sábado, 18 de julho de 2009

Vito Mancuso

A necessidade do homem de crer em anjos


"O termo anjo fala da capacidade das coisas e das pessoas de serem mensagens de algo mais belo e mais justo. É a 'angelicidade' do ser. [...] Até quando isso ocorrer, existe a esperança de que o mundo não se reduza a um grande centro comercial". A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, publicada no jornal La Repubblica, 17-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



O célebre teólogo alemão Rudolf Bultmann escrevia, há algumas décadas, que "não é possível nos servirmos da luz elétrica ou do rádio, ou fazermos uso, em caso de doença, das modernas descobertas médicas e clínicas, e, ao mesmo tempo, acreditarmos no mundo dos espíritos proposto pelo Novo Testamento".

Era 1941. Consultando a maior livraria do mundo que é a Amazon.com, descobre-se que, pelo contrário, hoje, quando fazemos uso de outras coisas bem além do rádio e da eletricidade, os títulos que se referem a um tipo particular de espíritos, como os anjos, atingem uma quantidade impressionante (431.556), quase o dobro com relação aos que se referem à eletricidade (267.520).

Certamente, entre os livros à venda, encontram-se muitos que tem todo o ar de um hino à irracionalidade ("Nos braços dos anjos", "Como ouvir o seu anjo", "Curar com os anjos", "Caminhar com os anjos", "As mensagens do seu anjo"), mas o fenômeno angélico não se reduz a isso. Basta considerar que não existe civilização e tradição religiosa que não fale deles e que os maiores filósofos da antiguidade dão testemunho deles (o caso mais conhecido é o Sócrates com o seu "daimonion" como voz interior).

A filosofia contemporânea também não cessa de produzir pensamentos com relação a isso, como Massimo Cacciari com "L'angelo necessario" (Adelphi, 1986) e como recentemente a filósofa francesa Catherine Chalier, aluna de Lévinas e professora na Universidade de Paris-X-Nanterre com "Angeli e uomini" (Giuntina, 2009).

Catherine Chalier coloca em evidência o fato de que a Bíblia, elencando as coisas criadas por Deus, não nomeia os anjos (mesmo mostrando-os em ação em outras passagens). Como isso é possível? É uma interrogação que produziu as mais variadas respostas.

A meu ver, é porque a Bíblia não pretende dar um ensinamento direto sobre a existência dos anjos, mas pretende se limitar a educação para uma leitura do real que saiba andar além da dimensão visível apenas. Para a doutrina católica, a existência dos anjos é um dogma de fé, sancionado pelo Concílio Lateranense IV e Vaticano I e reforçado pelo Catecismo, no artigo 328.

Segundo a angeologia de Dionísio Areopagita e de Tomás de Aquino (designado como "doctor angelicus" pela tradição), existem nove coros angélicos, em ordem hierárquica decrescente: Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades, Principados, Arcanjos e Anjos.

Permanecendo na Bíblia, porém, também pode-se não acreditar na existência dos anjos enquanto puros espíritos dotados de personalidade autônoma. O elemento decisivo para esta última é outra coisa: é a não redutibilidade do real à dimensão visível, é a "angelicidade" do ser, isto é, a possibilidade de algumas experiências ou coisas ou pessoas serem mensageiras de um mundo mais amplo com relação ao mundo visível. Não de um outro mundo, mas deste mundo mesmo, compreendido porém de maneira mais profunda.

Pavel Florenskij falava da "profundidade do mundo, alcançável só com uma reta disposição da alma" e, do mesmo modo, Catherine Chalier se refere a "um excesso inexaurível de beleza e de sentido que apela à inteligência e renova o seu desejo".

Na figura do anjo, está em jogo a ontologia do real, a propriedade das coisas de remeter à profundidade do invisível. "O essencial é invisível aos olhos", ensinava a raposa ao pequeno príncipe, acrescentando que "só se vê bem com o coração". É secundário que Saint-Exupery faz uma raposa falar, enquanto que a Bíblia e o Alcorão colocam os anjos em cena (de resto, já segundo Moisés Maimônides, os animais e até os elementos naturais podem ter uma dimensão angélica, veja-se o "Guia dos Perplexos" II, 6). Decisivo é onde se coloca o verdadeiro centro do ser, o essencial: se na matéria ou em uma dimensão que a transcende e que se costuma chamar de "espírito".

