial. Um Eximbank, que pode ser um banco privado ou um banco público. Nossa estrutura bancária, apesar de concentrada é muito pequena. Outro setor é o álcool-químico. Precisaria de um grande investimento para ampliar o uso. Precisamos de uma profunda reforma do Estado brasileiro. O Estado tem que ajudar a inventar o mercado no Brasil. Nosso mercado está sufocado pelo predomínio de grandes empresas que marginalizam ou excluem milhares de pequenas empresas. Noventa e cinco por cento dos estabelecimentos no Brasil são micro e pequenas empresas, que têm brutal dificuldade de participar deste mercado.

A impressão que a maioria dos brasileiros tem é que o Estado é caro e oferece serviços ruins.

O Estado brasileiro gasta, em relação ao PIB, um pouquinho menos do que gastava em 1980. Em 1980 a carga tributária era de 24,5% do PIB e hoje é de 35,7%. Houve um aumento, claro. Mas quando se tiram as transferências - previdência social, Bolsa Família, subsídios, isenções - e o pagamento dos juros, a receita líquida é de 14,7%, enquanto em 1980 era de 15%. Os 15% ficam para a máquina, para a saúde, para a educação. É pouco. De 1980 para cá, o Brasil cresceu pouco e isso foi combinado ao endividamento. Gastam-se 6%, 7% do PIB com o serviço da dívida e por outro lado gasta-se mais com transferência. E isso é efeito da democracia. A democracia não existiria se não houvesse uma melhora social.

Dá para dizer que o pior da crise já passou e a curva agora é ascendente, ou ainda podemos ter um repique?

Depende do que fizermos agora para enfrentar as coisas que permitiram que a crise chegasse. Se deixarmos essas portas abertas, continuamos vulneráveis. A solução para a crise exige uma mudança no sistema de financiamento em todo o mundo. O Brasil sai da crise mais fortalecido, mas não estaria imune a sofrer, um pouco mais à frente, outro evento derivado da própria crise.

O desemprego, que é o principal indicador da economia real para a maioria dos cidadãos, teve uma alta nos primeiros meses do ano, mas agora começa a recuar. Esta recuperação já é permanente?

Já temos uma trajetória de queda, mas teremos este ano um desemprego maior do que no ano passado. O País não vai crescer o suficiente para gerar emprego para todo mundo. Achamos que a variação do PIB será muito forte no fim deste ano, começo do ano que vem. A eleição sempre alavanca o crescimento, mas em 2010 a economia pode estar crescendo muito bem, como nunca esteve em outras eleições.

Horacio Verbitsky e Eduardo de la Serna

Na quinta-feira, dia 06 de agosto, a Igreja católica da Argentina divulgou uma mensagem de Roma: anunciou que o Papa Bento XVI havia convocado a Argentina para acabar com o “escândalo da pobreza”. A convocação se refere à Coleta Mais por Menos, coordenada pela Igreja argentina todos os anos e que neste ano será feita em setembro. Mas os fac-símiles mostram que, na publicação oficial da Coleta católica, a mensagem do Papa data de maio, o que foi omitido na página da internet do Episcopado. Assim, ela foi anunciada como se acabasse de chegar. Na mensagem, o Papa anima “os cristãos e aqueles que dela [da coleta] participarem a um esforço solidário capaz de contribuir para a redução do escândalo da pobreza e da iniquidade social dando assim cumprimento às exigências evangélicas que exortam a tornar possível uma sociedade mais justa e solidária”. A mensagem do Pontífice é assinada pelo Núncio Apostólico, Adriano Bernardini, em “Buenos Aires, maio de 2009”. Na sexta-feira, dia 07, com a mensagem sendo assunto em toda a mídia, o cardeal Jorge Bergoglio reiterou o caráter da mensagem em uma missa na Igreja de São Caetano. Horacio Verbitsky analisa a escolha da data para a divulgação do comunicado de Bento XVI.



Pobres os pobres.


