sábado, 29 de maio de 2010

Reginaldo Mattar Nasser

A dupla face de Obama


O artigo de Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP.
Fonte: Carta Maior




A semana que passou foi extremamente reveladora do que tem sido a política externa do governo Obama. Em discurso pronunciado na academia militar de West Point ( 22/05/2010), prenúncio da nova doutrina de segurança nacional, o presidente Obama destacou o “engajamento diplomático e as alianças internacionais”, repudiou a ênfase de seu antecessor no poder unilateral americano e o direito de travar uma guerra preventiva contra o terrorismo. O documento enfatiza o fortalecimento de alianças já existentes e manifesta a intenção de trabalhar para "construção de novas parcerias” e de forma mais consistente com as normas e instituições internacionais.

Os meios de comunicação no Brasil, reproduzindo a avaliação das agências internacionais saudaram a nova doutrina como uma visão muito diferente daquela revelada pelo ex-presidente Bush quando anunciou, oito anos atrás no mesmo lugar (West Point) a estratégia de combate ao terrorismo. Mas, apesar de reiteradamente tentar diferenciar a sua estratégia de combate ao terror, daquela empregada por Bush, Obama voltou a utilizar, a mesma expressão empregada anteriormente: "Este é um tipo diferente de guerra".

Mas proponho olharmos para outra dimensão do governo Obama que pode ser facilmente encontrada nas páginas da grande imprensa norte-americana. No mesmo dia em tomava posse e o mundo comemorava o fim dos anos Bush, um ataque dos temíveis Drone (veículo aéreo não tripulado que tem por objetivo vigiar territórios e bombardear alvos inimigos) matou dois supostos líderes da Al-Qaeda. Era o primeiro de uma dramática escalada de ataques na fronteira entre o Afeganistão e Paquistão (AFPak). Durante o ano de 2009 foram realizados 44 ataques, mais do que os cinco anos anteriores em seu conjunto com uma estimativa que varia entre 600 a 700 mortos. O número de mortes de civis causadas pelos aviões é uma questão polêmica que já provocou uma ação judicial nos Estados Unidos, pois ninguém sabe exatamente quais os critérios que a inteligência norte-americana usa para distinguir um "militante" de um civil. É alguém que porta armas? Ora, um grande número de homens naquela região tem o hábito de portar armas. É alguém que oferece hospitalidade de um membro do Taliban e, portanto, um alvo legítimo, mesmo que inclua toda a sua família? Obama ainda não respondeu como e quem toma essas decisões? (Conn Hallinan, Foreign Policy In Focus, May 19, 2010)

Aliás, como bem observou o neoconservador Robert Kagan, embora a administração de Obama tenha demonstrado maior preocupação em prover defesa legal para os terroristas capturados, é preciso reconhecer, por outro lado, que ele tem feito um esforço maior para assassiná-los, eliminando assim a necessidade de julgamentos. (Forein Policy Magazine, Bipartisan Spring, March 3, 2010)

O New York Times revelou essa semana (Mark Mazzetti, NYT May 24, 2010) uma ordem secreta assinada pelo general David H. Petraeus, principal comandante militar no Oriente Médio, no dia 30 de setembro de 2009, autorizando o envio de tropas especiais clandestinas em um esforço para perseguir e capturar grupos militantes, recolher informações e construir laços com as forças locais no Irã, Arábia Saudita, Somália e outros países da região para "preparar o ambiente" para futuros ataques por forças americanas. Além disso, a ordem militar especifica as operações no Irã para recolher informações sobre o programa nuclear do país, e identificar grupos dissidentes que possam ser úteis para uma futura ofensiva militar, ao mesmo tempo em que o presidente Obama insiste em punir o Irã por suas supostas “más intenções”.

O colunista da Folha de São Paulo, Clóvis Rossi (27 de maio de 2010) obteve a íntegra da carta de Obama a Lula e concluiu que o acordo celebrado em Teerã segue todas as solicitações do presidente norte-americano. Destaco o seguinte trecho da carta que não deixa dúvidas em relação à iniciativa do Brasil:

Caso o Irã não esteja disposto a aceitar uma oferta que demonstre que seu LEU (iniciais em inglês para urânio levemente enriquecido) é para usos pacíficos e civis, eu instaria o Brasil a insistir junto ao Irã quanto à oportunidade representada por essa oferta de manter seu urânio como "caução" na Turquia enquanto o combustível nuclear está sendo produzido.”

Enquanto isso a secretaria de Estado Hillary Clinton, dizendo praticar o “smart power”, constata que existe uma divergência muito séria em relação à diplomacia do Brasil com o Irã", e que o caminho trilhado pelo Brasil, deixa o mundo mais perigoso". ((?) é hilária essa criatura! é o mundo mais perigoso ou é a indústria de armas americana, que produzirá menos com um conflito a menos? Enoisa)

Independemente da forma governo (democrático ou ditatorial) e de ser teocrático ou não, como será que um iraniano, tomando conhecimento desses relatos, e assistindo o cerco militar gradativo de seu pais desde 2001 (Afeganistão, Iraque e bases militares norte-americanas no Uzbequistão e o Tadjiquistão) deve reagir? É irracional pensar em sentir-se seguro? Em qual Obama o mundo deve confiar?

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Vicenç Navarro

Ficções dos nossos dias: que mercados financeiros?


Artigo publicado por Vicenç Navarro no diário PÚBLICO, 20 de Maio de 2010. Tradução de Paula Sequeiros.  Vicenç Navarro foi professor de Economía Aplicada na Universidad de Barcelona. Atualmente é professor  de Ciencias Políticas e Sociais, na Universidad Pompeu Fabra (Barcelona, España).  Dirige Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidad Pompeu Fabra y The Johns Hopkins University. Dirige também o Observatorio Social de España.Fonte: Carta Maior





Este artigo assinala que os mal denominados mercados financeiros não correspondem às características que definem os mercados, pois os seus agentes – os bancos – gozam de um grande protecionismo fornecido pelos estados, assim como por instituições internacionais – como o Fundo Monetário Internacional – que garantem os seus exuberantes lucros à custa de enormes reduções dos gastos públicos e da proteção social das classes populares. O artigo mostra exemplos deste protecionismo no caso dos EUA e na mal denominada “ajuda” do FMI-Euro aos países com elevados déficits e dívida pública, como a Grécia, que é em realidade ajuda primordialmente para os bancos europeus.

A linguagem que se utiliza para explicar a crise é uma linguagem que aparenta ser neutra, meramente técnica, quando, na realidade, é profundamente política. Assim, dizem-nos que os “mercados financeiros” estão forçando os países da União Europeia e, muito em especial, os países mediterrânicos – Grécia, Portugal e Espanha – e Irlanda, a seguir políticas de grande austeridade, reduzindo os seus déficits e dívida públicos, com o objetivo de recuperar a confiança dos mercados, condição necessária para alcançar a recuperação econômica. Como disse há uns dias Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu (BCE): “A condição para a recuperação econômica é a disciplina fiscal, sem a qual os mercados financeiros não certificam a credibilidade dos estados” (Financial Times, 15-05-10).

A realidade, contudo, é muito diferente. Estas medidas de austeridade, promovidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela União Europeia (UE), estão criando uma grande deterioração da qualidade de vida das classes populares, pois estão afetando negativamente a sua proteção social e destruindo emprego, dificultando a sua recuperação econômica. Assim aconteceu na Lituânia, onde o PIB diminuiu 17% e o desemprego alcançou 22% da população ativa (veja-se o meu artigo Quién paga los costes del euro?). Uma situação semelhante ocorrerá nos países citados anteriormente.

Pareceria, pois, que são os mercados financeiros que estão a impor estas políticas aos governos. Ora bem, que quer dizer “os mercados financeiros”? Em teoria, na dogmática liberal que domina os establishments europeus (o Conselho Europeu, o BCE e a Comissão Europeu, assim como nos governos da maioria dos países da UE), os mercados são um processo de livre comércio entre agentes financeiros – os bancos – que obtêm benefícios para compensar os seus riscos, pois que se assume que existem riscos em tais mercados. Mas tal retórica não define a realidade, pois tais entidades – os bancos – operam em âmbitos e instituições enormemente protecionistas dos seus interesses, nos quais o risco, em geral, brilha pela ausência. Na realidade, os mal denominados mercados têm muito pouco de mercado. São bancos com muito lucro e poucos riscos. E o que está a acontecer mostra a certeza deste diagnóstico.

