quinta-feira, 16 de julho de 2009

Eduardo Galeano

Os mapas da alma não têm fronteiras

Palavras proferidas por Eduardo Galeano, em Montevidéu, dia 9 de julho, quando foi condecorado com a Ordem de Maio, da República Argentina. Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior



Permitam-me agradecer esta premiação que estou recebendo, que para mim é um símbolo da terceira margem do rio. Nesta terceira margem, nascida do encontro das outras duas, florescem e se multiplicam, juntas, nossas melhores energias, que nos salvam do rancor, da mesquinhez, da inveja e de outros venenos que abundam no mercado.

Aqui estamos, pois, na terceira margem do rio, argentinos e uruguaios, uruguaios e argentinos, rendendo homenagem a nossa vida compartilhada, e, portanto, estamos celebrando o sentido comunitário da vida, que é a expressão mais íntima do sentido comum.

Ao fim e ao cabo, e perdão por ir tão longe, para um ponto onde a história ainda não se chamava assim, lá no remoto tempo das cavernas, como se viraram para sobreviver aqueles indefesos, inúteis, desamparados avôs da humanidade? Talvez tenham sobrevivido, contra toda evidência, porque foram capazes de compartilhar a comida e souberam defender-se juntos. E se passaram os anos, milhares e milhares de anos, e vemos que o mundo raramente recorda essa lição de sentido comum, a mais elementar de todas e a que mais nos faz falta hoje.

Eu tive a sorte de viver em Buenos Aires, nos anos 70. Cheguei corrido pela ditadura militar uruguaia e acabei saindo corrido pela ditadura militar Argentina. Não saí: me saíram. Mas nestes anos comprovei, uma vez mais, que aquela lição pré histórica de sentido comum não havia sido esquecida de todo. A energia solidária crescia e cresce ao vai e vem das ondas que nos levam e nos trazem, argentinos que vêm e vão, uruguaios que vamos e viemos. E no tempo das ditaduras, soubemos compartilhar a comida e soubemos defender-nos juntos, e ninguém se sentia herói nem mártir por dar abrigo aos perseguidos que cruzavam o rio, indo para lá ou vindo de lá.

A solidariedade era, e segue sendo, um assunto de sentido comum e, portanto, era, e segue sendo, a coisa mais natural do mundo. Talvez por isso sua energia, sempre viva, foi mais viva do que nunca nos anos do terror, alimentada pelas proibições que queriam mata-la. Como o bom touro de lida, a solidariedade cresce no castigo.

E quero dar um testemunho pessoal de meu exílio na Argentina.

Quero render homenagem a uma aventura chamada Crise, uma revista cultural que alguns escritores e artistas fundaram com o generoso apoio de Federico Vogelius, onde eu pude aportar algo do muito que me havia ensinado Carlos Quijano, em meus tempos do semanário Marcha.

A revista Crise tinha um nome um tanto deprimente, mas era uma jubilosa celebração da cultura vivida como comunhão coletiva, uma festa do vínculo humano encarnado na palavra compartilhada. Queríamos compartilhar a palavra, como se fosse pão.

Nós, sobreviventes daquela experiência criadora, que morreu afogada pela ditadura militar, seguimos acreditando no que acreditávamos então.

Acreditávamos, acreditamos, que para não ser mudo é preciso começar por não ser surdo, e que o ponto de partida de uma cultura solidária está na boca daqueles que fazem cultura sem saber que a fazem, anônimos conquistadores dos sóis que as noites escondem, e eles, e elas, são também aqueles que fazem história sem saber que a fazem. Porque a cultura, quando é verdadeira, cresce desde o pé, como alguma vez cantou Alfredo Zitarrosa, e desde o pé cresce a história. A única coisa que se faz desde cima são os poços.

A ditadura militar acabou com a revista e exterminou muitas outras expressões de fecundidade social. Os fabricantes de poços castigaram o imperdoável pecado do vínculo, a solidariedade cometida em suas múltiplas formas possíveis, e a máquina da separação continuou trabalhando a serviço de uma tradição colonial, imposta pelos impérios que nos dividiram para reinar e que nos obrigam a aceitar a solidão como destino.

À primeira vista, o mundo parece uma multidão de solidões amontoadas, todos contra todos, salve-se quem puder; mas o sentido comum, o sentido comunitário, é um bichinho duro de matar. A esperança ainda tem quem a espere, alentada pelas vozes que ressoam desde nossa origem comum e nossos assombrosos espaços de encontro.

Eu não conheço felicidade maior que a alegria de reconhecer-me nos demais. Talvez essa seja, para mim, a única imortalidade digna de fé. Reconhecer-me nos demais, reconhecer-me em minha pátria e em meu tempo, e também me reconhecer em mulheres e homens que são meus compatriotas, nascidos em outras terras, e reconhecer-me em mulheres e homens que são meus contemporâneos, vividos em outros tempos.

Os mapas da alma não têm fronteiras.

Projeto Excelências


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