segunda-feira, 27 de julho de 2009

Roberto Ciccarelli

O fantasma que vaga no pensamento único

Vaga e insossa, mas presencialista, a democracia parece ser quase o horizonte insuperável da nossa época. A saturação provocada pelo seu uso indiscriminado justifica a peremptoriedade dessa afirmação. De Barack Obama a Berlusconi, das filosofias políticas radicais ao Hamas e ao Vaticano, todos parecem ter uma opinião sobre aquilo que a democracia é e sobre aquilo que ela deveria ser. O artigo é de Roberto Ciccarelli, publicado no jornal Il Manifesto e traduzido pela revista IHU On-line. Tradução publicada no site da revista IHU On-Line.
Fonte: Carta Maior

Em um livro recente, "Démocratie, dans quel état?" (La Fabrique, 152p.), que reúne contribuições de Giorgio Agamben, Alain Badiou, Wendy Brown, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière e Slavoj Zizek, dentre outros, defende-se que a desagregação dos conteúdos normativos da democracia foi gerada por uma oscilação entre regime e governo, entre soberania popular e gestão econômica e administrativa daquilo que existe. A democracia em que vivemos seria uma democracia "governamental", que impõe a busca de uma alternativa. Se esse é o objetivo, então não é por acaso a escolha das contribuições que compõem esse livro, escrito por autores considerados protagonistas de uma "reviravolta" no pensamento político contemporâneo, a da chamada "democracia radical".

Os assuntos da cidade
Muitas vezes, o logotipo não é justo com a diversidade – às vezes enorme –de um fenômeno cultural, mas só às exigências do mercado editorial. Porém, pelo menos nesse caso, isso explica mais uma vez que o liberalismo ostentado pela "intelligentzia" a partir dos anos 80 é uma doutrina consumada. Por isso, é compreensível a ansiedade por novos paradigmas, mas isso não deveria remover as diferenças essenciais entre os seus protagonistas.

É notável como a busca de uma alternativa parou diante da impossibilidade de criar um sujeito político "forte". A crítica da democracia propõe uma outra estratégia para recompor esse sujeito para além dos limites da política do século XIX, fundada sobre as classes ou sobre o individualismo proprietário. Além das muitas diferenças, é justamente esse o projeto que surge do grupo que enfileira a "vida nua" de Agamben, a via "neoleninista" Zizek até a "hipótese comunista" de Badiou.

Jacques Rancière
A contribuição de Rancière, que dá sequência às considerações já desenvolvidas em "L'odio per la democrazia" (Cronopio) e em "Il disaccordo" (Meltemi), oferece motivos para se repensar e se concentra sobre o problema central desse grupo. Parece, de fato, que a teoria radical acha difícil imaginar uma subjetividade politicamente eficaz. Por uma dupla razão: de um lado, descreve a democracia como negatividade absoluta, como "significante vazio". De outro, evoca um antagonismo político permanente contra a ordem constituída. A democracia seria, assim, o resultado de uma contínua ruptura do espaço político, cujo objetivo é a destituição da sua legitimidade, mais do que a realização das possibilidades que ela exclui.

A real continuidade entre Agamben, Badiou ou Zizek não é a da continuidade contingente que localiza no modelo antagônico um relato alternativo à democracia liberal, mas sim a da vontade de atribuir ao "político" um princípio único e puro. Só que, nesses autores, a pureza nunca se dá em uma forma particular da democracia, mas na sua contínua negação. Se não fosse assim, a democracia reproduziria a confusão entre a democracia e a constituição, ou uma forma social que, para Rancière, aproxima todo o arco político da direita à extrema esquerda. Com o resultado espectral – mas nunca tão atual – de identificar a vida de uma democracia com a permanente reforma das regras que deveriam governá-la.

"A democracia – escreve Rancière – é o poder daqueles que não têm nenhum título para exercer o poder, a capacidade de que qualquer um se ocupe dos assuntos da cidade". É esse o seu "escândalo": "qualquer um", cidadão ou migrante, pode aspirar ao governo. Uma pretensão que nutre o ódio dos governantes, mas que também é a demonstração de que aquele que governa não tem nenhuma razão natural para fazê-lo, e aquele que é governado não tem nenhuma razão natural para obedecer.

Uma política é democrática quando reconhece estar fundada nessa divisão não natural dos papéis. Fazendo isso, ela alimenta uma contínua renegociação dos limites do público e do privado, do político e do social, do econômico e do institucional, para resolver as desigualdades existentes, salvo se forem registradas outras novas em outros lugares.

Além do governo dos melhores
As considerações justas de Rancière ainda deixam uma dúvida. A sua versão da política democrática reavalia o aspecto constituinte do conflito, enquanto produtor de uma distribuição igualitária dos papéis contra a lógica hierárquica da democracia. O ponto é que esse conflito ocorre desde a polis grega, em uma espaço político que é sempre igual a si mesmo e, por isso, não é muito diferente do formalismo jurídico do qual toma distância.

Contrariamente ao que Michel Foucault defende, que forneceu uma versão imanente da política democrática fundada na diferença e não na igualdade, a negatividade transcendental, que Rancière critica enquanto expressão das aporias do antagonismo democrata-radical, permanece também no seu sistema. Mesmo tendo identificado o lugar em que se desenvolve o conflito da democracia – a repartição dos papéis entre governantes e governados –, ele não explica como se forma o conflito e por que seria diferente dos anteriores.

Distante de uma visão trágica da política como "decisionismo" ou, pior, como técnica administrativa, o pensamento de Rancière denuncia a tentação elitista difundida na cultura política contemporânea, para a qual a democracia é naturalmente o "governo dos melhores". Mas não foge do problema, este sim epocal, de como tornar efetivo o sujeito da política democrática.

Personagens e palavras-chaves de um pensamento crítico a ser reconstruído
Louis Gabriel Gauny, engenheiro e filósofo, em "Le philosophe plébéien" (La Découverte), e Étienne Cabet, utopista século XIX, em "La nuit de proletaires. Archives du rêve ouvrier" (Hachette), são os personagens que, junto com Joseph Jacotot, povoam o singular arquivo a partir do qual Jacques Rancière indagou o estatuto filosófico do discurso histórico, propondo "Courts voyages au pays du peuple" (Seuil) e "Les mots de l'histoire" (Seuil).

A seguir, Rancière passou a uma reflexão sobre a literatura ("Mallarmé o la politica della sirena", Clueb) e sobre o cinema ("La favola cinematografica", Ets, e "Le spectateur émancipé", La Fabrique).

Conhecido na Itália por ter se afastado de Louis Althusser por divergências sobre o Maio de 68, depois de ter participado dos seminários de 1965 sobre "Leggere il Capitale" (Mimesis), Rancière, professor da Universidade Paris VIII (Saint Denis) é um protagonista do debate filosófico e político com livros como "Il disaccordo" (Meltemi) e "L'odio per la democrazia" (Cronopio).

A tradução é de Moisés Sbardelotto.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Entrevista - Aminata Traoré

Chega de esmola

"Não acredito mais na generosidade e nos bilhões do G8. Nesta fase em que os próprios países ricos estão em plena tempestade, seria mais útil admitir os erros passados na cooperação com a África e tentar uma mudança de rota nas relações recíprocas". Essa é dura a opinião de Aminata Traoré, ex-ministra da Cultura de Mali e há muito tempo entre as vozes emblemáticas da África em busca de resgate. Os seus livros, dentre os quais o recente "L’Africa umiliata", estão traduzidos também na Itália. Autor é Daniele Zappalà e a tradução de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS

De que nasce o seu ceticismo?


Diante do G8, tenho uma impressão de "déjà vu". No entanto, muitos países africanos atravessam uma fase extremamente grave. Ainda mais do que o dinheiro, é preciso uma outra forma de cooperação. Diante da crise econômica em curso, muitos africanos não compreendem por que os países mais industrializados continuam se recusando a corrigir o seu modelo econômico. Porém, já está claro que a política de cooperação do passado provocou muitas vezes mais problemas do que os que deveria resolver.

A que a senhora se refere?

O problema não é tanto acumular ajudas velhas e novas, mas o paradigma que eles ofereceram. Como contrapartida das ajudas e em nome de uma concepção absoluta ou extremamente rígida do mercado, foi pedido que muitos Estados desmantelassem os serviços públicos e privatizassem diversos setores, favorecendo assim as multinacionais. Mas as chamadas reformas acabaram, em muitos casos, com a extensão ainda maior da miséria das pessoas.

O que a senhora denuncia, portanto, é um certo egoísmo escondido por trás da cooperação?

As ajudas à África foram vistas muito frequentemente só como um modo para proteger ou dissimular certos interesses estratégicos dos próprios países ricos. As riquezas minerais do continente continuam tentando muitos, sobretudo nestes tempos de crise. Sempre se disse aos africanos que exportar matérias-primas equivale a uma relação vencedora para todos. Mas o crescimento e a competitividade permaneceram apenas como belas palavras, enquanto as pessoas do continente repetidamente conheceram crises alimentares, em parte ligadas justamente a um modelo de desenvolvimento distorcido e orientado para servir sobretudo aos interesses dos países do Norte.

Mas muitos economistas defendem que outras vias de desenvolvimento alternativo falharam.

Acredito que a África já possui os recursos fundamentais para o seu próprio desenvolvimento. Mas as regras para que eles deem fruto não são diferentes com relação aos outros continentes. A propósito, eu combato há muito tempo a ideia de uma especificidade africana. Sobretudo, seria necessário deixar de extrair urânio, petróleo, gás, coltan [columbita-tantalita] e outros, sem que haja retornos positivos para as populações. Em outros termos, é preciso denunciar como inaceitável, também na África, o que é inaceitável em todos os outros lugares. Sem esquecer que, em nível ambiental, particularmente no Sahel, já pagamos severamente as consequências de muitos erros do modelo econômico internacional.