“A pobreza era um escândalo na época e o é ainda hoje. Por mais que oscilem os seus números, trata-se de muitas pessoas que sofrem e não há nada mais importante que aliviar o seu sofrimento, com socorros emergenciais, mas também modificando as condições estruturais que produzem a pobreza”, escreve Horacio Verbitsky em artigo que está publicado no jornal argentino Página/12, 10-08-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



Em 2001, a Frente Nacional Contra a Pobreza (Frenapo) acorreu ao imponente petit hôtel da Conferência Episcopal. O Estado o adquiriu como residência presidencial alternativa para Roberto M. Ortiz, que nunca o ocupou, e Jorge Rafael Videla presenteou-o à Igreja Católica como reconhecimento a tantas atenções. Na cordial reunião com a Comissão Executiva, Víctor De Gennaro foi alvo de afetuosas brincadeiras de um bispo do qual havia sido coroinha. Adolfo Pérez Esquivel não omitiu uma referência à conduta episcopal durante a ditadura e eu padeci a curiosidade geral, como se emanasse enxofre. Quando terminaram os mimos e pedimos autorização para colocar urnas nas igrejas para a consulta que a FRENAPO havia organizado a favor de um Seguro de Emprego e Formação, a resposta foi negativa. As 20.598 mesas localizadas em 535 localidades do país poderiam ser colocadas em todos os lugares, menos nas igrejas.

Mais de três milhões de pessoas votaram a favor dessa resposta política à pobreza. O Episcopado estava ocupado com o Diálogo Argentino, um dos instrumentos oferecidos por Duhalde e Alfonsín para dar o último empurrão ao horroroso governo da Aliança. A desvalorização da moeda, que era o seu objeto de fundo, foi a maior fábrica de pobres da história argentina.

A pobreza era um escândalo na época e o é ainda hoje. Por mais que oscilem os seus números, trata-se de muitas pessoas que sofrem e não há nada mais importante que aliviar o seu sofrimento, com socorros emergenciais, mas também modificando as condições estruturais que produzem a pobreza. A legitimidade dos protestos é impecável e isso torna repugnante somar ao escândalo da pobreza o de sua manipulação.

O Governo cometeu neste assunto graves erros e está pagando por eles. A partir de 2006, quando os salários recuperaram o seu nível anterior à crise de 2001, sua política de recuperação de renda para os setores populares emperrou num funil. Os oligopólios que controlam a economia decidiram que já bastava e responderam com aumentos de preços que desencadearam um processo inflacionário. A resposta governamental foi negociar acordos que os mais poderosos nunca cumpriram, como provam seus saudáveis balanços, e aplicar cirurgia redutiva nos índices. Isto demoliu a credibilidade da palavra oficial sobre quase todos os temas e não está certo que os esforços da presidente Cristina Kirchner sejam capazes de reverter essa situação. Por isso, tornou-se vulnerável a este tipo de operações, que não se privam nem sequer do grotesco da Sociedade Rural, que está propondo um programa contra a pobreza.

No Clarín deste domingo, dia 9, um porta-voz oficial do Episcopado afirma que, “em sua paranóia”, um funcionário descobriu que a mensagem papal “datava de maio e foi desengavetada pelo Núncio Apostólico, Adriano Bernardini”. As reproduções desta página não deixam lugar a dúvidas: as palavras de Bento XVI foram transmitidas por seu representante em maio de 2009 e assim consta na publicação oficial da Coleta Mais por Menos. Mas essa data foi suprimida na página na internet oficial do Episcopado, onde, ao contrário, consta a data de 06 de agosto, como se acabasse de ser emitida. Por que isso terá acontecido?

Pródigo em metáforas, o porta-voz da Conferência Episcopal celebrou que as palavras do Papa “caíram como uma bomba no governo, fragilizado pela derrota eleitoral”. A frase sobre a pobreza foi manchete de capa dos principais jornais na sexta-feira, dia 07. Nessa manhã, o líder populista conservador da Conferência Episcopal tinha na agenda uma missa na Igreja de São Caetano. O cardeal Bergoglio sabe fazer dessa liturgia um ato político. Acompanhado por violões pós-conciliares, trata Jesus com intimidade, dialoga com os fiéis, sorri, interroga-os até que respondem em coro. Eu estou com o povo e o governo lhe dá as costas, é a mensagem subliminar. Também toma decisões de fundo, como a criação de um vicariato especial para as favelas, etapa superior da equipe sacerdotal que o cardeal Juan Carlos Aramburu autorizou há quatro décadas. Mas, os padres faveleiros Orlando Yorio e Francisco Jalics, ambos jesuítas, denunciaram que em 1976 Aramburu e Bergoglio entregaram-nos aos militares que os torturaram durante seis meses. Entre os interrogadores havia um com conhecimentos profundos de psicologia e de Igreja. Disse a Yorio que o seu erro era “interpretar materialmente as Escrituras ao ir viver com os pobres. Que Cristo falava de pobreza espiritual”. Há pobres e pobres, e se pode escolher de acordo com o momento.

