quinta-feira, 30 de abril de 2009

José Saramago

Eduardo Galeano

Fonte: O Caderno de Saramago


Grande alvoroço nas redacções dos jornais, rádios e televisões de todo o mundo. Chávez aproxima-se de Obama com um livro na mão, é evidente que qualquer pessoa de bom senso achará que a ocasião para pedir um autógrafo ao presidente dos Estados Unidos é muito mal escolhida, ali, em plena reunião da cimeira, mas, afinal, não, trata-se antes de uma delicada oferta de chefe de Estado a chefe de Estado, nada menos que As veias abertas da América Latina de Eduardo Galeano. Claro que o gesto leva água no bico. Chávez terá pensado: “Este Obama não sabe nada de nós, quase que ainda não tinha nascido, Galeano lhe ensinará”. Esperemos que assim seja. O mais interessante, porém, além de se terem esgotado As veias na Amazon, as quais passaram num instante de um modestíssimo lugar na tabela de vendas à glória comercial do “best-seller”, de cinquenta e tal mil a segundo na classificação, foi o rápido e parecia que concertado aparecimento de comentários negativos, sobretudo na imprensa, tratando de desqualificar, embora num caso ou noutro com certos matizes benevolentes, o livro de Eduardo Galeano, insistindo em que a obra, além de se exceder em análises mal fundamentadas e em marcados preconceitos ideológicos, estava desactualizada em relação à realidade presente. Ora, As veias abertas da América Latina foi publicada em 1971, há quase quarenta anos, portanto, a não ser que o seu autor fosse uma espécie de Nostradamus, só com um hercúleo esforço imaginativo seria capaz de adiantar a realidade de 2009, tão diferente já dos anos imediatamente anteriores. A denúncia dos apressados comentadores, além de mal intencionada, é bastante ridícula, tanto como o seria a acusação de que a História verdadeira da conquista da Nova Espanha, por exemplo, escrita no século XVII por Bernal Díaz del Castillo, abunda, também ela, em análises mal fundamentadas e em marcadíssimos preconceitos ideológicos. A verdade é que quem pretender ser informado sobre o que se passou na América, naquela América, desde o século XV, só ganhará em ler o livro de Eduardo Galeano. O mal daqueles e outros comentadores que enxameiam por aí é saberem pouco de História. Agora só nos falta ver como aproveitará Barack Obama da leitura de As veias abertas. Bom aluno parece ser.

Gustavo Goulart

Aumenta violência contra as mulheres


O número de casos de lesões corporais em mulheres causadas por violência doméstica aumentou 37% em 2008, comparado com 2007, segundo os dados da quarta edição do Dossiê Mulher — referentes a 2008 e divulgados ontem no site do Instituto de Segurança Pública (ISP). Em 2007, o número de registros em delegacias do estado chegou a 19.620 contra 26.876 casos no ano passado. Os de 2008 representam uma média de 73 agressões por dia ou 895 por mês. A reportagem é de Gustavo Goulart e publicada pelo jornal O Globo, 30-04-2009.
Fonte: UNISINOS


Um dos casos foi o que envolveu a atriz Luana Piovanni e seu então namorado Dado Dolabella, acusado de tê-la agredido no dia 23 de outubro.

Em 2008, foi registrado o maior número de estupros A Área Integrada de Segurança Pública (Aisp) 15, que compreende o município de Duque de Caxias, na Baixada, foi a que apresentou o maior número de vítimas de lesão corporal por violência doméstica (quando os acusados eram parentes ou mantinham algum laço afetivo com a vítima).

Em comparação com os números de 2006, o percentual de aumento do mesmo tipo de violência chega 208%. Foram 8.725 casos naquele ano. O crime de lesão corporal só cresceu desde 2005, quando foi publicada a primeira edição do dossiê mostrando 5.559 casos. A faixa etária das mulheres mais agredidas vai de 18 a 34 anos com 59,5%. E 54,5% delas eram solteiras.

Além disso, 80,3% dos agressores foram identificados como sendo ex-companheiros ou companheiros das vítimas.

Outro dado que chama a atenção no trabalho do ISP se refere aos registros de estupro.

O número deste tipo de crime subiu 6,9% em 2008 em relação ao ano anterior. Foram registradas 1.471 vítimas no ano passado, contra 1.371 em 2007. O ano de 2008 teve o maior número de vítimas de estupro dos últimos nove anos: de toda a série histórica (desde 1991), somente os anos de 1998 (1.493) e 1999 (1.571) apresentaram maior número de casos do que o ano passado.

Ao todo, 39,4% das vítimas tinham entre 12 e 17 anos, e 32,7%, entre 18 e 34 anos. Alguns dados são assombrosos: 2,2% das vítimas tinham até 5 anos e 7,4% eram da faixa etária de 6 a 11 anos. As mulheres solteiras representaram 76,7% das vítimas de estupro em 2008, enquanto as casadas somaram 10,8%.

A pesquisa do ISP, feita pela socióloga Andréia Soares Pinto, autora das outras edições, mostra ainda que a soma dos percentuais de acusados que eram companheiros, ex-companheiros, pais, padrastos, parentes, conhecidos ou que tinham alguma outra relação com a vítima chega a 55,6% dos casos.