A presença de chefes de Estado africanos no G8 não lhe parece ser um sinal positivo?

Também no passado houve convites do gênero. Mas isso não impediu que se continuasse estigmatizando a África. O dinheiro prometido nessas cúpulas tem o sabor amargo de uma esmola que não resolve as distorções de fundo das relações entre o Norte e a África. Posso dizer que cresce na África um certo cansaço também com relação aos apelos de estrelas como Bono [Vox] ou [Bob] Geldof. Não basta choramingar sobre as vítimas, se depois não se fala das causas reais dos males, dentre os quais a renúncia dos Estados africanos à sua soberania em muitos setores. Aquilo que muitos africanos pedem hoje aos seus dirigentes é que tomem nas mãos as suas responsabilidades e que não liquidem com as riquezas nacionais em troca de um prato de lentilhas.

[grifos do blog]

terça-feira, 21 de julho de 2009

Gilson Caroni Filho

Tortura em transe

Carone Filho é colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil.
Fonte: Carta Maior

Há pouco tempo, Eric Hobsbawm, em entrevista publicada no jornal argentino Página 12, disse que o presidente Lula "é o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil", pois "lá existem muitos pobres e ninguém jamais fez tanta coisa por eles". Análise precisa ou arroubo produzido por afinidade ideológica? Nem uma coisa, nem outra. A história em movimento não comporta conclusões apressadas. Os avanços são inegáveis, mas ainda temos um bom pedaço de chão pela frente.

Se o que queremos é consolidar a democracia política como valor permanente, como conjunto de relações sociais a ser permanentemente aperfeiçoado até a afirmação plena da cidadania, um enfrentamento, sempre protelado se faz necessário: julgar e processar os violadores dos direitos humanos durante o regime militar.

Como a história é entendida a partir de recortes da memória, os embates travados, em 2008, entre a Advocacia-Geral da União (AGU), que produziu parecer favorável a torturadores, e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que considera o crime de tortura imprescritível, deixam evidente que, ao contrário de países vizinhos, ainda não há no governo brasileiro uma leitura atualizada da Lei da Anistia, sancionada em plena ditadura.

Falta, como destaca Glenda Mezarobba, professora da Unicamp, "uma interpretação sob a ótica dos direitos humanos e do direito internacional que afirma que não há anistia para crimes como a tortura".

Afirmar que o expediente legal dos militares "propicia um clima de reconciliação e paz nacional" é desconhecer seus objetivos de origem: impedir que a sociedade tivesse direito à verdade, com a revelação dos crimes cometidos e suas circunstâncias, e evitar a punição dos responsáveis por atos repressivos e ilegais. Ademais, é sempre bom lembrar que a versão original da Lei 6.883 já foi bem alterada, o que não autoriza ações procrastinadoras ou leituras canhestras tão ao gosto do presidente do STF.

Não punir torturadores é usar o esquecimento como princípio organizador da ação jurídico-política. É tomar o torturado como um corpo sobre o qual se pode agir perpetuamente, já que simbolicamente continua detido. Sob o manto da impunidade dos seus algozes, permanece suspenso em um pau de arara, enevoado pela cortina de uma ideologia autoritária que impossibilita a plenitude democrática. Não lhe é negada apenas a restituição da dignidade, mas a história do seu tempo, aquilo que dá sentido à vida e às lutas nela travadas. É chaga que não fecha. Personifica, perigosamente, o princípio da impunidade para o torturador que, pela sua natureza e magnitude, agravou a consciência ética da humanidade.

A ditadura nasceu e se afirmou como contrarrevolução. Expressou, como definiu Otávio Ianni, a reação de um novo bloco de poder às reivindicações, lutas e conquistas de operários, camponeses e militares de baixa patente. "Em geral, os golpistas estavam combatendo propostas e realizações de movimentos e governos reformistas". Para tanto, o poder estatal alargou sua ação por todos os círculos da vida nacional, anulando o espaço do privado. O terror e a barbárie espalharam-se pelo tecido da sociedade civil até os mais distantes recantos e poros. Esgotado seu ciclo, por não ter sido enfrentado pelo Estado democrático, sobre ele paira como espectro.

Como noticiou o Jornal do Brasil, "no salão nobre do Clube Militar, generais, brigadeiros e almirantes comemoram o aniversário da chamada por eles Revolução Democrática de 31 de março de 1964". O general Gilberto Figueiredo disse que via as manifestações de protesto dos estudantes "como direito de se manifestar e de interpretarem como querem, é o direito à liberdade".

É uma observação incompleta. Como afirmou Herbert Marcuse, "esquecer é também perdoar o que não seria perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem. Esse perdão reproduz as condições que reproduzem injustiça e escravidão: esquecer o sofrimento passado é perdoar as forças que o causaram – sem derrotar essas forças".

Até quando o general festejará as luzes que permanecem acesas nos porões?


José Luís Fiori X Nildo Ouriques


América Latina, um continente sem teoria

José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

No século XIX, o pensamento social europeu dedicou pouquíssima atenção ao continente americano. Mesmo os socialistas e marxistas que discutiram a “questão colonial”, no final do século, só estavam preocupados com a Ásia e a África. Nunca tiveram interesse teórico e político nos novos estados americanos, que alcançaram sua independência, mas se mantiveram sob a tutela diplomática e financeira da Grã Bretanha. Foi só no início do século XX, que a teoria marxista do imperialismo se dedicou ao estudo específico da internacionalização do capital e seu papel no desenvolvimento capitalista a escala global. Assim mesmo, seu objeto seguiu sendo a competição e a guerra entre os europeus e a maior parte dos autores marxistas ainda compartilhava a visão evolucionista de Marx, com relação ao futuro econômico dos países atrasados, seguros de que “os países mais desenvolvidos industrialmente mostram aos menos desenvolvidos, a imagem do que será o seu próprio futuro”.

Foi só depois da década de 20, que a III Internacional Comunista transformou o imperialismo num adversário estratégico e num obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas nos países “coloniais e semi-coloniais”. De qualquer forma, o objeto central de todas as análises e propostas revolucionárias foi sempre, a Índia, a China, o Egito e Indonésia, muito mais do que a América Latina. Na primeira metade do século XX, os Estados Unidos já haviam se transformado numa grande potência imperialista, e o resto da América Latina foi incluída pela III Internacional, depois de 1940, na mesma estratégia geral das “revoluções nacionais”, ou das “revolução democrático burguesa”, contra a aliança das forças imperialistas com as oligarquias agrárias feudais, e a favor da industrialização nacional dos países periféricos.

Um pouco mais à frente, na década de 1950, a tese da “revolução democrático-burguesa”, e sua defesa do desenvolvimento industrial, foi reforçada pela “economia política da CEPAL” (Comissão Econômica para a América Latina) que analisava a economia latino-americana no contexto de uma divisão internacional do trabalho entre países “centrais” e países “periféricos”. A CEPAL criticava a tese das “vantagens comparativas” da teoria do comercio internacional de David Ricardo, e considerava que as relações comerciais entre as duas “fatias” do sistema econômico mundial prejudicavam o desenvolvimento industrial dos países periféricos. Tratava-se de uma crítica econômica heterodoxa, de filiação keynesiama, mas do ponto de vista prático acabou convergindo com as propostas “nacional-desenvolvimentista”, que foram hegemônicas no continente, depois da II Guerra Mundial.

Na década de 60, entretanto, a Revolução Cubana, a crise econômica e a multiplicação dos golpes militares em toda América Latina provocaram um desencanto generalizado com a estratégia “democrático-burguesa”, e com a proposta “cepalina” da industrialização por “substituição de importações”. Sua crítica intelectual deu origem às três grandes vertentes da “teoria da dependência”, que talvez tenha sido a última tentativa de teorização latino-americana, do século XX.

A primeira vertente - de filiação marxista - considerava o desenvolvimento dos países centrais e o imperialismo um obstáculo intransponível para o desenvolvimento capitalista periférico. Por isto, falavam do “desenvolvimento do subdesenvolvimento” e defendiam a necessidade de uma revolução socialista imediata, inclusive como estratégia de desenvolvimento econômico. A segunda vertente - de filiação “cepalina”- também identificava obstáculos à industrialização do continente, mas considerava possível superá-los através de uma série de “reformas estruturais” que se transformaram em tema central da agenda política latino-americana, durante toda a década de 60. Na verdade, a própria teoria da CEPAL, sobre a relação “centro-periferia”, já não dava conta da relação dos EUA com o seu “território econômico supranacional”, que era diferente do que havia acontecido com a Grã Bretanha.

Por fim, a terceira vertente da teoria de dependência - de filiação a um só tempo marxista e cepalina - foi a que teve vida mais longa e efeitos mais surpreendentes, por três razões fundamentais: primeiro, porque defendia a viabilidade do capitalismo latino-americano; segundo, porque defendia uma estratégia de desenvolvimento “dependente e associado” com os países centrais; e terceiro, porque saíram deste correntes alguns dos principais líderes políticos e intelectuais da “restauração neoliberal” dos anos 90. Como se tivesse ocorrido um apagão mental, velhos marxistas, nacionalistas e desenvolvimentistas abandonaram suas teorias latino-americanistas e aderiram à visão do sistema mundial e do capitalismo, própria do liberalismo europeu do século XVIII.

Nesta linha de pensamento, ainda em 2009, um importante intelectual desta corrente de idéias defendia - por cima de tudo o que passou no mundo, desde o início do século XXI- que: “não existe mais geopolítica nem imperialismo no novo mundo pós-colonial, da globalização, do sistema político e da democracia global.... [e que ] a estratégia clássica da geopolítica de garantir acesso exclusivo a recursos naturais na periferia do capitalismo já não faz sentido não só por seus custos, mas também porque, com a globalização, todos os mercados estão abertos, e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado...[donde], as guerras entre as grandes potências já não fazem sentido porque todas as fronteiras já estão definidas....”[1].