Nos EUA, onde existe amplo consenso sobre o fato de que a crise financeira foi iniciada pelos comportamentos de Wall Street, a crise bancária foi resolvida com a entrega aos bancos de quase um bilhão de dólares pagos pelo Estado, que beneficiou enormemente os banqueiros e os seus acionistas, conseguindo inclusive mais benefícios do que os que tinham antes da crise. A obscenidade de tais benefícios e as práticas desonestas e criminosas dos banqueiros (causadores da crise) explicam a sua enorme impopularidade e a de tais medidas, que não se repercutiram favoravelmente sobre a população, que viu como os seus padrões de vida diminuíram devido à crise provocada pelos bancos. Não foram os mercados, mas os bancos e os seus políticos no Congresso (com nomes e apelidos conhecidos) e nas administrações Clinton, Bush e Obama (também com nomes e apelidos conhecidos) que criaram a crise, salvaram os bancos e agora apelam à austeridade.

Uma situação quase idêntica está acontecendo na UE. Os comportamentos especulativos da banca europeia foram consequência de decisões políticas que desregularam a banca, decisões que se tomaram particularmente, não apenas em Wall Street, mas também nos centros financeiros, principalmente a City de Londres e Frankfurt, consequência da enorme influência da banca sobre os governos britânico e alemão. A mal denominada “ajuda” do FMI-EU (de 750 bilhões de euros) aos países com dificuldades não é uma ajuda às populações daqueles países, mas sim aos bancos (e muito em especial aos alemães e franceses) para assegurar-lhes que os Estados lhes pagarão as dívidas com os juros confiscatórios que exigiram. Na realidade, se os mercados financeiros fossem mercados de verdade (e, portanto, houvesse competitividade e risco no seu comportamento), os bancos teriam de absorver as perdas em investimentos financeiros falidos. Se o Governo da Grécia, por exemplo, fosse à bancarrota, a banca alemã teria de absorver as perdas por ter tomado a decisão de comprar títulos do Estado grego.

Ora bem, isto não acontece nos mal denominados mercados financeiros devido a haver toda uma série de instituições que protege os bancos. E a mais importante é o FMI, que empresta dinheiro aos Estados para que o paguem aos bancos. Daí que, como nos EUA, os bancos nunca perdem. Quem perde são as classes populares, pois o FMI exige aos governos que extraiam o dinheiro dos serviços públicos das tais classes populares para pagar aos bancos. O que o FMI faz é a transferência de fundos das classes populares para os bancos. Isto é o que se chama “conseguir a credibilidade dos Estados face aos mercados”.

Estas transferências, contudo, além de serem profundamente injustas, são enormemente ineficientes. O fracasso das políticas de austeridade propostas pelo FMI nos países em crise é bem conhecido, o que explica o descrédito de tal instituição. O FMI, desde a era Reagan, é a organização financeira que impôs mais sacrifícios às classes populares dos países que receberam a “sua ajuda”, com resultados econômicos altamente negativos, tal como denunciou corretamente Joseph Stiglitz. Não são os mercados, mas os interesses bancários e seus aliados – entre os quais se destacam o FMI e o BCE – que estão a impor estes sacrifícios. Ao menos, chamemos os culpados pelo nome.








terça-feira, 25 de maio de 2010

O Brasil de Lula luta em todas as frentes e é o porta voz natural das economias emergentes

Tradução: Lana Lim
Fonte: Jornal Le Monde, 25/05/2010

É Lula pra cá, Brasil pra lá! O mundo se agita com as declarações do presidente brasileiro e com as façanhas não somente futebolísticas de seus compatriotas.

Vimos Luiz Inácio Lula da Silva repreendendo a Alemanha por sua hesitação em salvar a Grécia, e oferecendo sua mediação no conflito entre Israel e Palestina.

Vimo-lo tentando, junto com os turcos, arrefecer a questão nuclear iraniana, e apoiar os argentinos em seu conflito contra os britânicos a respeito das Ilhas Malvinas e seu petróleo.
 
Mas “o homem mais popular do mundo”, segundo Barack Obama, não se apoia somente em seu carisma para falar em alto e bom som. Ele representa um Brasil em plena forma que, após uma depressão causada pela crise, segue de perto a China e a Índia em termos de crescimento.
 
A Petrobras, grupo petrolífero que é a empresa mais lucrativa da América Latina, a Vale, líder mundial do ferro, a Embraer, que poderá muito bem superar a Boeing e a Airbus em breve no setor de aviação, são apenas alguns dos orgulhos de uma economia industrial de primeira ordem.
 
No setor agrícola o crescimento é comparável, e valeu ao Brasil o título de “celeiro do mundo”. Soja, açúcar, etanol, café, frutas, algodão, frango, etc. fazem dele um concorrente temível para os produtores europeus.
 
Foi em 2008 que o Brasil se deu conta de suas capacidades econômicas. Até então, ele negociava com a Organização Mundial do Comércio, mas de maneira um tanto tímida. A crise que veio dos Estados Unidos e o colapso da produção industrial dos chamados países desenvolvidos o persuadiram de que era hora de partir para a ofensiva.

Agora é o Brasil, representado de forma brilhante por seu ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, que mais pressiona por uma conclusão das negociações da Rodada Doha. Em comparação, os Estados Unidos parecem presos em um protecionismo de outros tempos.

Menos temido que a China ou a Índia, de populações na casa dos bilhões, mais respeitado que uma Rússia dependente de suas matérias-primas, o Brasil é o verdadeiro porta-voz dessas economias emergentes que puxam o crescimento mundial. Com o eixo econômico do mundo se deslocando para o Sul, ele pode com razão exigir que aqueles que estão substituindo os países do Norte sejam mais bem representados nas instâncias internacionais, a começar pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Sem esquecer o Conselho de Segurança da ONU, no qual o Brasil almeja uma cadeira de membro permanente.

Porque “o século 21 será o século dos países que não tiveram sua chance”, e por ele acreditar estar “na metade de [sua] carreira política”, Lula, 65, poderá se candidatar ao secretariado geral da ONU em 2012. Ele também deverá lutar para melhorar o G20, cuja influência ele considera “muito pequena”.

Continuaremos a ouvir falar do ex-metalúrgico, amigo das favelas e dos investidores. Continuaremos a ouvir falar de um Brasil no despontar de seus “trinta anos gloriosos”.


 




 

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Entrevista - Jessé Souza

Para sociólogo, Brasil ainda vive um abismo social



Na contramão dos estudos que apontam melhora da distribuição de renda no Brasil, o sociólogo Jessé Souza afirma que o país ainda vive uma "desigualdade abissal" em sua sociedade. A reportagem e a entrevista é de Uirá Machado e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 24-05-2010. Coordenador do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, Souza lançou recentemente o livro "A Ralé Brasileira", em que estuda as características dessa "parcela da população que vive como subgente".
Fonte: UNISINOS




A proporção de brasileiros vivendo abaixo da linha da miséria caiu nos últimos anos. Em seu último livro, o sr. diz ser falsa a tese de que a desigualdade brasileira está desaparecendo. Por quê?

Esses índices mostram apenas que a pobreza absoluta diminuiu. Mas a desigualdade é um conceito relacional. O Brasil é uma das sociedades complexas mais desiguais do planeta. Entre 30% e 40% de sua população tem inserção precária no mercado e na esfera pública. Somos uma sociedade altamente conservadora, que aceita conviver com parcela significativa da população vivendo como "subgente". Essa classe social, que chamamos provocativamente de "ralé", é a mão de obra barata para as classes média e alta que podem - contando com o exército de empregadas, motoboys, porteiros, carregadores, babás e prostitutas - se dedicar às ocupações rentáveis e com alto retorno em prestígio. É isso que chamo de "desigualdade abissal" como nosso problema central.

Qual sua avaliação sobre o Bolsa Família?

O programa Bolsa Família tem extraordinário impacto social, econômico e político, com investimento público relativamente muito baixo. É incrível que não se tenha pensado nisso antes. Mais incrível ainda que exista gente contra. Por outro lado, o Bolsa Família não tem condições, sozinho, de reverter o quadro de desigualdade e "incluir" e "redimir" a "ralé". Esse é um desafio de toda a sociedade, e não apenas do Estado. É claro que houve avanços nas duas últimas décadas, mas mudança social é muito mais do que condições econômicas favoráveis.

O senhor tem argumentado que não é possível limitar a discussão de classe à questão da renda e que é necessária uma nova compreensão das classes sociais.

A redução das classes sociais ao seu substrato econômico implica perceber apenas os aspectos materiais, como dinheiro, e "esquecer" a transmissão de valores imateriais, como as formas de agir no mundo. E são esses valores imateriais que constituem os indivíduos como indivíduos de classe, com comportamentos típicos incutidos desde a mais tenra infância. Como regra, as virtudes são todas do "espírito", como a inteligência. Os vícios são ligados ao "corpo". As classes superiores "incorporam" as virtudes espirituais, e as inferiores, as virtudes ambíguas do corpo. As virtudes do espírito recebem bons salários, prestígio e reconhecimento social. As classes do "corpo" tendem a ser animalizadas, podendo ser usadas e até mortas por policiais sem que ninguém se comova com isso.