Desta vez Bergoglio preparou o cenário de forma cuidadosa. Foi ele quem falou do escândalo da pobreza em maio, durante a visita ao Papa. Sua frase foi dita e reproduzida como um comentário de atualidade. Mas, o texto escrito de sua homilia indica que foi uma citação textual de “Navega mar adentro”, documento que o Episcopado divulgou em 2003. Como é comum na relação entre o centro e a periferia eclesiásticos, salvo em casos excepcionais, Roma divulga o que interessa a cada Episcopado nacional. “Navega mar adentro”, por sua vez, remete à Encíclica Populorum Progressio, a mesma em que Paulo VI falou das “revoluções explosivas do desespero”. Para que lembrar essa passagem?

O mesmo detector de paranóias havia estampado na capa do Clarín de 17 de julho a quantificação da pobreza do bispo Alcides José Pedro Casaretto. Seu principal colaborador leigo é o engenheiro Eduardo Serantes, diretor do maior fundo de sementes do país, Cazenave & Associados, coordenador do Fundo Agrícola de Investimento Direto (F.A.I.D.), assessor de empresas agroindustriais e de serviços, responsável pelo programa de trigo candial dos Moinhos Rio da Prata e da Trigalia e do programa de girassol oléico da Dow AgroSciences. Esses fundos não fazem discriminação entre investidores com ou sem batina e, naturalmente, se chateiam com as retenções ao seu comércio exterior. Nada purifica melhor desses dissabores do que ajudar os pobres.

Para ler mais:


POBREZA ARGENTINA. MUITO PARA SER CASUAL. Artigo de Eduardo de la Serna

Artigo de Eduardo de la Serna, coordenador do Movimento de Sacerdotes de opção pelos pobres Carlos Mugica, publicado no jornal argentino Página/12, 10-08-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


Devido a declarações habituais do Papa, relacionadas neste caso à coleta anual Mais por Menos, alguns retomaram em nosso país o tema da pobreza: “escândalo”, chamou-a Bento XVI. “Escândalo”, repetiu o cardeal Bergoglio. A pobreza nos incomoda, destacou com seu habitual glamour o presidente da Sociedade Rural, a pobreza é o tema principal no diálogo, destacou o monsenhor Alcides Casaretto, a pobreza é o tema que ocupa lugar de destaque na mídia, atualmente. Muita insistência em tão pouco tempo para ser casual. O que aconteceu? De repente, aqueles que ontem ignoravam os pobres, descobriram-nos hoje? Será que “ontem” não havia pobres e que eles passaram a existir apenas depois das últimas eleições? Será que aconteceu algo pontual para que o tema se desencadeasse? Casualidades demais, que nunca são inocentes em política.

O fato de haver pobres na Argentina realmente é um escândalo. A existência de um único já o é. Mas analisemos um pouco mais. “A fome é um crime”, afirmavam os sempre castigados “moços do povo”, ao que obviamente aderimos. Pessoalmente, já me chamou a atenção o fato de um jornal destacar, semanas atrás, que os moços pobres comiam porquinhos da índia, algo que é arremedo do que diziam os jornais em 2002 (“cavalos, ratos e sapos”, diziam na época). Insistência no diálogo, escândalo da pobreza, gravidade da situação dos pobres, temas requentados... será que “alguém” nos queira dizer que estamos como em 2001-2002? Será que esse “alguém” quer preparar o imaginário para que não nos “escandalizemos”, mas que desejemos que um governo constitucional “não termine” o seu mandato?