Ingenuidade à parte, os liberais nunca tiveram uma teoria original a respeito da América Latina, nem precisam dela. A repetição recorrente de algumas platitudes cosmopolitas, foi mais do que suficiente para sustentar sua visão da economia mundial, e legitimar sua ação política e econômica idêntica em todos os países. Mas no caso dos intelectuais progressistas do continente, é uma má notícia saber que não existe mais uma teoria capaz de ler e interpretar a história do continente, e fundamentar uma estratégia coerente de construção do futuro, respeitada a imensa heterogeneidade do continente latino-americano.

[1] Bresser Pereira, L.C. “O mundo menos sombrio. Política e economia nas relações internacionais entre os grandes países”, in Jornal de Resenhas. Março de 2009, N° 1. Discurso Editorial, São Paulo, pp: 6 e 7




América Latina, um continente sem teoria?


O professor Nildo Ouriques, da UFSC, contesta artigo de José Luís Fiori. Ouriques é professor do Departamento de Economia e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC. (www.iela.ufsc.br )

Em recente artigo – Um continente sem teoria – José Luis Fiori nos oferece uma brevíssima e curiosa história das idéias na América Latina destinada a espetar o liberalismo que sempre se contentou em repetir nos trópicos as teorias “cosmopolitas” que com freqüência colonial aqui se reproduzem. Contudo, neste breve artigo, Fiori adere ao esporte nacional preferido pela intelectualidade paulista: a crítica à interpretação marxista da dependência e o elogio velado “a escola paulista de sociologia”, especialmente aquela vinculada ao nome de Fernando Henrique Cardoso.

No Brasil, o debate acerca da dependência sempre foi mal compreendido. Na verdade, é quase que desconhecido entre nós. Contudo, este desconhecimento não é resultado do acaso, pois tem sido construído como um instrumento de dominação política e de legitimação do capitalismo dependente no país. As ciências sociais paulistas – USP e UNICAMP especialmente, mas não exclusivamente – manufaturaram um consenso sobre a teoria da dependência que rendeu prestígio acadêmico e posições no aparelho de estado para alguns professores, mas é rigorosamente falso.

O principal “argumento” para a manufatura do consenso é agora repetido por Fiori, para quem a vertente marxista da dependência considerava “o desenvolvimento dos países centrais e o imperialismo um obstáculo intransponível para o desenvolvimento capitalista periférico. Por isto, falavam do “desenvolvimento do subdesenvolvimento” e defendiam a necessidade da revolução socialista imediata, inclusive como estratégia de desenvolvimento econômico”. (Cursiva nossa, NDO)

Sabemos que a fórmula “desenvolvimento do subdesenvolvimento” é uma criação do genial André Gunder Frank. O mineiro Ruy Mauro Marini, quem defendeu a necessidade de uma teoria marxista da dependência e deu importante contribuição nesta direção com seu magistral Dialética da dependência, escreveu que a formula frankiana era mesmo “impecável”. Portanto, posso concluir sem medo de errar que a crítica de Fiori – repetindo agora Fernando Henrique Cardoso, Guido Mantega e José Serra – está dirigida basicamente contra Frank e Marini. Mas esta crítica é essencialmente injusta e não corresponde a história do debate.

André Gunder Frank (1929-2005) jamais disse a asneira de que o capitalismo era inviável na periferia do sistema mundial. Ao contrário, Frank, que pode ser considerado sem dúvida o precursor do debate marxista acerca da dependência, não somente desbancou as teses sobre a feudalidade na América Latina, como foi o principal crítico do capitalismo dependente que se desenvolvia aos olhos de todos. Neste contexto, a crítica recente é injusta porque o próprio Fiori teve o privilégio de assistir aos seminários de Frank no Chile e certamente ouviu não poucas vezes do próprio sua crítica tanto ao reformismo comunista quanto ao estagnacionismo que de certa forma seduziu muita gente antes do chamado “milagre brasileiro”. Mas não era necessário participar das aulas de Gunder Frank para saber o óbvio sobre sua longa e ainda desconhecida obra; bastaria (re)ler Capitalism and underdevelopment in Latin América. Historical studies of Chile and Brazil para entender a posição de Frank e sua notável contribuição ao debate das idéias latino-americanas.

É correto afirmar que em épocas passadas existiam aqueles que defendiam – reciclando idéias cepalinas tingidas de marxismo do Partidão (PCB) – que os “obstáculos externos” ao desenvolvimento representavam uma estratégia imperialista. Postulavam, portanto, que a “nação” deveria se opor ao “imperialismo” o que, obviamente, implicava em uma aliança de classe no interior do país dependente entre o proletariado e a burguesia considerada “nacional”. Mas precisamente contra estes, André Gunder Frank dirigiu suas baterias, destruindo a numa só vez o “mito do feudalismo na agricultura brasileira” e os “obstáculos externos” ao desenvolvimento. Foi uma crítica devastadora e ainda insuperável ao dualismo estruturalista da CEPAL e aliados. A fórmula “desenvolvimento do subdesenvolvimento” capta com precisão esta dinâmica. Ao contrário daqueles que afirmavam os “obstáculos” e/ou o “estagnacionismo” – presentes nos escritos de Furtado em 1965, por exemplo – Gunder Frank e Ruy Mauro Marini afirmavam que o desenvolvimento capitalista efetivamente ocorreria, mas sob a forma do subdesenvolvimento.

Na breve historia narrada por Fiori, existiria uma vertente da teoria da dependência – de filiação a um só tempo marxista e cepalina (!?) – que teve vida mais longa e logrou resultados melhores, num surpreendente e discreto elogio – tanto tardio quanto surrado – à FHC. Contudo, a tipologia construída por este e Enzo Faletto no Dependência e desenvolvimento na América Latina é obviamente de inspiração weberiana e o reconhecimento do conflito de classes no interior da nação que despertou tanta simpatia nos intelectuais progressistas não é, como sabemos, exclusividade de marxistas, porque também existem liberais que valoram a luta de classes sem vacilação, ainda que não tirem as mesmas conclusões que os marxistas.

O “apagão mental” mencionado por Fiori foi produto de uma derrota política que, no Brasil, se consolidou com o golpe militar de 1964. No interior da luta pela democratização, os liberais progressistas fizeram sua parte, caluniando e falsificando a história do pensamento crítico, especialmente da versão marxista da dependência, sem recorrer aos textos de Frank e Marini, muitos ainda sem tradução ao português. O CEBRAP foi um instrumento valioso nesta operação ideológica, mas “respeitáveis figuras” do mundo acadêmico paulista – especialmente nas escolas de economia e sociologia da USP e UNICAMP – aproveitaram a correlação de forças permitida pela ditadura para extirpar a principal contribuição marxista sobre o capitalismo latino-americano da vida intelectual e universitária brasileira. Frank e Marini não foram apenas proscritos: foram também falsificados! Outro tanto ocorreu também com Theotonio dos Santos, autor do imperdível “Socialismo ou fascismo: o dilema latino-americano”, lamentavelmente ainda não traduzido ao português.

Parte daquele “apagão mental” é produto da outrora útil distinção partidária entre tucanos e petistas que sempre ocultou algo importante, cada dia mais difícil de disfarçar: no terreno teórico, tanto uns quanto outros se alinhavam na manufaturação do consenso em favor da versão palatável dos estudos acerca da dependência, representada por Cardoso e Faletto. Não é apenas uma coincidência que a tese doutoral de Guido Mantega, finalmente vertida no livro que adultera completamente as teses de Frank e Marini, foi orientada por Fernando Henrique Cardoso.

Finalmente a questão central. Vivemos num continente sem teoria? É pouco provável. O programa de pesquisa lançado por Frank e Marini não foi superado teoricamente, ainda que sofreu uma derrota política a partir de 1964 pela força do terror de estado. Mas as condições mudaram radicalmente no cenário latino-americano e aquela vertente crítica da dependência, de extração marxista, esta sendo resgatada com muita força em toda a América Latina impulsionada pelos governos do nacionalismo revolucionário existentes na Venezuela, Equador e Bolívia. Mas também no Brasil o interesse pela teoria marxista da dependência voltou e não é mais possível reforçar o coro dominante que anestesiou algumas gerações de estudantes e militantes socialistas. Enfim, se efetivamente queremos construir um projeto nacional-popular para o Brasil – que eu defendo socialista – a tarefa intelectual decisiva é a superação do “apagão mental” que tantas limitações impôs ao ambiente universitário e político brasileiro.

Neste contexto, podemos ou nao compartilhar o ceticismo em relação as insuficiências teóricas nos programas destinados a superar a dependência e o subdesenvolvimento, mas não temos o direito de esquecer e menos ainda alterar os termos do debate de décadas passadas. Daí o caráter surpreendente do artigo de Fiori, pois ele reforça velhos preconceitos e não capta a nova correlação de forças que já esta criando uma nova América Latina sob o lema do “socialismo do século XXI”. Afinal, diante do “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, não era o socialismo a única alternativa indicada por Frank e Marini?

[grifos do blog]

Fonte: Artigos extraídos da Carta Maior


sábado, 18 de julho de 2009

Vito Mancuso

A necessidade do homem de crer em anjos


"O termo anjo fala da capacidade das coisas e das pessoas de serem mensagens de algo mais belo e mais justo. É a 'angelicidade' do ser. [...] Até quando isso ocorrer, existe a esperança de que o mundo não se reduza a um grande centro comercial". A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, publicada no jornal La Repubblica, 17-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



O célebre teólogo alemão Rudolf Bultmann escrevia, há algumas décadas, que "não é possível nos servirmos da luz elétrica ou do rádio, ou fazermos uso, em caso de doença, das modernas descobertas médicas e clínicas, e, ao mesmo tempo, acreditarmos no mundo dos espíritos proposto pelo Novo Testamento".