E o senhor afirma que mesmo a educação é insuficiente?

É claro que a educação é um fator fundamental. O problema é que a competição social não começa na escola. Sem considerar que crianças de classes diversas já chegam à escola como vencedoras ou perdedoras, o que teremos é uma escola que só vai oficializar o engodo do mérito caído do céu de uns e legitimar, com a autoridade do Estado e a anuência da sociedade, o estigma de outros.

Entrevista - Reinaldo Gonçalves

''A liberalização está entrincheirada. Ela não morreu e, como Fênix, ela ressurge das cinzas''


Reinaldo Gonçalves é professor titular de Economia Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entrre outros, ele é autor (em co-autoria com Luiz Filgueiras) do livro “A Economia Política do Governo Lula”. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2007.
Fonte: UNISINOS



IHU On-Line - Em sua opinião, qual o resultado da recente crise do Euro? O que esse episódio revela sobre possíveis mudanças no cenário econômico mundial?

Reinaldo Gonçalves - Não há uma “crise do euro” e, sim, uma crise localizada na zona do euro. A União Européia, bem como o subsistema monetário europeu (zona do euro) é marcado por forte assimetria. A atual crise é, fundamentalmente, financeira e está localizada, principalmente, na Grécia e com risco de atingir de forma mais aguda outros países como Portugal, Irlanda e Espanha. A desvalorização do euro não é, por si só, um problema para os países europeus. Na realidade, esta desvalorização permite aumentar as exportações, ao mesmo tempo em que reduz as importações. Ou seja, a desvalorização do euro é muito útil para promover a retomada do crescimento. O problema das graves crises localizadas em países de pouca importância (como Grécia e Portugal) é que o mercado fica operando num contexto de maior incerteza frente aos cenários futuros de intervenção para enfrentar estas crises. Como estes países estão na zona do euro, os atores protagônicos são a Alemanha e a França. Por um lado, os dirigentes alemães estão focados na proteção dos seus bancos, principalmente, aqueles que fizeram operações de grande risco na periferia da Europa e que, agora, enfrentam problemas. Daí a reação do governo alemão no sentido de maior regulamentação dos seus bancos. Por outro lado, para o governo da Grécia a regionalização da crise é útil visto que seus objetivos são evitar a quebra do seu sistema financeiro (grandes bancos), obter taxas de juros internacionais menores para financiar o serviço do passivo externo e usar os esquemas plurilateral (União Européia) e multilateral (FMI). Estes esquemas permitem a obtenção de recursos externos como também legitimar medidas duras de ajuste que implicam queda do nível de bem-estar da maioria da população.

IHU On-Line - Que tipo de capitalismo surge a partir deste episódio?

Reinaldo Gonçalves - No horizonte previsível o capitalismo não sofrerá transformações importantes. A questão da regulação/intervenção versus livre mercado está na própria origem do sistema. Esta é, de fato, uma questão pendular. Ou seja, em fases ascendentes do ciclo econômico o capital pressiona e obtém maior liberdade de atuação e nas fases descendentes o Estado, atendendo às pressões dos trabalhadores, à própria necessidade de governabilidade e aos interesses do grande capital, passa a ser pró-ativo na intervenção, protecionismo e regulação. No processo de proteção frente ao “moinho satânico” do mercado, o Estado protege o grande capital nacional. Portanto, no horizonte de curto e médio prazo haverá pressão e implementação de medidas de intervenção, proteção e regulação; porém, quando o espectro de crise desaparecer do cenário, retorna a pressão para a liberalização, desregulamentação e privatização. Em outras palavras, o capital tem como um dos seus “pecados originais” a síndrome da privatização dos benefícios (próprios da fase ascendente do ciclo econômico) e da socialização dos prejuízos próprios das crises econômicas.

IHU On-Line - Quais são as conseqüências de um possível desmantelamento do estado de bem-estar social?

Reinaldo Gonçalves - As conseqüências são previsíveis. Espera-se o maior esgarçamento do tecido social (via, por exemplo, contração do grau de universalização dos direitos sociais e econômicos), piora nas condições de trabalho, maior exploração do trabalhador, concentração da riqueza e da renda e crescente tensão nas relações, processos e estruturas políticas. A institucionalidade também sofre abalos em decorrência do acirramento da disputa pelos recursos controlados pelo Estado. Ou seja, aumenta a rivalidade entre grupos e classes sociais. Isto não é, necessariamente, um problema. Ele pode ter resultados positivos. O caso recentíssimo é a tentativa do governo dos EUA de implementar uma reforma socialmente mais justa do sistema de saúde. Outro exemplo, a sociedade grega “pede a cabeça” dos dirigentes políticos que, de uma forma ou de outra, foram responsáveis pela crise recente. Na atualidade, a institucionalidade da União Européia está sofrendo as consequências da crise. Esta pode ser a oportunidade para se questionar se, efetivamente, a estratégia de ampliação do esquema implica benefícios líquidos para os atores protagônicos.

IHU On-Line - Em que medida a crise na zona do Euro pode ser exemplo para as demais economias do planeta?

Reinaldo Gonçalves - A Grécia é um “vagão de 3ª classe” no cenário internacional. Se este país não estivesse na zona do euro, a crise grega não teria um milésimo da repercussão que tem tido. Insisto que não há uma crise na zona do euro. Na Alemanha, por exemplo, há um nítido processo de recuperação. Em 2009 a renda alemã caiu 5%, mas para 2010 e 2011 as previsões são de crescimento de 1,2% e 1,7%, respectivamente. A retomada do comércio internacional é um dos fatores determinantes. A desvalorização do euro dá um reforço à enorme competitividade internacional da Alemanha. No que se refere às lições que podemos aprender com os gregos, vale destacar que não há nada de novo. De fato, o que ocorre na Grécia atualmente é um fenômeno bastante conhecido no Brasil e no restante da América Latina. Ou seja, houve aumento extraordinário do passivo externo que levou a percepção de risco a níveis críticos. Nenhuma novidade para nós, inclusive no passado recente!

IHU On-Line - Como o Brasil pode aprender com o episódio e em que medida a política econômica do governo Lula se relaciona com esta questão?

Reinaldo Gonçalves - Quanto ao presente e ao futuro do Brasil, a questão-chave é, mais uma vez, o passivo externo. A estratégia e a política econômica do governo Lula tem implicado crescimento do passivo externo do país. Déficit de transações correntes de US$ 60 bilhões em 2010 significa aumento não desprezível do passivo externo. Esta é uma cessão de direitos que envolvem fluxos de pagamento de juros, lucros e dividendos. Durante o governo Lula houve crescimento elevado do passivo externo e destes fluxos e, portanto, maiores necessidades de financiamento externo. Este é um problema estrutural e, certamente, fará parte da “herança maldita” do governo Lula. Cabe, ainda, chamar atenção para riscos futuros associados aos megaprojetos de gastos públicos associados a eventos como Copa do Mundo de futebol em 2014 e Olimpíadas em 2016. Parte da crise da Grécia é explicada pelos gastos extraordinários provocados pelas Olimpíadas em Atenas em 2004. Em sociedades com frágil institucionalidade, mega-projetos são o fértil campo de cultivo de práticas de corrupção e da incompetência. Há alta probabilidade que o Brasil cometa os mesmos erros dos gregos (endividamento interno e, principalmente, externo) que quebrarão as finanças públicas e o sistema financeiro brasileiro no pós 2014-16! Fica o alerta porque a conseqüência é o país entrar em mais uma longa trajetória de instabilidade e crise.

IHU On-Line - Qual o futuro da proposta de livre mercado, sem regulação do Estado?

Reinaldo Gonçalves - A liberalização está entrincheirada. Ela não morreu e, como Fênix, ela ressurge das cinzas. A questão central é que livre mercado e intervenção/regulação são os “dois lados da moeda” do capitalismo. É um pêndulo eterno, pelo menos enquanto durar o capitalismo! As experiências, por exemplo, da Alemanha e dos países nórdicos mostram que mais concorrência pode estar associada a mais regulação/intervenção. Nas “transformações genéticas” como o sistema chinês, onde o capitalismo mais dinâmico do planeta é comandado pelo Estado comunista, a extraordinária rivalidade no mercado internacional (no qual a China é “maratonista”) tem como contrapartida, no plano interna da China, um igualmente extraordinário aparato regulatório e interventor. Ou seja, o capitalismo “campeão mundial” é o capitalismo que tem como pilar central o Estado-nacional altamente interventor e regulador pilotado ditatorialmente por um partido comunista que aloca oportunidades de negócios para associados dos grupos dirigentes.