Uma reflexão

Quando ouço certos setores progressistas dizer que “não se deve judicializar a pobreza”, realmente me incomoda muito. Pessoalmente, creio que se DEVE judicializar. A pobreza é um crime, e deve ser penalizado todo aquele que for responsável pelo fato de os pobres serem mais (mais pobres e mais os pobres). Creio que o Poder Executivo não pode ser indiferente à “escandalosa” distribuição injusta da renda; creio que o Poder Judiciário deve considerar crime o fato de que não se conserta o crime e sancione os responsáveis, e creio que o Poder Legislativo deve sancionar todas as leis necessárias para que os pobres sejam cada vez menos (menos pobres e menos os pobres).

Pois bem, por que há pobres? Essa é a pergunta fundamental. Por isso, me parece totalmente empobrecedora a palavra “excluídos”, porque nunca há “responsáveis”. Porque os pobres na Argentina não são pobres por viverem em um país pobre (há no mundo muitos países mais ricos que a Argentina?). Então, perguntar “por que há pobres” é o passo fundamental para enfrentar o escândalo. Sem uma séria resposta a essa pergunta, tudo é teatro. Ou zombaria. Quais são as causas da pobreza? Será que não há nenhuma relação entre a existência de tantos muito pobres e de poucos tão ricos? E para que ninguém me acuse de “neo-marxista”, lembro que a frase “os ricos são cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres” pertence a João Paulo II. Ah, e a frase “imperialismo internacional do dinheiro” foi dita por Pio XI.

O que é o escândalo?

A palavra “escândalo” é uma palavra usada com muita frequência pela Igreja, ainda que às vezes de modo estranho. Na Bíblia, o escândalo é a armadilha no caminho, a pedra de tropeço. Ou seja, é o que impede de avançar, que não deixa caminhar. Mas alguém pode “escandalizar-se” de coisas positivas, e nesse caso pobre daquele que se escandaliza!, ou escandalizar-se com maus exemplos, e nesse caso ai daquele que escandaliza!... Em nome do “escândalo” muitas vezes na Igreja se “escondem” padres pederastas, para que não haja “escândalo”, ou se questiona o jornalista que mostra aquilo que escandaliza, como um torturador “encontrado” no Chile. Na realidade, o escândalo não é provocado por aqueles que mostram o que escandaliza, mas por aqueles que são seus autores: os pedófilos, os torturadores, os membros da instituição eclesiástica que mostram “relações carnais” com o poder econômico ou político.

Pois bem, se olharmos sob essa perspectiva, no plano pessoal, a pobreza não me escandaliza. A pobreza me compromete, me impulsiona a fazer o que sei e posso para enfrentar a injustiça que a provoca. No plano pessoal, o que me impede de caminhar, o que me parece que é uma armadilha no caminho é a riqueza. A ostentação, pornográfica com frequência, é o que escandaliza. Os injustos, os algozes me escandalizam. E aqueles que são cúmplices, aduladores ou publicitários. O que é um escândalo é a riqueza, não a pobreza!

A propriedade privada

Como não poderia ser de outra maneira, em plena fidelidade à sua história, a Sociedade Rural insistiu no tema da propriedade privada. É absolutamente coerente. Nunca se preocuparam com os “privados de propriedade”. Mas no plano pessoal, e com o apoio que me dão o Evangelho e o Magistério da Igreja, não a Escola de Frankfurt, creio que enquanto a propriedade privada for vista como um “absoluto” ou um “deus”, a pobreza continuará crescendo. E machucando. Nunca esqueço aquilo que Carlos Mugica repetia: “primeiro se apropriaram de todas as terras e depois fizeram o Código Civil”.

Toda a espoliação de ontem e de hoje na América Latina parece que não “era” propriedade privada, e a “dívida externa” parece que começa apenas quando eles decidem, e não quando a Bolívia foi saqueada, o Paraguai massacrado, a Colômbia devastada... E os indígenas “simplesmente” deslocados, roubados, e vítimas de um genocídio que alguns chamam de “o maior genocídio da história”. Dificilmente alguns teriam chegado a fundar a Sociedade Rural ou entidades afins se antes não tivessem saqueado mapuches, tehuelches e tantas outras etnias “donas da terra”, para depois serem “proprietários”, “gente do campo”. Mas ainda que esquecêssemos isso, a insistência na propriedade privada, e o esquecimento do fim social da propriedade, sem alguma dúvida, é “a mãe de todas as causas” da pobreza.