Era 1941. Consultando a maior livraria do mundo que é a Amazon.com, descobre-se que, pelo contrário, hoje, quando fazemos uso de outras coisas bem além do rádio e da eletricidade, os títulos que se referem a um tipo particular de espíritos, como os anjos, atingem uma quantidade impressionante (431.556), quase o dobro com relação aos que se referem à eletricidade (267.520).

Certamente, entre os livros à venda, encontram-se muitos que tem todo o ar de um hino à irracionalidade ("Nos braços dos anjos", "Como ouvir o seu anjo", "Curar com os anjos", "Caminhar com os anjos", "As mensagens do seu anjo"), mas o fenômeno angélico não se reduz a isso. Basta considerar que não existe civilização e tradição religiosa que não fale deles e que os maiores filósofos da antiguidade dão testemunho deles (o caso mais conhecido é o Sócrates com o seu "daimonion" como voz interior).

A filosofia contemporânea também não cessa de produzir pensamentos com relação a isso, como Massimo Cacciari com "L'angelo necessario" (Adelphi, 1986) e como recentemente a filósofa francesa Catherine Chalier, aluna de Lévinas e professora na Universidade de Paris-X-Nanterre com "Angeli e uomini" (Giuntina, 2009).

Catherine Chalier coloca em evidência o fato de que a Bíblia, elencando as coisas criadas por Deus, não nomeia os anjos (mesmo mostrando-os em ação em outras passagens). Como isso é possível? É uma interrogação que produziu as mais variadas respostas.

A meu ver, é porque a Bíblia não pretende dar um ensinamento direto sobre a existência dos anjos, mas pretende se limitar a educação para uma leitura do real que saiba andar além da dimensão visível apenas. Para a doutrina católica, a existência dos anjos é um dogma de fé, sancionado pelo Concílio Lateranense IV e Vaticano I e reforçado pelo Catecismo, no artigo 328.

Segundo a angeologia de Dionísio Areopagita e de Tomás de Aquino (designado como "doctor angelicus" pela tradição), existem nove coros angélicos, em ordem hierárquica decrescente: Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Principados, Arcanjos e Anjos.

Permanecendo na Bíblia, porém, também pode-se não acreditar na existência dos anjos enquanto puros espíritos dotados de personalidade autônoma. O elemento decisivo para esta última é outra coisa: é a não redutibilidade do real à dimensão visível, é a "angelicidade" do ser, isto é, a possibilidade de algumas experiências ou coisas ou pessoas serem mensageiras de um mundo mais amplo com relação ao mundo visível. Não de um outro mundo, mas deste mundo mesmo, compreendido porém de maneira mais profunda.

Pavel Florenskij falava da "profundidade do mundo, alcançável só com uma reta disposição da alma" e, do mesmo modo, Catherine Chalier se refere a "um excesso inexaurível de beleza e de sentido que apela à inteligência e renova o seu desejo".

Na figura do anjo, está em jogo a ontologia do real, a propriedade das coisas de remeter à profundidade do invisível. "O essencial é invisível aos olhos", ensinava a raposa ao pequeno príncipe, acrescentando que "só se vê bem com o coração". É secundário que Saint-Exupery faz uma raposa falar, enquanto que a Bíblia e o Alcorão colocam os anjos em cena (de resto, já segundo Moisés Maimônides, os animais e até os elementos naturais podem ter uma dimensão angélica, veja-se o "Guia dos Perplexos" II, 6). Decisivo é onde se coloca o verdadeiro centro do ser, o essencial: se na matéria ou em uma dimensão que a transcende e que se costuma chamar de "espírito".

O discurso sobre os anjos toma sentido, saindo do Kitsch que frequentemente pervade os discursos sobre eles, só na medida em que se fale do espírito e do fenômeno concreto para expressar tal e qual o conceito surgiu. O fenômeno na base do conceito de espírito é a liberdade, a liberdade da qual o homem goza com relação à matéria.

O homem é matéria, mas afirmar a sua liberdade significa considerar que o homem não é redutível à matéria, que pode agir e não só re-agir a instintos. O anjo é um símbolo que expressa a liberdade do homem com relação à matéria, ou seja, o espírito. Liberdade e espírito, de fato, remetem ao mesmo fenômeno: o espírito o nomeia na dimensão ontológica; a liberdade, na dimensão operativa. E como a liberdade pode ser determinada pelo bem ou pelo mal, do mesmo modo o espírito: e assim, além dos anjos bons, a tradição conhece também os anjos ruins e rebeldes, os demônios, cujo chefe é "o grande Dragão, a primitiva Serpente, aquele que é chamado Demônio e Satanás, o sedutor do mundo inteiro" (Apocalipse 12,9).

O espírito-liberdade é invisível, mas a invisibilidade não impede que, às vezes, ela seja advertido pela parte mais alta da mente (o "apex mentis"), onde o conhecimento ligado ao sentidos se liga ao conhecimento que procede da razão pura em um composto não demonstrável more geométrico, mas igualmente denso de significado, às vezes tão denso de significado que enche a personalidade por inteiro, em uma espécie de sublime emoção da inteligência.

Spinoza em "Ética" fala com relação ao "terceiro olho". Existe um conhecimento sensível (primeiro olho) e existe um conhecimento da razão pura (segundo olho), mas é possível um conhecimento mais alto, que procede de um olho que, materialmente, o homem não tem, mas que, espiritualmente, pode exercitar. O conhecimento intuitivo que Tomás de Aquino atribui aos anjos é o terceiro olho do qual Spinoza fala. Às vezes acontece de chegarmos a conhecer (uma pessoa, uma obra de arte, uma teoria científica) como por encanto, sem mediação, sem esforço intelectual, com uma faculdade superior ao intelecto, que, se não se pode agir sem a sensibilidade e o intelecto, nem por isso é redutível a eles. É o terceiro olho, é o conhecimento penetrante, agudíssimo, que chove do alto, e que os grandes conhecedores do fenômeno humano souberam descrever.

Perorar o espaço reservado ao invisível na nossa sociedade é uma das tarefas que o belo livro de Catherine Chalier pretende perseguir. O perigo que estamos correndo, de fato, não é pequeno: em uma sociedade que não dá crédito ao invisível, não pode haver as condições mentais para falar fundadamente daqueles valores essenciais que a tradição metafísica denomina "transcendentais", ou seja, que transcendem a esfera imanente do ser, mas de cuja imanência tem uma necessidade incontrolável.

Sem confiança no invisível (seja ele o "daimonion" de Sócrates, a brisa suave do profeta Elias, o espírito de Hegel), acaba-se inexoravelmente por falar só de legalidade, e não de justiça; só de fascínio, e não mais de beleza; só de utilidade, e não mais de bem; só de exatidão, e não mais de verdade.

O anjo é o nome que a mente deu àquilo que tem o poder de revelar uma dimensão secreta do ser, indisponível, não comerciável, que se compreende só se retraindo em si mesmo, porque existe primariamente ali, na mais íntima interioridade, e que dá força, coragem e serenidade para agir com espírito novo na realidade do mundo.

No dia 27 de junho, este jornal publicava as palavras de um iraniano que tinha escutado Joan Baez cantar "We shall overcome" na sua língua: "Não pude conter as lágrimas quando ele cantou na minha língua. Sempre amei Joan Baez e, depois de vê-la assim, acho que ela é um anjo".

Não é retórica. O termo anjo fala da capacidade das coisas e das pessoas de serem mensagens de algo mais belo e mais justo. É a "angelicidade" do ser. Essa dimensão existe, e se os homens desde sempre falaram e continuam falando de anjos é porque fazem experiência da profundidade do ser.

Até quando isso ocorrer, existe a esperança de que o mundo não se reduza a um grande centro comercial.

[grifos do blog]

Para ler mais:



quinta-feira, 16 de julho de 2009

Eduardo Galeano

Os mapas da alma não têm fronteiras

Palavras proferidas por Eduardo Galeano, em Montevidéu, dia 9 de julho, quando foi condecorado com a Ordem de Maio, da República Argentina. Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior



Permitam-me agradecer esta premiação que estou recebendo, que para mim é um símbolo da terceira margem do rio. Nesta terceira margem, nascida do encontro das outras duas, florescem e se multiplicam, juntas, nossas melhores energias, que nos salvam do rancor, da mesquinhez, da inveja e de outros venenos que abundam no mercado.

Aqui estamos, pois, na terceira margem do rio, argentinos e uruguaios, uruguaios e argentinos, rendendo homenagem a nossa vida compartilhada, e, portanto, estamos celebrando o sentido comunitário da vida, que é a expressão mais íntima do sentido comum.

Ao fim e ao cabo, e perdão por ir tão longe, para um ponto onde a história ainda não se chamava assim, lá no remoto tempo das cavernas, como se viraram para sobreviver aqueles indefesos, inúteis, desamparados avôs da humanidade? Talvez tenham sobrevivido, contra toda evidência, porque foram capazes de compartilhar a comida e souberam defender-se juntos. E se passaram os anos, milhares e milhares de anos, e vemos que o mundo raramente recorda essa lição de sentido comum, a mais elementar de todas e a que mais nos faz falta hoje.

Eu tive a sorte de viver em Buenos Aires, nos anos 70. Cheguei corrido pela ditadura militar uruguaia e acabei saindo corrido pela ditadura militar Argentina. Não saí: me saíram. Mas nestes anos comprovei, uma vez mais, que aquela lição pré histórica de sentido comum não havia sido esquecida de todo. A energia solidária crescia e cresce ao vai e vem das ondas que nos levam e nos trazem, argentinos que vêm e vão, uruguaios que vamos e viemos. E no tempo das ditaduras, soubemos compartilhar a comida e soubemos defender-nos juntos, e ninguém se sentia herói nem mártir por dar abrigo aos perseguidos que cruzavam o rio, indo para lá ou vindo de lá.