IHU On-Line - O que caracteriza a mudança que temos acompanhado na Europa e no mundo todo, de certa maneira, na forma de viver e trabalhar?

Reinaldo Gonçalves - Na realidade, não há nada de muito novo. É a velha história: Plus ça change, plus c´est la même m... Certamente, as tensões próprias às crises implicam piora na qualidade de vida e nas condições de trabalho. Por outro lado, há o lado positivo que é o mecanismo desafio-resposta. Ou seja, frente aos problemas, as sociedades tendem a reagir, de uma forma ou de outra. Estas reações podem ser na direção de um caminho favorável ou não. Cabem aqui duas comparações. A primeira é a Alemanha do pós I Grande Guerra, que escolheu o caminho do nazismo, da guerra, da derrota e do sofrimento. Por outro lado, no pós II Grande Guerra a Alemanha faz escolhas corretas que geraram uma das mais ricas e estáveis sociedades do mundo. A segunda comparação refere-se ao Brasil que, frente à crise do final dos anos 1920, foi capaz de dar um salto quântico e entrou na trajetória desenvolvimentista que durou até 1979. Por outro lado, o Brasil dos últimos 20 anos optou por um Modelo Liberal Periférico de segunda ou terceira classe que implica crescente vulnerabilidade externa estrutural nas esferas comercial (reprimarização), produtiva (internacionalização sem competitividade), tecnológica (ineficiência sistêmica) e financeira (liberalização e desregulamentação).

IHU On-Line - Qual sua opinião sobre programas de renda mínima no cenário econômico e financeiro mundial?

Reinaldo Gonçalves - Programas de renda mínima, transferência previdenciárias, ajustes de salário mínimo e câmbio apreciado são paliativos que mascaram a enorme concentração de riqueza e só marginalmente afetam a distribuição intra-renda do trabalhador e dos grupos de menor renda. Eles são elementos auxiliares em um processo efetivamente transformador da sociedade, mas são entraves caso eles desviem, sufoquem ou inibam os esforços de efetivas mudanças estruturais. Este fenômeno é exatamente o que está acontecendo em países como Brasil, Colômbia, Paraguai e México que seguem variações do modelo liberal periférico. Quem quiser saber mais sobre este modelo no Brasil, recomendo o livro (em co-autoria com Luiz Filgueiras) “A Economia Política do Governo Lula” (Rio de Janeiro: Editora Contraponto).

IHU On-Line - Simplesmente condenar o capitalismo não é a saída. Que caminhos o senhor vislumbra?

Reinaldo Gonçalves - Antes de mais nada precisamos escapar das fortes limitações das visões das “raparigas em flor do keynesianismo” e dos “heróis em sangue do marxismo”. Penso que as escolhas e os caminhos são, sem dúvida, pela esquerda. Insisto que este caminho significa reconhecer que o capitalismo é um sistema irracional que inibe a capacidade do ser humano dar sentido à vida, ou seja, viver com dignidade, felicidade e liberdade. Ser de esquerda é o combate permanente por um projeto de orientação socialista. É ignorância imaginar que ser de esquerda se restringe a defender bandeiras como progresso econômico, reforma social, democracia, integração regional e interesses nacionais. O centro e a direita também defendem estas bandeiras, de uma forma ou de outra. É má-fé imaginar que a distinção entre esquerda e direita se restringe ao ideário econômico via a armadilha binária “estado versus mercado”. Defender um Estado que é capturado por grupos dirigentes corruptos não é ser de esquerda. Ser de esquerda implica combater implacavelmente estes grupos dirigentes e os setores dominantes retrógrados. Ser de esquerda implica compromisso com distribuição de riqueza (maior igualdade possível na distribuição de riqueza, renda e conhecimento), controle social do estado (combater a apropriação do estado por grupos dirigentes e grupos econômicos) e uso social do excedente econômico (tributação, planejamento e propriedade pública dos principais meios de produção). Ser de esquerda implica rejeitar tanto a política externa do “vira-lata” como a do “camaleão falante” baseada em um antiimperialismo retórico, ocasional e superficial. Ser de esquerda é contrariar o agronegócio e procurar o fortalecimento do padrão de comércio e a rejeição da reprimarização do comércio via commodities; ser de esquerda é contrariar o capital internacional e ter uma política seletiva e criteriosa em relação aos investimentos de empresas estrangeiras e não estimular e financiar com recursos públicos todo e qualquer tido de investimento externo direto; ser de esquerda é reduzir as transferências de recursos para os rentistas da dívida pública e procurar investir pesadamente na maior capacitação tecnológica com saltos quantitativos e qualitativos na educação e no sistema nacional de inovações; ser de esquerda é contrariar os bancos nacionais e os estrangeiros e controlar os fluxos financeiros internacionais e não dar tratamento especial a estes fluxos. Ser de esquerda é não fazer aliança com países avançados, como os EUA, para fechar rodadas de negociação da OMC somente para favorecer o agronegócio. Ser de esquerda é não aceitar o pagamento de pedágio para participar de fóruns internacionais de eficácia duvidosa, como o G-20 financeiro. Ser de esquerda é rejeitar reforçar o capital de instituições financeiras multilaterais como FMI e o Banco Mundial cujas políticas tendem a submeter países frágeis a práticas que atendem, principalmente, aos interesses do capital internacional. Ser de esquerda é entender que os principais adversários das transformações estruturais e de modelo estão dentro do próprio país. Ser de esquerda é reconhecer que há um enorme hiato entre o poder potencial e o poder efetivo do Brasil na arena internacional. Ser de esquerda é saber que, com as escolhas certas e as transformações estruturais, o país só terá peso efetivamente relevante no cenário internacional quando reduzir sua enorme vulnerabilidade externa estrutural e suas extraordinárias fragilidades internas, inclusive, as sociais e institucionais.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Flavio Koutzii

"O mundo está ficando difícil para ser humano"
Flavio Koutzii é sociólogo.
Fonte: Carta Maior



Mesmo assim, estes dias têm sido espetaculares: a ação do presidente do Brasil. A iniciativa da diplomacia brasileira. O atrevimento de arriscar um caminho, que talvez possa evitar a guerra. A altivez de ter independência na política externa, servindo ao Brasil e também ao mundo é uma página extraordinária da nossa história.

A dimensão fica mais nítida pela trágica e grotesca reação da grande imprensa brasileira: não apóiam, não exaltam, não valorizam, não contextualizam, desde uma perspectiva brasileira, só olham do ponto de vista da América do Norte, da Hillary, dos novos falcões americanos – uma nova transgenia democrata-republicana. É o “dark side of the moon” de Obama.

Para todos que acham que não houve golpe militar em Honduras, é natural achar que o Brasil não deve “atrapalhar” a preparação da nova invasão, desta vez no Irã, e muito menos podem aceitar uma iniciativa, que vejam só, pode ajudar a paz. E dificultar a diplomacia de guerra cada vez mais acelerada dos EUA.

A imprensa brasileira - seus jornais, rádios e tevês – já não sabem bem o que são, embora saibam muito bem o que fazem. São a gripe suína do pensamento nacional. Ficaram histéricos, mas não se dão conta, nem ouvem a estridência de seus gritos. E, na verdade, já não se sabe pelo que gritam, nesses dias espetaculares, se pelos resultados da política internacional de Lula, se pelo avanço e ultrapassagem de Dilma em relação a Serra, ou se porque seus ataques, cada vez mais intensos, produzem cada vez menos efeito.

Vale a pena observar algumas manifestações desta imprensa:

No dia 19 de maio, no Jornal da Noite, William Wack recorre a uma retrospectiva histórica, onde relembra com apoio de fotos e filmes, Nasser, Nehru, Tito como experiências de independência terceiro-mundista, que já aconteceram e não deram certo, para explicar que essa é a descendência, em 2010, da política de Lula. Ou, trocando em miúdos, toda busca de autonomia, independência nacional, construção de nação que aqueles episódios testemunharam são congenitamente equivocados. O único DNA “bom” é o DNA da obediência, do colonizado, do obediente, e toda revolta deve ser condenada.

Outro exemplo é a pergunta interativa feita no tradicional programa de debates Conversas Cruzadas, da RBS TV, sobre o tema: se o Irã iria cumprir o acordo. É uma pergunta legítima, mas típica do enfoque preferencial da produção desse programa, nem em sonhos, cogitam de fazer uma pergunta que começasse, não examinando as consequências futuras, mas os significados do gesto recente: o novo peso do Brasil na política internacional.