O discurso sobre os anjos toma sentido, saindo do Kitsch que frequentemente pervade os discursos sobre eles, só na medida em que se fale do espírito e do fenômeno concreto para expressar tal e qual o conceito surgiu. O fenômeno na base do conceito de espírito é a liberdade, a liberdade da qual o homem goza com relação à matéria.

O homem é matéria, mas afirmar a sua liberdade significa considerar que o homem não é redutível à matéria, que pode agir e não só re-agir a instintos. O anjo é um símbolo que expressa a liberdade do homem com relação à matéria, ou seja, o espírito. Liberdade e espírito, de fato, remetem ao mesmo fenômeno: o espírito o nomeia na dimensão ontológica; a liberdade, na dimensão operativa. E como a liberdade pode ser determinada pelo bem ou pelo mal, do mesmo modo o espírito: e assim, além dos anjos bons, a tradição conhece também os anjos ruins e rebeldes, os demônios, cujo chefe é "o grande Dragão, a primitiva Serpente, aquele que é chamado Demônio e Satanás, o sedutor do mundo inteiro" (Apocalipse 12,9).

O espírito-liberdade é invisível, mas a invisibilidade não impede que, às vezes, ela seja advertido pela parte mais alta da mente (o "apex mentis"), onde o conhecimento ligado ao sentidos se liga ao conhecimento que procede da razão pura em um composto não demonstrável more geométrico, mas igualmente denso de significado, às vezes tão denso de significado que enche a personalidade por inteiro, em uma espécie de sublime emoção da inteligência.

Spinoza em "Ética" fala com relação ao "terceiro olho". Existe um conhecimento sensível (primeiro olho) e existe um conhecimento da razão pura (segundo olho), mas é possível um conhecimento mais alto, que procede de um olho que, materialmente, o homem não tem, mas que, espiritualmente, pode exercitar. O conhecimento intuitivo que Tomás de Aquino atribui aos anjos é o terceiro olho do qual Spinoza fala. Às vezes acontece de chegarmos a conhecer (uma pessoa, uma obra de arte, uma teoria científica) como por encanto, sem mediação, sem esforço intelectual, com uma faculdade superior ao intelecto, que, se não se pode agir sem a sensibilidade e o intelecto, nem por isso é redutível a eles. É o terceiro olho, é o conhecimento penetrante, agudíssimo, que chove do alto, e que os grandes conhecedores do fenômeno humano souberam descrever.

Perorar o espaço reservado ao invisível na nossa sociedade é uma das tarefas que o belo livro de Catherine Chalier pretende perseguir. O perigo que estamos correndo, de fato, não é pequeno: em uma sociedade que não dá crédito ao invisível, não pode haver as condições mentais para falar fundadamente daqueles valores essenciais que a tradição metafísica denomina "transcendentais", ou seja, que transcendem a esfera imanente do ser, mas de cuja imanência tem uma necessidade incontrolável.

Sem confiança no invisível (seja ele o "daimonion" de Sócrates, a brisa suave do profeta Elias, o espírito de Hegel), acaba-se inexoravelmente por falar só de legalidade, e não de justiça; só de fascínio, e não mais de beleza; só de utilidade, e não mais de bem; só de exatidão, e não mais de verdade.

O anjo é o nome que a mente deu àquilo que tem o poder de revelar uma dimensão secreta do ser, indisponível, não comerciável, que se compreende só se retraindo em si mesmo, porque existe primariamente ali, na mais íntima interioridade, e que dá força, coragem e serenidade para agir com espírito novo na realidade do mundo.

No dia 27 de junho, este jornal publicava as palavras de um iraniano que tinha escutado Joan Baez cantar "We shall overcome" na sua língua: "Não pude conter as lágrimas quando ele cantou na minha língua. Sempre amei Joan Baez e, depois de vê-la assim, acho que ela é um anjo".

Não é retórica. O termo anjo fala da capacidade das coisas e das pessoas de serem mensagens de algo mais belo e mais justo. É a "angelicidade" do ser. Essa dimensão existe, e se os homens desde sempre falaram e continuam falando de anjos é porque fazem experiência da profundidade do ser.

Até quando isso ocorrer, existe a esperança de que o mundo não se reduza a um grande centro comercial.

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