A solidariedade era, e segue sendo, um assunto de sentido comum e, portanto, era, e segue sendo, a coisa mais natural do mundo. Talvez por isso sua energia, sempre viva, foi mais viva do que nunca nos anos do terror, alimentada pelas proibições que queriam mata-la. Como o bom touro de lida, a solidariedade cresce no castigo.

E quero dar um testemunho pessoal de meu exílio na Argentina.

Quero render homenagem a uma aventura chamada Crise, uma revista cultural que alguns escritores e artistas fundaram com o generoso apoio de Federico Vogelius, onde eu pude aportar algo do muito que me havia ensinado Carlos Quijano, em meus tempos do semanário Marcha.

A revista Crise tinha um nome um tanto deprimente, mas era uma jubilosa celebração da cultura vivida como comunhão coletiva, uma festa do vínculo humano encarnado na palavra compartilhada. Queríamos compartilhar a palavra, como se fosse pão.

Nós, sobreviventes daquela experiência criadora, que morreu afogada pela ditadura militar, seguimos acreditando no que acreditávamos então.

Acreditávamos, acreditamos, que para não ser mudo é preciso começar por não ser surdo, e que o ponto de partida de uma cultura solidária está na boca daqueles que fazem cultura sem saber que a fazem, anônimos conquistadores dos sóis que as noites escondem, e eles, e elas, são também aqueles que fazem história sem saber que a fazem. Porque a cultura, quando é verdadeira, cresce desde o pé, como alguma vez cantou Alfredo Zitarrosa, e desde o pé cresce a história. A única coisa que se faz desde cima são os poços.

A ditadura militar acabou com a revista e exterminou muitas outras expressões de fecundidade social. Os fabricantes de poços castigaram o imperdoável pecado do vínculo, a solidariedade cometida em suas múltiplas formas possíveis, e a máquina da separação continuou trabalhando a serviço de uma tradição colonial, imposta pelos impérios que nos dividiram para reinar e que nos obrigam a aceitar a solidão como destino.

À primeira vista, o mundo parece uma multidão de solidões amontoadas, todos contra todos, salve-se quem puder; mas o sentido comum, o sentido comunitário, é um bichinho duro de matar. A esperança ainda tem quem a espere, alentada pelas vozes que ressoam desde nossa origem comum e nossos assombrosos espaços de encontro.

Eu não conheço felicidade maior que a alegria de reconhecer-me nos demais. Talvez essa seja, para mim, a única imortalidade digna de fé. Reconhecer-me nos demais, reconhecer-me em minha pátria e em meu tempo, e também me reconhecer em mulheres e homens que são meus compatriotas, nascidos em outras terras, e reconhecer-me em mulheres e homens que são meus contemporâneos, vividos em outros tempos.

Os mapas da alma não têm fronteiras.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Projeto de Lei 92 significa a privatização de todos os serviços essenciais do país

Projeto de Lei 92 significa a privatização de todos os serviços essenciais do país

Escrito por Gabriel Brito - jornalista - e Valéria Nader - economista, é editora do Correio da Cidadania.
Fonte: Correio da Cidadania


Mais uma vez, o país se depara com um projeto de lei de claro caráter privatista, com o enfraquecimento do Estado em suas áreas de atuação essencial. No caso, o projeto de Lei Complementar 92, que tramita na Câmara, com o apoio dos próprios quadros governamentais. Prova emblemática de seus perigos é a confluência com os partidos de oposição de direita na aprovação do projeto.

Com vistas a analisar mais essa proposta de desmonte do Estado, que de uma tacada só abriria a porteira para as fundações estatais de direito privado em todas as áreas de importância social - de educação e saúde, passando pela cultura, ciência e tecnologia -, o Correio da Cidadania conversou com o deputado federal do PSOL Ivan Valente, que em linhas gerais conclama a mobilização popular como maneira de barrar outro projeto de alta influência na promoção dos direitos constitucionais brasileiros.

Para o deputado, o projeto nada mais é que uma busca de privatização dos mais essenciais e rentáveis serviços públicos, de modo a aplicar o projeto de reforma do Estado iniciado por Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro de FHC. Também diz que o projeto apenas contempla a conhecida lógica de apoio incondicional aos setores mais poderosos de cada área, passando por cima da consulta popular e esfacelando ainda mais os direitos dos trabalhadores que serão atingidos.

Correio Cidadania: Como o senhor avalia o projeto de lei complementar 92 (PLP), que regulamenta a entrada de entidades estatais de direito privado em diversas áreas de prestação de serviço público, como saúde (inclusive nos hospitais universitários), assistência social, cultura, desporto, ciência e tecnologia, meio ambiente, previdência complementar do servidor público, comunicação social e promoção do turismo nacional?

Ivan Valente: Trata-se de uma continuidade do projeto de reforma do Estado do ministro Bresser Pereira na época do Fernando Henrique, que estabelecia critérios de mercado na administração pública, ou seja, atacando o público para defender o privado. É um projeto de privatização da saúde, que se coloca contra os princípios do SUS de saúde universal, igualitária e como direito essencial.

Esse projeto, levado adiante através do ministro da Saúde José Gomes Temporão, é um atentado ao próprio SUS, contrariando o seu foro democrático e também a própria Conferência Nacional da Saúde, atropelando a consulta popular e a posição coletiva daqueles que trabalham no setor.

CC: Considerando uma certa ‘inoportunidade’ desse projeto - quanto mais partindo de um presidente egresso das classes populares e com discurso voltado às camadas mais desfavorecidas -, não estaria havendo forte pressão de lobbies, com pesada ingerência no Congresso, com o fim de assumir serviços rentáveis?

IV: Rigorosamente, tal medida vai realmente atender a demandas que são muito interessantes ao setor privado.

É uma política que provoca a flexibilização das concorrências públicas, com outros vínculos de trabalho diferentes da CLT, numa lógica que atenta contra o sistema de seguridade social. O projeto permite, por exemplo, que cada fundação faça seus próprios planos de carreira e de salários. Assim, temos a possibilidade de salários diferenciados para a mesma função, numa distorção enorme no serviço público.

Outra questão fundamental é saber como serão controladas essas fundações de direito privado. E aí reside um dos pontos centrais: não haverá controle público do sistema de saúde. Qual a função dos conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde frente a uma fundação estatal com esse caráter? É um problema muito grave, que vai contra a Constituição, que, entre os artigos 196 e 200, regulamenta o SUS e a proteção da saúde pelo próprio Estado.

Criam o Conselho Consultivo Social. Consultivo, isto é, atropelaram o deliberativo. Fica claro dessa forma que não haverá controle social sobre as fundações.

CC: O artigo 4º do projeto diz, neste sentido, que "a fundação pública que celebrar contrato com o poder público poderá ter ampliada sua autonomia gerencial, orçamentária ou financeira". Baseando-se nos fatos recentes envolvendo tais fundações, o PLP 92 parece realmente corroborar com a falta de transparência no uso da verba pública.

IV: Não só com a falta de transparência, como também com o mau uso dos recursos públicos e a corrupção, como já pudemos observar em diversas clínicas nas fundações do mesmo caráter que foram criadas nas universidades estaduais e federais. É preciso uma investigação rigorosa sobre isso, para dizer o mínimo.

E, certamente, o processo de aumento das privatizações e falta de controle público descamba para casos de corrupção ou falta de transparência.

CC: Como o senhor prevê que será o futuro profissional dos trabalhadores envolvidos em cada área que a nova lei atingir?

IV: Certamente, haverá uma precarização dos direitos, algo que se encaixa dentro dessa lógica. Passa-se por cima da CLT e o cenário impõe uma lógica na qual os trabalhadores são vistos como recursos humanos. Não há respaldo na seguridade social e procura-se dificultar a aposentadoria.

Trata-se de algo que interessa à iniciativa privada, pois há aumento do tempo de serviço exigido para a conquista da aposentadoria, pagando-se aos aposentados menos que aos funcionários da ativa. Uma lógica de mercado, de rendimento, que não cabe quando se trata de responder pela saúde do trabalhador.

CC: Não é um contra-senso esta iniciativa em meio a um período de crise, no qual até mesmo os liberais, ainda que somente no discurso, se rendem à importância do papel do Estado no controle social e econômico? Não é demonstrativa da falta de projeto nacional e soberano nas áreas mais importantes de nossa sociedade?

IV: Os próprios liberais e o governo Lula, como tal – dá vergonha que o PT seja assim também –, não deixam mentir. Na totalidade da política econômica há uma lógica liberal, de comprometimento de quase 70% do orçamento com os juros da dívida pública e sua rolagem, salvando o ideário que tem predominado, de socorro às montadoras, ao agronegócio...

No entanto, os direitos dos trabalhadores e dos usuários do serviço público têm sido atacados pelo governo, que na verdade trabalha contra a promoção de tais direitos. Basta ver que não há iniciativa por garantia de empregos, por distribuição de renda ostensiva...

É preciso de muita resistência para que se impeça a sociedade de assimilar os valores empresariais de mercado, acabando na prática com o controle público.

CC: Já sabemos dos efeitos deletérios do atrelamento de instituições públicas a fundações de direito público ou privado, a exemplo da própria USP, cuja ligação com fundações, especialmente na faculdade de Economia, tem levantado profundas discussões relativas ao desvirtuamento do sentido maior da educação, cada vez mais voltada a determinantes do mercado. Que efeitos o senhor acredita que o projeto provocará no setor educacional?

IV: Na UnB também acontece o mesmo, entre muitos outros locais. A cidade de São Paulo tem quase 40 fundações, em outros estados elas também já são presentes; enfim, na educação, essa política já aparece com força.

Eu diria que algumas fundações são exemplos exatos do que não pode ser uma universidade. É preciso fazer um combate sério contra isso tudo, no sentido de que se consiga mais transparência nesses processos.