Perderam a noção, o sentido da grandeza, a percepção da história, o significado do gesto, o valor e o peso do Brasil, a noção da Pátria, os interesses do Mundo e da Paz.

Se fazem amnésicos, não lembram nem da história recente: as invasões das “cruzadas Bush”, dos movimentos evidentes do conservadorismo americano para invadir o Irã.

E também não se lembram do passado, pois querem eternizar as condições que fizeram das grandes nações coloniais e dos grandes países industrias do século XX os dominadores e senhores da Terra. Aliás, no mesmo jornal da Noite citado, há uma passagem que claramente indica como insensato atrevimento querer alterar a “ordem natural” das coisas. Quem tem riqueza, armas, poder, tecnologia, terá cada vez mais. Quem não tem, obedecerá cada vez mais.

É disto que se trata e é isto que Lula e o Brasil enfrentam com sensibilidade e realismo, tentando romper estes limites protegendo ao mesmo tempo a possibilidade do entendimento e da Paz. Não é para qualquer um.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Eric Toussaint

A crise na Europa e a religião do mercado


Eric Toussaint (foto) é presidente do CADTM Bélgica (Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo), doutor em Ciências Políticas na Universidade de Liége (Bélgica) e na Universidade de Paris VIII (França) em artigo na Carta Maior, 19-05-2010.
Fonte: UNISINOS


Quase todos os dirigentes políticos, sejam da esquerda tradicional ou da direita, sejam do Norte ou do Sul, confessam uma verdadeira devoção pelo mercado e, em particular, pelos mercados financeiros. Na verdade, deveríamos dizer que eles criaram uma verdadeira religião do mercado. A cada dia, em todas as casas do mundo que tem televisão ou internet, celebra-se uma missa dedicada ao deus mercado durante a divulgação da evolução das cotações da Bolsa e dos mercados financeiros. O deus Mercado envia seus sinais através do comentarista financeiro da televisão ou da imprensa escrita. Isso não acontece não somente nos países mais industrializados, mas também na maior parte do planeta. Em Shangai ou em Dakar, no Rio de Janeiro ou em Tombuctu, qualquer um pode saber quais são os “sinais enviados pelos mercados”.

Em todas as partes, os governos promoveram privatizações e criaram a ilusão de que a população poderia participar diretamente dos ritos do mercado (mediante da compra de ações) e que, como contrapartida, se beneficiaria se soubesse interpretar corretamente os sinais enviados pelo deus Mercado. Na verdade, a pequena proporção da população trabalhadora que adquiriu ações não tem o mínimo peso nas tendências de mercado.

Daqui a alguns séculos, talvez alguém leia nos livros de História que, a partir dos anos 80 do século XX, um certo culto fetichista provocou furor. A expansão assim como o poder que esse culto atingiu poderão ser relacionados com os nomes de dois chefes de Estado: Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Os livros poderão destacar ainda que esse culto se beneficiou, desde o início, da ajuda dos poderes públicos e das potências financeiras privadas. Na verdade, para que esse culto encontrasse certo eco junto às populações, foi necessário que os meios de comunicação públicos ou privados rendessem-lhe homenagens cotidianamente.

Os deuses desta religião são os Mercados Financeiros, aos quais se destinaram templos chamados Bolsa, para onde só são convidados os grandes sacerdotes e seus acólitos. O povo dos crentes, por sua vez, é convidado a entrar em comunhão com os deuses Mercados mediante a tela da TV ou do computador, o jornal, o rádio ou o guichê do banco.

Até nos rincões mais recônditos do planeta, graças ao rádio ou à televisão, centenas de milhões de seres humanos, a quem se nega o direito de ter suas necessidades básicas satisfeitas, são convidados a celebrar os deuses Mercados. Aqui no Norte, na maioria dos jornais lidos pelos assalariados, pelas donas de casa e pelos desempregados, existe uma seção do tipo “onde colocar seu dinheiro”, apesar da esmagadora maioria de seus leitores e leitoras não ter nenhuma ação na Bolsa. Paga-se aos jornalistas que ajudem aos crentes a compreender os sinais enviados pelos deuses. Para aumentar o poder destes deuses sobre o espírito dos crentes, os comentaristas anunciam periodicamente que eles enviaram sinais aos governos para indicar sua satisfação ou descontentamento.

O governo e o Parlamento gregos, tendo compreendido finalmente a mensagem recebida, adotaram um plano de austeridade de choque que fará com que os debaixo paguem o custo da crise. Mas os deuses seguem descontentes com o comportamento de Espanha, Portugal, Irlanda e Itália. Seus governos também deveriam levar como oferendas importantes medidas anti-sociais para acalmá-los.

Os lugares onde os deuses angustiam-se com a manifestação de seus humores estão em Nova York, em Wall Street, na City de Londres, nas Bolsas de Paris, Frankfurt e de Tóquo. Para medir sua satisfação, inventaram-se instrumentos que levam o nome de Dow Jones em Nova York, Nikei em Tóquio, CAC40 na França, Footsie em Londres, Dax em Frankfurt ou IBEX na Espanha. Para assegurar a benevolência dos deuses, os governos sacrificam os sistemas de seguridade social no altar da Bolsa e, além disso, privatizam.

Valeria a pena perguntar-se porque foi outorgada essa dimensão religiosa a estes operadores. Eles não são nem desconhecidos nem meros espíritos. Possuem nome e domicílio: são os principais dirigentes das 200 maiores multinacionais que dominam a economia mundial com a ajuda do G7 e de instituições como o FMI – que voltou ao centro do cenário graças à crise após ter passado um tempo no purgatório.

Também atuam o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, ainda que esta não esteja em seu melhor momento. Ninguém sabe se ela poderá ser, de novo, a escolhida dos deuses. Os governos não são uma exceção: desde a era de Reagan e Thatcher abandonaram os meios de controle que contavam para monitorar os mercados financeiros. Dominados pelos investidores institucionais (grandes bancos, fundos de pensões, companhias de seguros, hedge funds...) os governos doaram ou emprestaram aos mercados trilhões de dólares para que pudessem cavalgar de novo, depois do desastre de 2007-2008. O Banco Central Europeu, o Federal Reserve dos EUA e o Banco da Inglaterra emprestaram diariamente, com uma taxa de juro inferior à inflação, enormes capitais que os investidores institucionais se apressaram em utilizar de forma especulativa contra o euro, contra os tesouros dos Estados, etc.

Atualmente, o dinheiro pode atravessar fronteiras sem nenhuma imposição fiscal. A cada dia cerca de 3 trilhões de dólares circulam pelo mundo saltando as fronteiras. Menos de 2% desta soma é utilizada diretamente no comércio mundial ou em investimentos produtivos. Mais de 98% estão envolvidos em operações especulativas, em especial relacionadas às moedas, aos títulos da dívida ou às matérias primas. Devemos acabar com a trivialização desta lógica de morte.

É preciso criar uma nova disciplina financeira, expropriar esse setor e colocá-lo sob controle social, gravando com fortes impostos aos investidores institucionais que primeiro provocaram a crise e depois se aproveitaram dela, auditando e anulando as dívidas públicas ilegítimas, instaurando uma reforma tributária redistributiva, reduzindo radicalmente a jornada de trabalho a fim de poder se contratar massivamente, sem diminuição de salários. Em duas palavras, começar a colocar em marcha um programa anticapitalista.

domingo, 16 de maio de 2010

Antônio Flávio Pierucci

Deus quer você rico. Neopentecostais prometem a prosperidade, mas recomendam que fiéis cobrem de Deus