Os nomes

Na realidade, creio que um elemento que nos permite entender o momento que vivemos é o tema dos “nomes”. São exatamente os pobres os que nunca têm nome: são “os negros”, “os paraguaios/bolivianos”, ou simplesmente “os pobres”, mas nunca têm rosto, nunca têm nome. Os ricos, ao contrário, têm nome próprio. Tão próprio quanto a sua propriedade. Chamam-se Maurizio, Francisco, Ernestina, Amalita. E enquanto os pobres continuarem a ser “anônimos”, ou simplesmente “números”, não se tocará o coração do problema. Basta pensar na mobilização que ocorreu quando o pobre uma vez teve nome e se chamou “Barbarita”. Que os pobres deixem de ser número e tenham rosto e nome torna-se intolerável. E incomoda. Porque a pobreza e os pobres não escandalizam. Causam pena! É por isso que se fala de “estatísticas”, em “número de pobres”, pois não é um assunto importante. É sério, mas não haverá mobilização para as causas. Mas o problema que provoca o reconhecimento do nome e do rosto é que é espinhoso, cheira, se nota. Uma coisa é falar de “um ou dos pobres” e outra bem diferente é abraçar sua pele curtida e ressecada, sentir seu cheiro de fumaça no inverno, seu rosto facilmente imaginável diferente se tivesse nascido em outro lugar com outra alimentação, e outros cuidados.

Mas, lamentavelmente, creio que se deve dizer que não apenas os pobres não têm nome. Também os culpados nunca o têm. Ver discursos e documentos eclesiásticos carregados de boas palavras ou ideias interessantes, mas onde nunca há um nome, nunca há um rosto, dificulta dar-lhes crédito. Ouvir falar do escândalo da pobreza sem que nos digam por que há pobres e por responsabilidade de quem há pobres, pode acabar sendo um discurso retórico e vazio. Há pobres porque há ricos. Especialmente na Argentina. E se os ricos têm nome, não é ruim lembrá-los. Com algum exagero, mas parte de verdade, São Jerônimo dizia que “todo o rico é ladrão ou filho de ladrão”. E é doutor da Igreja. E se alguém é ladrão, é “empobrecedor”.

Um olhar para a situação atual

Há pobreza. É evidente e grave. Creio que a pobreza aumentou nos últimos tempos, ao menos é o que os padres amigos vêem em nossos bairros. Não é fácil dizer quanto, mas insisto: o que escandaliza não é o fato de compartilhar momentos com os pobres, mas ver a mesa sem leite; não fico escandalizado – mas me compromete e mobiliza – com o fato de que os pobres aumentem; o que me escandaliza são os ricos, quer sejam deputados, chefes de governo, executivos de meios de comunicação ou manipuladores da opinião pública; não me escandaliza ver o pobre de perto e chamá-lo por seu nome; me escandaliza ver setores da Igreja de Jesus, o Messias dos pobres, e Igreja dos pobres, próximos dos responsáveis pela pobreza.

Mas, por outro lado, acredito que há um clima esfriado. A transcendência do telegrama do Papa (infinitamente maior comparado com a pouca transcendência que teve a sua recente Encíclica inteiramente dedicada a questões sociais), os discursos na Sociedade Rural dizendo “por ora” não cortamos pontes, defendendo Martínez de Hoz, e criando evidente clima destituinte, isso é preocupante.

É curioso: os bispos argentinos nunca colocaram o arcebispo de La Plata, Héctor Aguer, em nenhuma Comissão Episcopal, e justamente agora o elegem presidente da Comissão Episcopal de Educação, como querendo “demarcar o espaço” ao Governo em um campo tão específico e sensível a antigas Conferências Episcopais. Nunca é demais recordar que durante as ditaduras o Ministro de Educação era escolhido em consenso com o Episcopado, e o mesmo foi feito nos governos democráticos sucessivos. Escolher para esse cargo episcopal um bispo com evidente vocação de cruzado é, obviamente, para “cruzar” o governo neste tema. Sua referência em suas duas declarações de um mês atrás e da semana retrasada aludindo ao “neo-marxismo” só fez recordar-nos outros momentos episcopais e ditatoriais difíceis.