Porém, o problema é que tal política tem o apoio de nossa mídia, uma vez que a lógica dela é a do Estado mínimo também. Ela só se manifesta contrariamente quando entra no ralo da corrupção, para falar da cadeira do chefe que custou 800 reais e outros acontecimentos do gênero. No entanto, evita discutir o essencial, no caso, o controle social do Estado sobre o setor da educação.

CC: O setor de saúde de São Paulo é também emblemático dos problemas advindos da ‘terceirização’. As ‘Organizações Sociais’, por exemplo, têm recebido severas críticas relativas ao favorecimento de grupos que prestam os serviços em detrimento do atendimento às populações mais carentes. Com este projeto de lei teremos a generalização do problema por vários setores e por todo o país, não?

IV: As OS e as OSCIPS vieram a partir do citado projeto de reforma de Estado, do Bresser, e rigorosamente são um problema que precisa ser enfrentado. Elas têm liderado a lógica de redução do Estado, que por sua vez não faz o enfrentamento dos problemas a que se propõe, em todas as áreas.

Por isso somos favoráveis à retomada do papel do Estado e também à responsabilização daqueles que governam, que deveriam cuidar do nosso projeto de sociedade e nação.

CC: Houve alguma discussão com a sociedade a fim de se averiguar o real interesse popular em ver a promoção de seus direitos essenciais ficar cargo do setor privado?

IV: Eu tinha esperança de que o próprio governo barrasse o projeto, até por conta de ter promovido a Conferência Nacional de Saúde, mas não foi o que aconteceu.

Assim, entregar um projeto desses com o apoio da oposição de direita - PSDB, DEM, PMDB - é atirar carne aos leões. Alguns vão resistir, pois são capazes de entender que essas áreas fazem parte do direito social, mas será necessária muita mobilização para evitar os avanços privatizantes.

John L. Allen Jr.

A pergunta de 'um milhão de dólares' sobre a encíclica de Bento XVI

Agora que a encíclica do Papa Bento XVI sobre economia, "Caritas in Veritate", foi finalmente publicada, a previsível guerra de distorções está a caminho. Reações de partidários tanto da esquerda quanto da direita católicas já parecem ser claras, e podem ser referidas como estratégias a la "carta de Khrushchev" [1] e a la "Blue Meanies" [2] respectivamente. A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 09-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Em muitos casos, a esquerda parece estar abordando a "Caritas in Veritate" como o governo Kennedy lidou com as comunicações do primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev durante a crise dos mísseis cubanos – respondendo ao que eles gostavam e ignorando o resto. Por isso, os comentaristas liberais louvaram o que Bento disse sobre os sindicatos, a redistribuição global das riquezas e uma forma de governo planetária, mas em grande parte passaram por cima do tratamento dado por Bento às "questões da vida", incluindo o aborto, o controle de natalidade, o casamento gay e o controle populacional. Ao se ler alguns comentários católicos progressistas, tem-se a impressão de que as seções 15, 28 e 74-75 da "Caritas in Veritate", dedicados à defesa da vida humana e da bioética, simplesmente não estão lá.

A estratégia a la carta de Khrushchev também descreve uma grande parte da cobertura da "Caritas in Veritate" pela imprensa, intrigada pela ironia de que um "papa conservador publica documento liberal" e desejando passar por cima de qualquer coisa que não se encaixe exatamente nessa definição.

Na direita, enquanto isso, outro jogo está em andamento – descobrir uma conspiração de Blue Meanies para censurar as seções da "Caritas in Veritate" que os conservadores consideram desanimadoras. O exemplo mais claro veio de George Weigel, que distinguiu entre as "passagens de ouro" da encíclica, que ele acredita que vêm do próprio Papa, e as "passagens em vermelho", que Weigel atribui a um grupo "justiça e paz" do Vaticano, ainda ressentido pelo golpe que a sua agenda anticapitalista recebeu da encíclica "Centesimus Annus", do Papa João Paulo II, em 1991.

Claro, o obstáculo principal para qualquer "exegese Blue Meanie" é explicar como um brilhante pontífice-professor pôde falhar ao se dar conta de que seções inteiras de um grande documento magisterial, sobre o qual ele trabalhou durante anos, distorceram, de alguma forma, o seu próprio pensamento. (É um tributo à influência de Weigel que um antigo oficial do Vaticano tenha me puxado de lado na quinta-feira pela manhã, em Roma, no corredor de saída do apartamento papal, talvez a dez metros de onde Bento estava tendo um encontro com o presidente da Coreia do Sul, para me perguntar se eu havia visto o artigo de Weigel... mesmo que fosse para me dizer que ele havia achado o texto nada persuasivo).

No fim, é difícil evitar a sensação de que ambas as leituras parecem estar sofrendo para dar alguma explicação.

A pergunta de um milhão de dólares

Com o passar do tempo, depois que essa divertida mas provavelmente efêmera rodada de distorções termine, os especialistas podem começar a se debruçar sobre algumas das questões verdadeiramente interessantes levantadas pela "Caritas in Veritate", mas não resolvidas realmente por ela. Tais pontos podem incluir o que Bento XVI tem em mente por novas "sinergias" globais entre os sindicatos, e se a destituição do Papa das "subdivisões abstratas" na doutrina social da Igreja – sobretudo entre os defensores pró-vida e os defensores justiça-e-paz – pode ser traduzida em um espírito mais unificado das bases católicas.

Entretanto, se existe uma pergunta de um milhão de dólares a respeito da "Caritas in Veritate" – um ponto em que o ensinamento de Bento parece interessante e importante, mas chora para ter um pouco mais de carne no osso – é provavelmente esta: como seria exatamente a "verdadeira Autoridade política mundial" pedida com insistência pelo Papa?

Mantendo a doutrina social papal desde a "Pacem in Terris", de João XXIII, de 1963, Bento XVI defende que o desenvolvimento de um sistema global de governo é uma prioridade urgente, tanto "para prevenir o agravamento da crise", como "para realizar um oportuno e integral desarmamento, a segurança alimentar e a paz, para garantir a salvaguarda do ambiente e para regulamentar os fluxos migratórios".

Porém, os contornos do que o Papa chama de uma "verdadeira Autoridade política mundial" são notoriamente confusos.

Os próprios Papas – incluindo, é preciso dizer, Bento XVI na "Caritas in Veritate" – geralmente não parecem ser totalmente claros sobre o que têm em mente. Às vezes, parece que estão falando de um governo mundial formal e constitucional – uma espécie de Nações Unidas com esteroides. Porém, na mesma hora, os Papa comumente invocam o princípio de subsidiariedade, que implica em um sistema de transmissão do ato de tomar decisões do mais baixo nível possível. Como esquadrinhar esses dois pontos ainda é um grande mistério.

Para dar apenas um exemplo, João Paulo II escreveu em sua mensagem de 2003 para o Dia Mundial da Paz que a doutrina social da Igreja não está voltada necessariamente a um "super-Estado global", mas, antes, a "sublinhar a urgência de acelerar os processos já em curso que visam responder à solicitação quase universal de formas democráticas no exercício da autoridade política". O que precisamente isso significa nunca foi explicado realmente.

Muitos especialistas consideram a ideia de um governo planetário como talvez a brecha mais reluzente entre a promessa da doutrina social da Igreja e a sua concretização. Como disse o sociólogo jesuíta norte-americano Pe. John Coleman, a doutrina social da Igreja, nesse ponto, continua sendo "extremamente vaga e moralista".

O renomado eticista Pe. Bryan Hehir explicou esse problema uma vez desta forma: a doutrina social da Igreja surgiu em uma era em que os atores principais eram Estados-nações e instituições de mediação dentro dos Estados-nações, especialmente famílias, associações civis e Igrejas. Em termos formais, a doutrina social da Igreja tem relativamente pouca coisa a dizer sobre organizações intergovernamentais como o Banco Mundial, ou a Interpol ou a Organização Mundial do Comércio, ou o setor crescente das ONGs. Na era da globalização, esses atores não estatais parecem destinados a carregar uma parte crescente do peso em termos de governo.

Na "Caritas in Veritate", Bento XVI se refere ao "governo [no sentido global, governance] da globalização", não ao "governo" [no sentido administrativo, government] – indicando que o Papa está preocupado com o fato de que há uma variedade de formas para exercer o controle sobre a vida econômica além da União Europeia ou de outras novas burocracias planetárias.

Sob essa luz, o que vem a seguir são duas linhas de reflexão possíveis, que acadêmicos, ativistas e outros interessados em dar consistência à promessa da doutrina social da Igreja nesse ponto podem querer seguir.

1. Um núncio para a Standard & Poor's [3]

Primeiro, no século XXI, um grande acordo de governo não é realizado por Estados tradicionais, nem mesmo por agrupamentos de Estados como o G8 (cujo encontro ocorreu nesta semana na Itália), mas, ao invés, pelo que os especialistas chamam de "redes de interesses políticos globais" [global policy networks]. Essas redes podem ser exclusivamente privadas ou uma mistura de atores públicos e privados, mas em ambos os casos elas exercem uma enorme influência sobre a vida econômica global.

Dois exemplos ajudam a esclarecer. Assim como Coleman observou, a Standard & Poor's não é, de forma nenhuma, um governo. É uma empresa de pesquisa privada (uma divisão da McGraw-Hill) que analisa reservas e apólices. Apesar disso, ela tem um grau de poder surpreendente para regular o mercado de apólices internacional. Como em 2007, quando mais de 4,5 trilhões de dólares de investimentos internacionais estavam relacionados à família Standard & Poor's e seus serviços de índices financeiros.

De forma semelhante, a empresa privada Internet Corporation for Assigned Agencies (ICANN), com sede em Marina del Rey, Califórnia, supervisiona a atribuição de domínios e endereços IP na Internet. Com efeito, é a coisa mais próxima que o ciberespaço tem de um "governo", mesmo que ela não seja certamente uma autoridade pública, no sentido tradicional.