Deus quer ver você rico, carros na garagem, negócios prosperando, dívidas quitadas, a família unida, todos com saúde. De quebra, você leva a garantia de uma relação mística com o Espírito Santo. E ainda ganha o céu. Basta que você acredite, abra a carteira e ofereça a seu Deus tudo o que puder. Seja generoso, sincero, nada de desvios ou caixa dois, pois Deus vê tudo. A fórmula mágica, irresistível, foi desenvolvida pela igreja neopentecostal Universal do Reino de Deus e vem sendo exportada para os EUA, Portugal, América Latina e África. No Brasil, onde nasceu, o número de fiéis da Universal cresceu 681,5% entre 1991 e 2000, segundo os números do IBGE. É o maior salto dado por uma igreja no País, possivelmente no mundo. Significa 278 vezes mais do que cresceram os católicos nesse período, e quase três vezes mais que os fiéis da Assembléia de Deus, a mais numerosa das igrejas evangélicas desde o início do século passado. Se estiver mantendo o mesmo ritmo de crescimento, a Universal terá hoje mais de 8 milhões de seguidores, “colando” na Assembléia de Deus que em 2000 tinha 8,4 milhões de fiéis. A Renascer, do casal de bispo Hernandes, reunia oficialmente menos de 300 mil fiéis em 2000, hoje já fala em 2 milhões. O Brasil é hoje, de longe, o maior país pentecostal do mundo, 24 milhões de seguidores contra 5,8 milhões do segundo lugar, os EUA. O sociólogo e professor da USP Antônio Flávio Pierucci, 62 anos, especialista em religião, decifrou os números dos últimos censos e chegou a uma constatação ainda mais significativa: a maior taxa de crescimento vem se dando com as igrejas que pregam a teologia da prosperidade, como a Universal, e aquelas que pregam o milagre da cura, como a Deus é Amor - que cresceu 357,6%. Para Pierucci, “religiões vivem de promessa e se nutrem da sua autopromoção. Não adiantam nada quendo eu preciso de emprego. Não interferem nas grandes decisões que tocam nossas vidas, como as mudanças econômicas”. Abaixo, trechos do depoimento que o professor Pierucci deu ao jornal O Estado de S. Paulo, 11-02-2007.
Fonte: UNISINOS





TEMPO DAS CATEDRAIS

O pentecostalismo cresce principalmente na América Católica. No México, já há etnias indígenas inteiras convertidas. É provável que a vinda do papa ao Brasil e sua participação no Celam, a conferência latino-americana dos bispos, tenha a ver com o avanço do pentecostalismo, quem sabe uma conclamação para que os católicos sejam mais agressivos com relação aos pentecostais, especialmente os neopentecostais. Mas não acredito que sua vinda mudará a tendência de crescimento dessas igrejas. O arcebispo da Paraíba (dom Aldo Pagotto) alertou os católicos de que estariam sendo enganados pela teologia da prosperidade. O arcebispo se assustou com o ritmo e a grandiosidade do templo da Universal do Reino de Deus em João Pessoa, quando a basílica de Aparecida, por exemplo, vem sendo construída há 50 anos. Quando o Edir Macedo inaugurou o grande templo da Universal no Rio, moderníssimo, disse que sua igreja estava entrando no tempo das catedrais, assim como o catolicismo já teve o seu tempo. Ele está dizendo que sua igreja está bastante consolidada para sair das capelas e que agora construirá catedrais.

A TERCEIRA ONDA

Os neopentecostais são certamente a corrente que mais preocupa os católicos. Eles fazem parte do que se chama a terceira onda evangélica, representada principalmente por Edir Macedo, da Universal do Reino de Deus, e pelo casal Hernandez, da Renascer. Pregam a teologia da prosperidade. As primeiras evangélicas são chamadas de ‘históricas’, a Luterana, a Batista, Adventista, Metodista. Em 1901 nasce nos EUA o pentecostalismo, que chega ao Brasil em 1910 com a Assembléia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil. É a primeira onda pentecostal, bastante conservadora. Os fiéis não se envolviam em política, eram proibidos de participar dos sindicatos, as mulheres usavam roupas longas, os homens, terninhos. A segunda onda surge nos anos 1950, com a Evangelho Quadrangular e a Cruzada de Evangelização Nacional, que passam a usar o rádio e ações públicas para se propagar de forma mais visível nas grandes cidades. Mas a grande novidade da segunda onda foi a cura, o milagre, ‘Jesus cura a doença de seu corpo, não apenas salva sua alma’. A partir daí o ritmo de crescimento do pentecostalismo no Brasil e na América Latina se acelera loucamente. David Miranda, à frente da Deus é Amor, é o principal representante dessa corrente. A terceira onda vem nos anos 70, com a teologia da prosperidade pregada por Edir Macedo, à frente da Universal, e pelos bispos Sonia e Estevam Hernandes, da Renascer. Com esses neopentecostais, há uma valorização positiva do dinheiro, e isso é uma grande novidade no mundo religioso cristão. Todas as denominações evangélicas oferecem os dons do Espírito Santo, uma experiência mística na qual o fiel mergulha numa esfera sagrada, rompendo parcialmente o seu estado de consciência. Oferecem também uma vida eterna depois da morte. A segunda onda, além da experiência mística e da vida eterna, oferece também a cura das doenças. E a terceira, mais do que o misticismo, o céu e a cura, também garante a prosperidade. É a corrente pentecostal que vem crescendo mais rapidamente. O protestantismo do século 17 dizia que Deus iria coroar de sucesso o fiel que trabalhasse. O trabalho era recompensado. Já o neopentecostalismo valoriza o dinheiro. Você dá dinheiro para a igreja e quanto maior a tua generosidade, maior a tua recompensa. Isso nunca houve. É como se fosse uma aplicação, você investe na igreja e aguarda um retorno de Deus. Isso é uma invenção dos neopentecostais, uma grande mina de ouro. Eles descobriram uma maneira de fazer as coisas de uma forma que dificulta dizer que as pessoas estão sendo enganadas. Porque vão dizer que estão dando o dinheiro porque querem, o advogado vai dizer, ‘as pessoas estão dando livremente o dinheiro, ninguém está sendo coagido fisicamente, as pessoas abrem sua carteira porque querem’. Há muitas ações na Justiça, mas quando se trata de religião, fica difícil provar que as pessoas estão sendo enganadas.

COMO UMA EMPRESA

A teologia da prosperidade é americana, mas foi processada aqui e hoje é exportada. O Brasil inovou pregando em grandes espaços, ocupando a mídia e criando uma igreja-empresa. A Renascer partiu para a imagem de mídia social, tentando ganhar a classe média, os jovens, o bispo Estevam é dono da marca gospel. A Universal do Reino de Deus tem um líder extremamente carismático, que é o Edir Macedo. Tudo ali é programado como uma empresa, de cima para baixo, o soldado raso não manda nada. É bem o oposto, por exemplo, da democracia de uma igreja Batista, pequena, local, autônoma, onde os pastores e os fiéis decidem até os hinos que vão cantar. Isso é impensável na Universal, onde todos os dias o pastor presta contas online do movimento de sua igreja. Se não cumpre as metas, é mandado para uma igreja menor, se vai bem, é promovido. É todo um esquema de prêmio, promoções. David Miranda, da Deus é Amor, partiu para o espetáculo do milagre. Reúne multidões em estádios para dizer que todos ali que tiverem câncer na perna, que dêem um passo à frente, pois serão curados. E as pessoas acreditam.

COBRANDO DE DEUS

Além dos ‘desafios’, que são as ofertas em dinheiro quando você precisa de uma ajuda especial, uma cura, um negócio que vai mal, as igrejas cobram o dízimo, exatos 10% do que você declara que ganha. Como Deus vê tudo, você vai ficar morrendo de medo de estar mentindo. Esse é outro trunfo das religiões, você pode mentir para a receita, mas quem crê não mente para Deus. Na Deus é Amor do David Miranda, o dízimo é cobrado com um carnê de 12 prestações. Antes de participar da santa ceia (que é a comunhão, para os católicos), um obreiro confere se você está quites com o dízimo. Se não estiver, você não recebe a comunhão. Mas quando você dá, seja o dízimo, sejam as ofertas, você explicita a sua cobrança. Essa é outra diferença do neopentecostalismo, o fiel é levado a ser exigente com Deus, a cobrar de Deus. ‘Eu dei para você tudo que eu tinha no banco, você é fiel, você não vai me abandonar, você vai fazer isso que estou pedindo’. É um jeito de orar cobrando, nada parecido com as orações tradicionais, que pedem com humildade. E os pastores fazem essas cobranças em voz alta, para que os fiéis aprendam como se dirigir a Deus de uma forma mais reivindicante, mais altiva. E eles sempre vão cobrar de Deus, não dos pastores. Nem que você veja seu dinheiro transformado em uma mansão em Miami, isso não vai tirar de você o direito de cobrar de Deus. Também não levará você a culpar seus pastores, pois o sucesso reforça a idéia de que Deus de fato recompensa aqueles que oram, e que o dinheiro é uma coisa positiva, desejável. Por outro lado, os neopentecostais exploram a crença de que são uma minoria perseguida por uma igreja majoritária, que são discriminados pela sociedade, que a universidade brasileira tem preconceito contra eles. E quando acontecia de o Edir Macedo, por exemplo, ser acusado de lavagem de dinheiro ou sonegação de impostos, ou era mostrado atrás das grades, se dizia que era perseguição, como Cristo foi perseguido. Com isso conseguem a solidariedade daquelas igrejas evangélicas menos críticas. Os neopentecostais aprenderam a transformar doações dos fiéis em riqueza pessoal. Não se sabe ainda como isso será explicado para a receita. A Igreja Católica também tem muitos bens e as congregações têm propriedades, mas aqui se faz uma distinção entre o que é da pessoa jurídica e o que é da pessoa física. A Cúria Metropolitana, as congregações, podem ter muitos bens e imóveis, mas o arcebispo e os monges são pobres .