Uma última coisa: há tempos eu dizia que não parecia haver possibilidade de golpe militar na Argentina, fundamentalmente por dois motivos: a Embaixada dos Estados Unidos não parecia alentá-los, e a Igreja fez uma clara defesa da democracia. Portanto, se dois dos grandes apoios dos golpistas não os alentavam, a situação seria difícil para aqueles que acalentavam tais ideias. O presidente da UCR no Senado disse que há aqueles que não querem que o governo chegue em 2011, mas ninguém lhe pediu nomes. A Embaixada não parece alheia ao golpe militar em Honduras, e – ali – a Igreja hierárquica, na voz do cardeal Rodríguez Maradiaga, tomou clara postura pelo regime de facto. Algo semelhante se vê na postura do cardeal da Bolívia, Julio Terrazas. Algumas declarações episcopais parecem sumamente preocupantes neste marco.

Por tudo isso, não creio que todo o arrazoado apresentado no começo seja “casual” nem creio que algumas manifestações episcopais o sejam. Pessoalmente, não creio que muitos deles se importem com os pobres; e digo mais, muitos parecem festejar cada morto da febre A ou cada caso de dengue, ou cada aumento de um dígito da pobreza. Pessoalmente, creio que enquanto os pobres não tiverem nome, não o terão os empobrecedores, e enquanto se seguir sacrificando o sangue das vítimas no altar da propriedade privada e do deus dinheiro, seguramente a situação se agravará, mesmo que os algozes nos olhem com cara de compungidos. Mas, enquanto isso estiver acontecendo, o Evangelho de Jesus, a busca de ser “Igreja dos pobres” não nos deixarão tranquilos até que os pobres tenham casa, pão e trabalho. Até que os pobres sejam vistos como irmãs e irmãos, ou melhor ainda, até que já não haja mais pobres porque também não haverá mais ricos e haverá uma mesa compartilhada e vida celebrada para todos.

sábado, 15 de agosto de 2009

José Luís Fiori

O perigo da utopia


Artigo de José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicado pela Carta Maior, 11-08-2009 e pelo jornal Valor, 12-08-2009.



"...a geopolítica do equilibro de poderes e a prática do imperialismo explícito deixaram de fazer sentido devido a uma série de novos fatos históricos [...], esta abordagem das relações internacionais não tem mais espaço no mundo em que vivemos, do pós-colonialismo, da globalização, do sistema político global, e da democracia [...] com a globalização, todos os mercados estão abertos e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado..[...] Resulta ainda daqueles fatos que a guerra entre grandes países tambem não faz mais sentido [...] No século XX, as guerras entre as grandes potências não faziam sentido porque todas as fronteiras já estavam definidas?" LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA, "O mundo menos sombrio", Jornal de Resenhas, nº 1, 2009, USP, p:7.


Na segunda metade do Século XX, em particular depois de 1968, tornou-se lugar comum a crítica dos "novos filósofos" europeus, que associavam a utopia socialista ao totalitarismo. Mas não se ouviu o mesmo tipo de reflexão, depois da década de 80, quando a utopia liberal se tornou hegemônica e suas idéias tomaram conta do mundo acadêmico e político. Logo depois da Guerra Fria, Francis Fukuyama popularizou a utopia do "fim da história" e da vitória da "democracia, do mercado e da paz". E apesar dos acontecimentos que seguiram, suas idéias seguem influenciando intelectuais e governantes, sobretudo na periferia do sistema mundial.

Basta ver a confusão causada pelo anúncio recente da decisão norte-americana de ampliar sua presença militar na América do Sul. Com a instalação ou ampliação de sete bases militares no território colombiano, que deverão servir de "ponto de apoio para transporte de cargas e soldados no continente e fora dele".( FSP,5/8/09) O governo norte-americano justificou sua decisão com objetivos "de caráter humanitário e de combate ao narcotráfico". A mesma explicação que foi dada pelo governo americano, por ocasião da reativação da sua IV Frota Naval, na zona da América do Sul, no ano de 2008 : "uma decisão administrativa, tomada com objetivos pacíficos, humanitários e ecológicos" (FSP, 9/0708).