Dar consistência ao que seria uma "verdadeira Autoridade política mundial" no século XXI significaria, inevitavelmente, levar a sério o papel dessas redes de interesses globais – encorajando-as naquilo em que são mais hábeis para executar a governança de forma mais eficiente do que os Estados tradicionais, mas também insistindo para que sejam inspiradas por um sentido do bem comum, em vez de se inspirarem exclusivamente nos interesses de seus clientes ou acionistas.

Aqui há uma possibilidade a ser ponderada.

Alguém poderia argumentar que, ao concentrar muito de sua energia diplomática nas Nações Unidas e em seus Estados membros, as estruturas oficiais da Igreja ainda não estão em sincronia com o lugar em que a "ação" emergente está nestes dias em termos de governo global. Talvez, o que o Vaticano realmente precise no século XXI é de um núncio, ou seja, um embaixador papal para a Standard & Poor's! Se uma agência privada de índices financeiros vai se abrir a uma indicação como essas é outra questão, mas o ponto é que a Igreja precisa pensar criativamente sobre como desenvolver o que Bento XVI pediu na "Caritas in Veritate": "novas modalidades de exercício" do poder público no governo global.

2. Catolicismo horizontal

Em uma conferência em outubro de 2004 na Loyola Marymount University, Coleman considerou o paradoxo de que o Catolicismo Romano deveria ser o ator religioso mais bem posicionado para se engajar nas questões levantadas pela globalização, mas, além do alívio das dívidas, o seu impacto tem sido marginal. Como explicar isso?

Citando um estudo de 1998, realizado por Margaret Keck e Kathryn Sikkink, intitulado "Activists Beyond Borders", que conclui que o ativismo global de sucesso é "não hierárquico, envolve amplas parcerias e permanece verdadeiramente flexível", Coleman indicou a hipótese de que as estruturas oficiais da Igreja católica "podem carecer de flexibilidade organizacional interna para respostas rápidas e conectadas para as questões globais assim que estas surjam".

Como resultado, Coleman afirma que "subgrupos católicos semiautônomos e mais locais serão os principais atores das redes de ativismo global".

Independentemente se o diagnóstico da burocracia vaticana está correto ou não, Coleman certamente conseguiu iluminar a importância do que poderia ser chamado de "catolicismo horizontal", no sentido da existência de diversos movimentos, associações, redes específicas e comunidades religiosas engajados nas questões que surgem por causa da globalização, em uma variedade impressionante de formas. Essas formas maleáveis do catolicismo e de rápida resposta irão exercer um papel continuamente mais importante no sentido de demarcar o ativismo social católico ao longo do século.

Um indicador disso é a recente expansão de ONGs católicas nas e ao redor das Nações Unidas. De acordo com um estudo realizado em 2005 por Kevin Ahern, quando a ONU começou a certificar ONGs em 1947, havia dois grupos católicos: a União Internacional das Ligas Femininas Católicas e a União Católica Internacional de Serviço Social. Em 1989, pouco menos de 30 ONGs católicas haviam sido reconhecidas pelo Conselho Econômico e Social da ONU. Em 2005, afirmou Ahern, havia 63, ou seja, o total havia mais do que dobrado. Três dessas ONGs católicas detinham "status geral", ou seja, estavam entre os mais importantes e influentes órgãos não-governamentais: Caritas Internationalis, as Congregações de São José, e os Franciscanos Internacionais.

No catolicismo do futuro, ONGs, organizações católicas internacionais, novos movimentos, ordens religiosas e uma variedade de redes específicas sem liderança ou estruturas formais podem dar forma ao papel público da Igreja mais efetivamente do que os seus líderes oficiais.

Enquanto a Igreja elabora a sua visão de uma autoridade política mundial, suas próprias ONGs e outras redes de ativismo informais deveriam ter um lugar central na mesa. A experiência e a intuição de seu catolicismo horizontal podem também ser um fértil "locus teologicus", no sentido de ser um fundamento valioso para novas trajetórias para a doutrina social da Igreja.

* * *

Uma velha piada sobre Roma diz que, no verão, as únicas coisas que se mexem por lá são "cani e americani", cachorros e americanos. Frequentemente, a combinação de intenso calor e as longas férias italianas significa que lá é um lugar muito sossegado.

Esta semana, porém, tem sido uma rara exceção, repleta de drama no compasso do Vaticano. Além da publicação da "Caritas in Veritate" na terça-feira, durante uma coletiva de imprensa lotada, também vimos uma agitação no escritório do Vaticano que trata das relações com os tradicionalistas católicos, e audiências papais com uma multidão de chefes de Estado – incluindo, claro, o primeiro encontro, amplamente divulgado, entre Bento XVI e o presidente norte-americano Barack Obama, nesta sexta-feira.

Dadas todas as outras coisas que estão ocorrendo, os reparos de Bento na Comissão Ecclesia Dei, criada em 1988 por João Paulo II para supervisionar as relações com os seguidores do falecido arcebispo francês Marcel Lefebvre, passou despercebida até certo ponto. Porém, se fosse em qualquer outra semana, teria sido a grande manchete do Vaticano por duas razões.

Primeiro, ao levar a Ecclesia Dei para o controle direto da Congregação para a Doutrina da Fé, Bento deixou claro que a "reabilitação" dos tradicionalistas não é apenas uma questão de achar as soluções políticas e canônicas certas para reabsorver a Fraternidade São Pio X fundada por Lefebvre. Refere-se, porém, a saber lidar com as questões doutrinais que ainda "permanecem abertas", como dizia uma declaração do cardeal norte-americano William Levada, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e agora presidente da Ecclesia Dei.

Essas questões em aberto pertencem não apenas à antiga missa em latim ou a outras questões litúrgicas, mas também ao coração da crítica tradicionalista da Igreja desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), especialmente com relação ao ecumenismo, ao diálogo inter-religioso e à liberdade religiosa – todos eles artigos novos do magistério da Igreja, sobre os quais muitos tradicionalistas guardam sérias reservas. Com efeito, Bento indicou que não se pode passar por cima dessas diferenças ou postergá-las enquanto o processo de reconciliação segue adiante.

Segundo, a medida de Bento é digna de nota porque significou que os líderes anteriores da Ecclesia Dei perderam os seus empregos. O presidente anterior, o cardeal colombiano Darío Castrillón-Hoyos, e o antigo secretário, Dom Camille Perl, estão ambos sem emprego agora. (Castrillón-Hoyos tem 80 anos e, por isso, na idade normal de aposentadoria para os cardeais).

Como a Ecclesia Dei teve um papel central na preparação da decisão de Bento, em janeiro, de revogar as excomunhões para quatro bispos tradicionalistas – incluindo um deles, Richard Williamson, que questionou o Holocausto –, muitas pessoas de dentro e de fora do Vaticano tendem a atribuir grande parte da culpa pelo furor que se originou depois da medida a Castrillón-Hoyos e a Perl. Justa ou injustamente, a decisão de Bento nesta semana foi lida, por isso, como uma forma gentil de limpar a casa.

Em uma instituição em que é raro que alguém perca seu trabalho devido a supostos erros ou falhas, o gesto do Papa com relação à responsabilidade – mesmo que oblíqua e indireta – causou surpresa.

* * *

Como indicado acima, o Vaticano é a instituição globalizada mais original do mundo. Com relação a isso, é importante destacar que, enquanto os funcionários do Vaticano certamente compreendem que a visita de Obama tem um significado especial, dificilmente outros negócios vão parar totalmente por causa disso.

No começo desta semana, o Papa se encontrou com o primeiro-ministro do Japão, Taro Aso, católico. Na quinta-feira, o dia anterior à visita de Obama, Bento XVI se encontra tanto com o primeiro-ministro da Austrália e com o presidente da Coréia do Sul e, no sábado, o dia depois de Obama, Bento irá acolher o primeiro-ministro do Canadá.

Toda essa atividade pode ajudar a explicar por que o Papa e seus conselheiros no Vaticano abordam o governo Obama a partir de uma perspectiva diferente e mais global do que os católicos norte-americanos, compreensivelmente mais focados na cena doméstica.

Na quinta-feira, eu tive a oportunidade de subir ao quarto andar do Palácio Apostólico para ver o Papa receber o presidente Lee Myung-Bak da Coreia do Sul – um homem de negócios e ex-prefeito de Seul, que, afirma sua biografia oficial, fez votos de doar tudo o que pertence, exceto a sua residência familiar, ao Estado coreano. Myung-Bak também é presbiteriano e teve um esmagador apoio de quase 30% da população coreana que é cristã. Em 2008, alguns monges budistas da Coreia do Sul literalmente saíram às ruas para protestar contra o que eles chamaram de políticas "pró-cristãs". (Ele depois se desculpou por qualquer aparência de discriminação).

O Papa estava em boa forma e gastou um tempo considerável olhando os livros e fotos que Myung-Bak trouxe e escutando cuidadosamente as explicações dos presentes em italiano por meio de um intérprete. Dom Georg Gänswein também pareceu bem, passando alguns poucos momentos no corredor conversando com os repórteres, enquanto o Papa e o presidente coreano estavam de portas fechadas.

No final do encontro, aqueles que estavam no grupo de imprensa destacado para o evento, como eu, tiveram a oportunidade de saudar o Papa. Aqui está um sinal de que o Vaticano se dá conta de que o encontro com Obama está na mente do Papa: enquanto eu caminhava, Bento XVI olhou para mim e disse: "Ah, um americano... Veremo-nos amanhã, então!".