AVANÇO PREDADOR

O neopentecostalismo é muito mais pelo indivíduo do que pelo grupo. É assim que são feitas as conversões, por ‘contaminação’. Se um taxista de um ponto é convertido, dentro de algum tempo outros motoristas serão convertidos. A idéia é retirar o indivíduo do grupo onde ele se encontra e oferecer a ele um outro grupo, onde se sentirá inserido e valorizado, passará a acreditar e se empenhará em converter outros. O neopentecostalismo não respeita tradições nem culturas. É impiedoso com as religiões menores, como as afro-brasileiras, age como se estivesse numa guerra, disputando fiéis. Isso explica seu rápido crescimento, especialmente na periferia das grandes cidades e nas regiões onde o catolicismo não avançou. Seus pastores seguem os novos espaços onde a floresta vem sendo derrubada e novas fronteiras sendo abertas. Eles não avançam para conter, avançam porque a abertura de novas fronteiras rompe as tradições, e onde as tradições se rompem é sempre mais fácil prometer ‘nada do passado e tudo do futuro’ A idéia de preservação não combina com esse tipo de empreendedorismo evangélico. Eles são predadores, não são preservacionsitas, são uma igreja capitalista.

SEM LIDERANÇAS

É uma religião que optou por colar nos mais pobres, não como uma opção pelos excluídos, como fez a Igreja Católica, mas para convertê-los.Talvez por conta desse foco no indivíduo, não no grupo, os pentecostais e os neopentecostais não têm lideranças na sociedade civil, como a Igreja Católica tem d. Evaristo Arns. Os judeus são pouco mais de cem mil (segundo o censo de 2000) e o rabino Henry Sobel é uma estrela; a monja Cohen (os budistas são cerca de 250 mil no país) dá um grande peso aos movimentos que participa. Os pentecostais não têm isso. Há pastores evangélicos intelectuais, engajados, mas nada que venha no sentido de uma simpatia para o socialismo, uma idéia coletiva de que você tem quer solidário com as populações mais pobres.

Entre os anos de 1991 e 2000, os neopentecostais da igreja Universal tiveram um crescimento de 681,5%. As várias igrejas ou denominações evangélicas, juntas, cresceram 98,5%. Nesse período, os católicos aumentaram 2,5%, bem abaixo da taxa de crescimento da população brasileira, que foi de 15,7%. Em 2000, segundo o censo daquele ano, os católicos eram 124,9 milhões e os evangélicos, 26,2 milhões.

Se as tendências de crescimento permanecerem, o Brasil será um país com uma cara cada vez mais pentecostal. Essa sociedade será mais conservadora nas questões de moral sexual. Nas relações entre o casal, o homem ficará mais respeitoso com a mulher, como acontece em todo as igrejas protestantes. Mas esse respeito não será um respeito erotizado, portanto, viveremos em um país mais conservador.

Entrevista - Gedeon Freire de Alencar

''A Teologia da Prosperidade e o neoliberalismo são irmãos siameses''


O sociólogo Gedeon Freire de Aguiar reconhece as contribuições do pentecostalismo para a sociedade brasileira, principalmente em relação ao aumento do número de alfabetizados e à diminuição da violência doméstica. No entanto, ele faz críticas ao pentecostalismo quando afirma que o mesmo “reproduz as opressões sociais, e elas ficam pioradas porque, neste caso, têm uma ‘marca espiritual’”.  Sociólogo, presbítero da Assembleia de Deus Betesda, em São Paulo, Gedeon Freire de Alencar é diretor pedagógico do Instituto de Estudos Contemporâneos (ICEC). É mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista, com a tese "Todo poder aos pastores, todo trabalho ao povo, e todo louvor a Deus. Assembleia de Deus: origem, implantação e militância (1911-1946)".


IHU On-Line - Como o senhor descreve a relação entre as religiões pentecostais e a sociedade brasileira?

Os pentecostalismos (no plural), como qualquer outra expressão religiosa, têm acertos e erros na sua relação com a cultura. Como nos lembra Weber, em seu clássico texto Rejeições religiosas do mundo e suas direções, ou teoria dos conflitos, as religiões de salvação têm uma relação de tensão e concessão com o mundo. Portanto, com os pentecostalismos não poderia ser diferente. Sem julgamento de valores, vejamos, por exemplo, a relação entre alfabetização e pentecostalismo. Nas regiões mais pobres da sociedade aonde o pentecostalismo chegou, houve uma melhora na questão da alfabetização, ou, de outra forma, se não fosse o pentecostalismo, nosso índice seria pior. Na questão da violência doméstica, idem. Mas também tem outra contribuição em termos culturais, pois, originalmente, negava e até satanizava todas as expressões de danças, comidas, músicas e instrumentos. Portanto, é uma relação ambígua.

IHU On-Line - Quais as principais críticas que o senhor faz ao pentecostalismo hoje?

Reproduz as opressões sociais e elas ficam pioradas porque, neste caso, têm uma “marca espiritual”. E aqui cito o machismo, a discriminação de gêneros e sexos, apatia nas lutas sociais, um processo de acomodação de status e uma ênfase exagerada na solução dos problemas pessoais em detrimento da comunidade.

IHU On-Line - Como se dá a relação entre o pentecostalismo e as religiões afro?

Péssima - por culpa de ambas. Sei que corro o risco de desagradar a todos, mas não vou fugir da questão. Primeiro, todas as religiões têm dificuldade de relacionamento, pois estabelecer uma relação é identificar no outro algum valor o suficiente para ele/a ser visto e ouvido. O ecumenismo é bonito na teoria, mas é piada utópica. Segundo, teologicamente, ou sendo mais simplista, fenomenologicamente apenas, é impossível uma relação entre as duas. Nenhuma reconhece a outra, mesmo como mero fenômeno social. Terceiro, ambas são concorrentes, pois suas membresias estão na mesma camada social. Quarto, a criminalização da questão superou os limites da civilidade. Ambas são majoritariamente religiões de pobres e, esta, dentre outras, foi a razão da perseguição externa. O pentecostalismo foi absurdamente perseguido em seus primeiros anos, nos EUA e também no Brasil, pelas igrejas tradicionais, ditas cristãs, muito mais por racismo e sexismo. Uma perseguição imoral, anticristã, vergonhosa. Mas este mesmo pentecostalismo (no caso o neopentecostal), agora hegemônico e poderoso, repete de forma vergonhosa a mesma perseguição. Uma coisa é querer se diferenciar religiosamente, “se vender” como a religião melhor, mais correta etc. Outra coisa é criminalizar o outro; perseguir mesmo. Por outro lado, os cultos afros são muito competentes em termos estéticos e culturais, mas absurdamente incompetentes em racionalidade econômica. Para completar, são estupidamente divididos e inimigos entre si. Alguns optaram por um demagógico discurso vitimista e só conseguem se manter porque vivem ancorados nas sinecuras estatais. Com a desculpa (ou a culpa mesmo) de que é “cultura” e não religião, deram um tiro no pé: virou cultura alegre, vistosa, interessante para turista, mas se folclorizou. Enfeite de solenidade, alegoria de carnaval, não conseguiu articular militância e fidelização de seus membros. É dizimado mais por seus próprios erros internos que externos. Pelo andar da carruagem só vai sobrar em museu.

IHU On-Line - Que relação podemos estabelecer entre a teologia da prosperidade e o neoliberalismo econômico?

Toda teologia tem a cara de seu tempo - mesmo que teólogos se digam inspirados (apenas) por Deus. O teólogo é um leitor de seu tempo. Alguns são bons leitores, outros péssimos. Então, teologia da prosperidade e neoliberalismo é, como diz o provérbio popular, a casa e o botão. São irmãos siameses. Um não existiria sem o outro. Não vou me atrever a avaliar a teologia ou a economia, pois entendo pouco dos dois, mas diria apenas mais uma coisa: por que o neoliberalismo não nasceu, por exemplo, no final da década de 20? Não existia, absolutamente, ambiente para isso. Da mesma forma como a teologia da prosperidade jamais teria surgido, no Brasil, na década de 70. Não havia condições econômicas e sociais propícias. Isso poderia ser dito de outras teologias e de outras épocas similares.

IHU On-Line - Em que sentido podemos perceber nas religiões neopentecostais uma ética relativista e uma estética consumista, como o senhor apontou em uma entrevista já em 2006?