Uma das funções dos diplomatas é participar deste jogo retórico que às vezes soa até um pouco divertido. E cabe aos jornalistas o acompanhamento destes debates sobre distâncias, raio de ação dos aviões, ameaça das drogas, etc. Todavia os intelectuais têm a obrigação de transcender este mundo da retórica e dos números imediatos, e também, o mundo das fantasias utópicas, o que as vezes não acontece, e não se trata - evidentemente - de um problema de ignorância. Pense-se, por exemplo, na utopia liberal do "fim das guerras" que já não fariam mais sentido entre os grandes países, e contraponha-se este tese com a história passada e a história do próprio século XX e XXI.

Segundo a pesquisa e os dados do historiador e sociólogo norte-americano, Charles Tilly: "de 1480 a 1800, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra Mundial, mais ou menos, a cada quatorze meses. A era nuclear não diminuiu a tendência dos séculos antigos a guerras mais freqüentes e mais mortíferas [ alias] , desde 1900, o mundo assistiu a 237 novas guerras, civis e internacionais.. [enquanto.] o sangrento século XIX contou 205 guerras" (Charles Tilly, Coerção, capital e Estados europeus , Edusp, 1996, p. 123 e 131.) Mesmo na década de 1990, durante os oito anos da administração Clinton, que foi transformado na figura emblemática da vitória da democracia, do mercado e da paz, os EUA mantiveram um ativismo militar muito grande. E ao contrário da impressão generalizada, "os Estados Unidos se envolveram em 48 intervenções militares, muito mais do que em toda a Guerra Fria, período em que ocorreram 16 intervenções militares". (Bacevich, 2002: p:143). E mais recentemente, os "fracassos" militares dos EUA, no Iraque e no Afeganistão - ao contrário do que dizem - aumentaram a presença militar dos EUA na Ásia Central e o cerco da Rússia e da China, envolvendo, portanto, preparação para a guerra entre três grandes potências.

Em tudo isto, fica clara a dificuldade intelectual dos liberais conviverem de forma inteligente, com o fato de que as guerras são uma dimensão essencial e co-constitutiva do sistema mundial em que vivemos, e que portanto não é sensato pensar que desaparecerão. Ao contrário do que pensam os liberais, a associação entre a "geopolítica do equilíbrio de poderes" e as guerras, não se restringe ao século XIX, ( já havia sido identificada na Grécia), e o sonho do "governo mundial" das grandes potências, já existe pelo menos desde o Congresso de Viena, em 1815, sem que isto tenha impedido o aumento do numero dos estados e das guerras nacionais.

Neste tipo de sistema mundial, por outro lado, é muito difícil acreditar na possibilidade do "fim do imperialismo", e ainda menos, neste início do século XXI, em que as grandes potências - velhas e novas - se lançam sobre a África, e sobre a América Latina, disputando palmo a palmo o controle monopólico dos seus mercados e das fontes de energia e matérias primas estratégicas. E soa quase ingênua a crença liberal nos "mercados abertos", num mundo em que todas as grandes potências impedem o acesso às tecnologias de ponta, não aceitam a venda de suas empresas estratégicas, e protegem de forma cada vez mais sofisticada seus produtores industriais e seus mercados agrícolas.

Neste ponto, chama atenção a facilidade com que os economistas liberais confundem os mercados de petróleo, armas e moedas, por exemplo, com os mercados de chuchu, queijos e vinhos. Em tudo isto, o importante é que a utopia liberal também pode ter conseqüências nefastas, sobretudo para os países que não estão situados nos primeiros escalões da hierarquia de poder do sistema mundial. Se as utopias de esquerda levaram - em muitos casos - ao totalitarismo, a utopia liberal e sua permanente negação do papel do poder e da preparação para a guerra, na história do capitalismo e das relações internacionais, leva, com freqüência, os intelectuais e dirigentes destes países mais fracos, à uma posição de servilismo internacional.

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