Notas:

1. Carta do premier soviético Nikita Khrushchev aos EUA, em 1962, que propunha a retiradas dos mísseis soviéticos e de suas tropas se os EUA garantissem não invadir Cuba, o que acabou ocorrendo durante aquilo que ficou conhecido como a Guerra dos Mísseis. [voltar ao texto]

2. Os Blue Meanies eram os seres extremamente maus do filme "Yellow Submarine", dos Beatles, que dominavam Pepperland, retirando da cidade toda a sua cor e música, com mísseis antimúsica e maçãs verdes, e transformando seus habitantes em rochas. No final, os Beatles conseguem livrar Pepperland da presença dos Blue Meanies. [voltar ao texto]

3. A companhia Standard & Poor's é uma das principais fontes de ratings de crédito, índices, informações sobre investimentos, avaliação de risco e dados do mundo, além de ser criadora e mantenedora do índice S&P 500.

José de Souza Martins

Caritas in Veritate. O comentário de um sociólogo

Sob o título “A nova encíclica do amor“, José de Souza Martins, sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, publica um comentário sobre a recente encíclica de Bento XVI, no jornal O Estado de S. Paulo, 12-07-2009.
Fonte: UNISINOS


A nova encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate, dialoga extensamente com a encíclica Populorum Progressio, de 1967, de Paulo VI, e por meio dela com o Concílio Vaticano II. Trata-se da reafirmação dos princípios que ganharam consistência na obra de Roncalli e de Montini, os construtores da Igreja pós-Pio XII. Se dúvidas havia quanto ao lugar de Ratzinger nessa igreja renovada, suscitadas por seu desempenho na Congregação do Santo Ofício, essas dúvidas se dissipam nesse pronunciamento doutrinal do pontífice.

Como mostra o padre José Oscar Beozzo, em livro recente, A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II, o jovem professor e padre Ratzinger foi um dos peritos do concílio e fez parte do pequeno grupo de teólogos que participou do preparo da Constituição Dogmática Lumen Gentium. Nela a Igreja se propõe Corpo Místico de Cristo, abrindo-se, em consequência, ao apostolado dos leigos. Uma Igreja menos hierárquica e de sacristia e mais participativa. Portanto, a encíclica desses dias reafirma valores e orientações que têm tido de vários modos a participação direta e interessada de quem veio a ser o papa Bento XVI. Embora haja no documento evidências da contribuição de peritos, o que parece empobrecê-lo em questões que, à luz de documentos anteriores e pessoais desse papa, teriam dele mais ousada definição, menos técnica e menos acadêmica.

Não só o retorno ao Concílio Vaticano II, mas sobretudo o retorno a Paulo VI dão à encíclica a envergadura de um acerto de contas com as irracionalidades da economia e também com as iniquidades sociais e políticas que, apesar das advertências e interpretações da Populorum Progressio, cresceram e se multiplicaram nas décadas passadas. Meu primeiro impulso é o de dizer que esse é um documento que surge com mais de meio século de atraso. Deveria ter sido o documento da Igreja na época em que o competente e lúcido Montini já era um ativo pensador no interior do Vaticano, capaz de compreender para onde ia o mundo do pós-guerra, o que amplos setores da igreja não compreendiam, e que sabia perfeitamente o que deveria ser e seria a igreja depois de Eugenio Pacelli.

Naquela época, a própria 2ª Guerra Mundial já havia criado as bases da decomposição de fronteiras e nacionalidades que levariam ao que hoje chamamos de globalização. Ao mesmo tempo, o progresso científico em todos os campos já propunha uma revolução tecnológica e científica que teria um dos seus efeitos mais contraditórios na revolução agrícola. No documento de agora, o papa reconhece, até com certo entusiasmo, a relevância da técnica e da ciência no desenvolvimento dos países e mesmo na superação da fome em muitas regiões do mundo. Mas há 50 anos essas mudanças se materializavam no que nos anos 1970 seria chamada de Revolução Verde, com a disseminação de sementes selecionadas e híbridas, fertilizantes, herbicidas, máquinas, novas técnicas agrícolas e de uso do solo que, sem dúvida, aumentaram enormemente a produtividade agrícola. A Revolução Verde acabou se tornando instrumento político contra a Revolução Vermelha, que se desenhava em muitos países pobres, tendo como protagonistas os camponeses empobrecidos e expropriados em consequência do modelo de desenvolvimento econômico tecnicista e concentrador. A Revolução Verde distribuiu degradação ambiental, destruiu economias tribais e camponesas, criando grandes bolsões de fome e miséria na África, na Ásia e na América Latina, não socializou os benefícios da revolução científica e técnica, destruiu culturas e tradições.

Bento XVI, em sua encíclica, retoma temas que estiveram décadas atrás na boca de comunistas de várias tonalidades de vermelho e é suficientemente contundente para não deixar dúvida quanto à posição da Igreja em face das misérias e injustiças da atualidade, como a fome, a má distribuição dos benefícios do progresso econômico e técnico, o aniquilamento do meio ambiente, a falta de reforma agrária. Não é um documento de acusações. O Papa reconhece a necessidade e os méritos no desenvolvimento, no progresso técnico e científico. Mas trata, sobretudo, das insuficiências do que vem sendo esse desenvolvimento, nas muitas vítimas que dele resultam, desde as populações camponesas expropriadas até os operários fragilizados pelo desemprego, pela precarização do trabalho, pelos efeitos perversos dessas mudanças na vida pessoal e familiar de cada um.

Com base na tradição da doutrina social da Igreja, Bento XVI questiona o desenvolvimento desumanizador. Retoma temas de seus documentos anteriores, centrados na premissa do amor - caritas - para combater e superar o modelo coisificante de desenvolvimento que prevalece hoje, o que significa atuar, ainda que a longo prazo, no sentido de superar e mudar uma sociedade em que o outro é objeto para que o outro se torne o objetivo. Em consequência, a caridade é dar ao outro o que é “meu”, porém com justiça, que é dar a ele o que é “dele”.

Esse reconhecimento da alteridade fundadora de um desenvolvimento econômico e social comprometido com a humanização do homem está referido à tese central do documento que é a do desenvolvimento integral. Não apenas no sentido comum em documentos da Igreja, mas no sentido, também, de um modelo de desenvolvimento contra o modelo que fragmentou o homem, tornando-o um conjunto de desmembramentos que se desconhecem, o homem privado de sua humanidade real e de sua humanidade possível. Fragmentação que fragiliza no plano econômico, no plano social, no plano cultural, uma arquitetura da perversidade do desencontro interior, que torna o homem frágil e manipulável.

Nessa perspectiva, Bento XVI volta à questão da alienação, a que se refere em documento anterior, em que citou famoso texto de Karl Marx, como o grande desafio do mundo atual e o grande desafio da Igreja na sua missão de propor o reconhecimento do desenvolvimento como vocação. Portanto, como movimento cuja justiça e cuja verdade se fundam na transcendência do amor.

domingo, 12 de julho de 2009

José Saramago

Do sujeito sobre si mesmo
Fonte: O Caderno de Saramago


Como escritor, creio não me ter separado jamais da minha consciência de cidadão. Considero que aonde vai um, deverá ir o outro. Não recordo ter escrito uma só palavra que estivesse em contradição com as convicções políticas que defendo, mas isso não significa que tenha posto alguma vez a literatura ao serviço directo da ideologia que é a minha. Quer dizer, isso sim, que ao escrever procuro, em cada palavra, exprimir a totalidade do homem que sou.

Repito: não separo a condição de escritor da do cidadão, mas não confundo a condição de escritor com a do militante político. É certo que as pessoas me conhecem mais como escritor, mas também há aquelas que, com independência da maior ou menor relevância que reconheçam nas obras que escrevo, pensem que o que digo como cidadão comum lhes interessa e lhes importa. Ainda que seja o escritor, e só ele, quem leva aos ombros a responsabilidade de ser essa voz.

O escritor, se é pessoa do seu tempo, se não ficou ancorado no passado, há-de conhecer os problemas do tempo que lhe calhou viver. E que problemas são esses hoje? Que não estamos num mundo aceitável, bem pelo contrário, vivemos num mundo que está a ir de mal a pior e que humanamente não serve. Atenção, porém: que não se confunda o que reclamo com qualquer tipo de expressão moralizante, com uma literatura que viesse dizer às pessoas como deveriam comportar-se. Estou a falar doutra coisa, da necessidade de conteúdos éticos sem nenhum traço de demagogia. E, condição fundamental, que não se separasse nunca da exigência de um ponto de vista crítico.

Projeto Excelências


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A autora, Grace Olsson, colheu dados e fotos sobre a situação das crianças refugiadas na África. Os recursos obtidos com a venda do livro possibilitará a continuação do trabalho da Grace com crianças africanas. Mais informações pelo e-mail: graceolsson@editoranovitas.com.br

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É um espaço de encontro para reflexão teológica tendo em vista contribuir para a construção de uma rede mundial de teologias contextuais marcadas por perspectivas de libertação, paz e justiça. O FMTL se reconhece como resultado do movimento ecumênico e do diálogo das diferentes teologias contemporâneas identificadas com processos de transformação da sociedade. Acontecerá entre os dias 21 a 25 de janeiro em Bélem, Pará, e discutirá o tema "Água - Terra - Teologia para outro Mundo possível". Mais informações, clicar na figura.

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Foi lançado no circuito comercial o DVD do documentário "O longo amanhecer - cinebiografia de Celso Furtado", de José Mariani. Para saber mais, clicar na figura.

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Estranha metamorfose: os economistas e jornalistas que defenderam, durante décadas, as supostas qualidades do mercado, agora camuflam suas posições. Ou — pior — viram a casaca e, para não perder terreno, fingem esquecer de tudo o que sempre disseram. Para ler, clicar na figura.

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A expansão dos serviços públicos gratuitos pode ser uma grande saída, num momento de recessão generalizada e desemprego. Mas para tanto, é preciso vencer preconceitos, rever teorias e demonstrar que a economia não-mercantil não depende da produção capitalista. Para ler, clicar na figura.