Um dos critérios - quase único - de nosso tempo é o quantitativo. “O fetiche de quantidade”, como disse Renato Mezan, no caderno Mais, Folha de S. Paulo, semana passada. Tudo é medido em números, e estes funcionam como oráculo divino. Por que este livro é bom? Porque vendeu muito. E este é melhor que outro porque vendeu mais ainda. Então, por que este louvor, música, pregação e igreja são melhores e estão certos, mais que outra(s)? Porque vendeu mais. Têm mais gente. Ter mais público quantitativamente é o grande critério de validação. Daí quem é o elemento fundante e final da coisa: o consumo. Por isso, benções são consumidas, louvores vendidos, pregações compradas. Igrejas são da moda – e o céu (ou o inferno para quem acredita...) é o limite. Conclusão - perdão pelo lugar comum - tudo é relativo. A ética é então muito mais conveniência que convicção; muito mais funcionalidade que fundamento. Qual a ética que rege este modelo? A do possível, dos fins justificando os meios. Não se tem mais a priori um bem maior definido e fundante, mas uma relatividade funcional de que, dependendo da “necessidade”, vale qualquer coisa. Se posso pagar a benção, comprar o louvor, transformar em moda a adoração, toda embalada para consumo de indivíduos, quem é que pode, em última instância, definir o objetivo? E Deus - seja lá ele quem for - não se meta a querer mudar o projeto.

IHU On-Line - Como entender a ênfase escatológica pregada pelas religiões pentecostais?

Nas igrejas pentecostais mais periféricas (domingo passado, vi isso pessoalmente) a mensagem escatológica ainda é forte, já nas igrejas de classe média e, principalmente, nas neopentecostais, o discurso escatológico está fora de moda. Simples, se Jesus voltar agora vai estragar a festa! O pentecostalismo, fenômeno típico da passagem do século XIX para o XX é absolutamente escatológico. Nasce no período das grandes guerras. Ademais, como religião de pobres, o sonho é escapar da miséria. É fácil para um intelectual de esquerda ridicularizar isso como alienação, mas, fazendo algum esforço para compreender “de dentro”, a doutrina escatológica também pode ser uma esperança. O céu é um projeto de justiça e paz.

IHU On-Line - Como a Assembleia de Deus se posiciona em relação ao pentecostalismo?

A Assembleia de Deus é uma igreja pentecostal. Aliás, não existe a Assembleia de Deus no singular, mas Assembleias. São muitas, variadas, autônomas, e, às vezes, inimigas entre si. Mas, majoritariamente são pentecostais, e como o universo assembleiano é vasto, há desde assembleias clássicas e tradicionais às mais neopentecostais e folclóricas possíveis. Teoricamente, pentecostal é quem aceita a contemporaneidade da doutrina do Espírito Santo. Mas a complicação é imediata: qual doutrina? Por exemplo, o falar em línguas e o exorcismo. Muitas igrejas hoje não têm mais estas marcas, ou só tem uma, como a Igreja Universal do Reino de Deus, que só dá ênfase ao exorcismo. Enfim, há muito que pentecostalismo não é mais apenas uma designação doutrinária, mas uma definição sociológica, e mesmo esta, atualmente, não é consenso.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Antônio Gois

Negros ainda são vítimas de escravidão

Artigo de Antônio Gois publicado no jornal Folha de S. Paulo, 13-05-2010.
Fonte: UNISINOS


É o que mostra um estudo do economista Marcelo Paixão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, feito a partir do cadastro de beneficiados pelo Bolsa Família incluídos no programa após ações de fiscalização que flagraram trabalhadores em situações que, para a ONU, são consideradas formas contemporâneas de escravidão.

São pessoas trabalhando em situações degradantes, com jornada exaustiva, dívidas com o empregador -que o impedem de largar o posto - e correndo riscos de serem mortas.

Paixão, que publica anualmente um Relatório de Desigualdades Raciais (ed. Garamond), diz que foi a primeira vez em que conseguiu investigar a cor ou raça desses trabalhadores, graças à inclusão do grupo no Bolsa Família.

Os autodeclarados pretos e pardos - que Paixão soma em seu estudo, classificando como negros - representavam 73% desse grupo, apesar de serem 51% da população total do Brasil. Tal como nas pesquisas do IBGE, é o próprio entrevistado que, a partir de cinco opções (branco, preto, pardo, amarelo ou indígena) define sua cor.

Para o economista, "a cor do escravo de ontem se reproduz nos dias de hoje. Os negros e índios, escravos do passado, continuam sendo alvo de situações em que são obrigados a trabalhar sem direito ao próprio salário. É como se a escravidão se mantivesse como memória".

Pretos e pardos são maioria entre a população mais pobre. Segundo o IBGE, entre os brasileiros que se encontravam entre os 10% mais pobres, 74% se diziam pretos ou pardos.

Para Paixão, ainda que hoje a cor não seja o único fator a determinar que um trabalhador esteja numa condição análoga à escravidão, o dado sugere que ser preto ou pardo eleva consideravalmente a probabilidade.

Projeto Excelências


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Livro

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O Memorial Virtual Frei Tito é um espaço dedicado a um dos maiores símbolos da luta pelos direitos humanos e pela democracia na América Latina e Caribe. Cearense, filho, irmão, frade, ativista, preso político, torturado, exilado, mártir... Conhecer a história de Frei Tito é fundamental para entender as lutas políticas e sociais travadas nos últimos 40 anos contra a tirania de regimes ditatoriais. Neste hotsite colocamos à disposição documentos, fotos, testemunhos, textos e outras informações sobre a vida de Tito de Alencar Lima, frade dominicano que colaborou com a luta armada durante a ditadura militar no Brasil.

Campanha Nacional de Solidariedade às Bibliotecas do MST

Campanha Nacional de Solidariedade às Bibliotecas do MST
Os trabalhadores e trabalhadoras rurais de diversos Estados do Brasil ocupam mais um latifúndio: o do conhecimento. Dar continuidade às conquistas no campo da educação é o objetivo da Campanha Nacional de Solidariedade às Bibliotecas do MST, que pretende recolher livros para as bibliotecas dos Centros de Formação. Veja como participar clicando na figura.

Fórum Social Mundial

Fórum Social Mundial
O Fórum Social Mundial (FSM) é um espaço aberto de encontro – plural, diversificado, não-governamental e não-partidário –, que estimula de forma descentralizada o debate, a reflexão, a formulação de propostas, a troca de experiências e a articulação entre organizações e movimentos engajados em ações concretas, do nível local ao internacional, pela construção de um outro mundo, mais solidário, democrático e justo. Em 2009, o Fórum acontecerá entre os dias 27 de janeiro a 1° de fevereiro, em Bélem, Pará. Para saber mais, clicar na figura.

Fórum Mundial de Teologia e Libertação

Fórum Mundial de Teologia e Libertação
É um espaço de encontro para reflexão teológica tendo em vista contribuir para a construção de uma rede mundial de teologias contextuais marcadas por perspectivas de libertação, paz e justiça. O FMTL se reconhece como resultado do movimento ecumênico e do diálogo das diferentes teologias contemporâneas identificadas com processos de transformação da sociedade. Acontecerá entre os dias 21 a 25 de janeiro em Bélem, Pará, e discutirá o tema "Água - Terra - Teologia para outro Mundo possível". Mais informações, clicar na figura.

IBASE

IBASE
O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) foi criado em 1981. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, é um dos fundadores da Instituição que não possui fins lucrativos e nem vinculação religiosa e partidária. Sua missão é de aprofundar a democracia, seguindo os princípios de igualdade, liberdade, participação cidadã, diversidade e solidariedade. Aposta na construção de uma cultura democrática de direitos, no fortalecimento do tecido associativo e no monitoramento e influência sobre políticas públicas. Para entrar no site do Ibase, clicar na figura.

Celso Furtado

Celso Furtado
Foi lançado no circuito comercial o DVD do documentário "O longo amanhecer - cinebiografia de Celso Furtado", de José Mariani. Para saber mais, clicar na figura.

O malabarismo dos camaleões

O malabarismo dos camaleões
Estranha metamorfose: os economistas e jornalistas que defenderam, durante décadas, as supostas qualidades do mercado, agora camuflam suas posições. Ou — pior — viram a casaca e, para não perder terreno, fingem esquecer de tudo o que sempre disseram. Para ler, clicar na figura.

A opção pelo não-mercantil

A opção pelo não-mercantil
A expansão dos serviços públicos gratuitos pode ser uma grande saída, num momento de recessão generalizada e desemprego. Mas para tanto, é preciso vencer preconceitos, rever teorias e demonstrar que a economia não-mercantil não depende da produção capitalista. Para ler, clicar na figura.