Mike Davis

A gripe suína e o monstruoso poder da indústria pecuária

Em 1965, havia nos EUA 53 milhões de porcos espalhados entre mais de um milhão de granjas. Hoje, 65 milhões de porcos concentram-se em 65 mil instalações. Isso significou passar das antiquadas pocilgas a gigantescos infernos fecais nos quais, entre esterco e sob um calor sufocante, prontos a intercambiar agentes patógenos à velocidade de um raio, amontoam-se dezenas de milhares de animais com sistemas imunológicos debilitados. Cientistas advertem sobre o perigo das granjas industriais: a contínua circulação de vírus nestes ambientes aumenta as oportunidades de aparição de novos vírus mais eficientes na transmissão entre humanos. A análise é de Mike Davis (Mike Davis é professor no departamento de História da Universidade da Califórnia (UCI), em Irvine, e um especialista nas relações entre urbanismo e meio ambiente). Tradução: Katarina Peixoto.
Fonte: Carta Maior


A gripe suína mexicana, uma quimera genética provavelmente concebido na lama fecal de um criadouro industrial, ameaça subitamente o mundo inteiro com uma febre. Os brotos na América do Norte revelam uma infecção que está viajando já em maior velocidade do que aquela que viajou a última cepa pandêmica oficial, a gripe de Hong Kong, em 1968.

Roubando o protagonismo de nosso último assassino oficial, o vírus H5N1, este vírus suíno representa uma ameaça de magnitude desconhecida. Parece menos letal que o SARS (Síndrome Respiratória Aguda, na sigla em inglês) em 2003, mas como gripe, poderia resultar mais duradoura que a SARS. Dado que as domesticadas gripes estacionais de tipo “A” matam nada menos do que um milhão de pessoas ao ano, mesmo um modesto incremento de virulência, poderia produzir uma carnificina equivalente a uma guerra importante.

Uma de suas primeiras vítimas foi a fé consoladora, predicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), na possibilidade de conter as pandemias com respostas imediatas das burocracias sanitárias e independentemente da qualidade da saúde pública local. Desde as primeiras mortes causadas pelo H5N1 em 1997, em Hong Kong, a OMS, com o apoio da maioria das administrações nacionais de saúde, promoveu uma estratégia centrada na identificação e isolamento de uma cepa pandêmica em seu raio local de eclosão, seguida de uma massiva administração de antivirais e, se disponíveis, vacinas para a população.

Uma legião de céticos criticou esse enfoque de contrainsurgência viral, assinalando que os micróbios podem agora voar ao redor do mundo – quase literalmente no caso da gripe aviária – muito mais rapidamente do que a OMS ou os funcionários locais podem reagir ao foco inicial. Esses especialistas observaram também o caráter primitivo, e às vezes inexistente, da vigilância da interface entre as enfermidades humanas e as animais. Mas o mito de uma intervenção audaciosa, preventiva (e barata) contra a gripe aviária resultou valiosíssimo para a causa dos países ricos que, como os Estados Unidos e a Inglaterra, preferem investir em suas próprias linhas Maginot biológicas, ao invés de incrementar drasticamente a ajuda às frentes epidêmicas avançadas de ultra mar. Tampouco teve preço esse mito para as grandes transnacionais farmacêuticas, envolvidas em uma guerra sem quartel com as exigências dos países em desenvolvimento empenhados em exigir a produção pública de antivirais genéricos fundamentais como o Tamiflu, patenteado pela Roche.

A versão da OMS e dos centros de controle de enfermidades, que já trabalha com a hipótese de uma pandemia, sem maior necessidade novos investimentos massivos em vigilância sanitária, infraestrutura científica e reguladora, saúde pública básica e acesso global a medicamentos vitais, será agora decisivamente posta a prova pela gripe suída e talvez averigüemos que pertence à mesma categoria de gestão de risco que os títulos e obrigações de Madoff. Não é tão difícil que fracasse o sistema de alertas levando em conta que ele simplesmente não existe. Nem sequer na América do Norte e na União Européia.

Não chega a ser surpreendente que o México careça tanto de capacidade como de vontade política para administrar enfermidades avícolas ou pecuárias, pois a situação só é um pouco melhor ao norte da fronteira, onde a vigilância se desfaz em um infeliz mosaico de jurisdições estatais e as grandes empresas pecuárias enfrentam as regras sanitárias com o mesmo desprezo com que tratam aos trabalhadores e aos animais.

Analogamente, uma década inteira de advertências dos cientistas fracassou em garantir transferências de sofisticadas tecnologias virais experimentais aos países situados nas rotas pandêmicas mais prováveis. O México conta com especialistas sanitários de reputação mundial, mas tem que enviar as amostras a um laboratório de Winnipeg para decifrar o genoma do vírus. Assim se perdeu toda uma semana.

Mas ninguém ficou menos alerta que as autoridades de controle de enfermidades em Atlanta. Segundo o Washington Post, o CDC (Centro de Controle de Doenças) só percebeu o problema seis dias depois de o México ter começado a impor medidas de urgência. Não há desculpas para justificar esse atraso. O paradoxal desta gripe suína é que, mesmo que totalmente inesperada, tenha sido prognosticada com grande precisão. Há seis anos, a revista Science publicou um artigo importante mostrando que “após anos de estabilidade, o vírus da gripe suína da América do Norte tinha dado um salto evolutivo vertiginoso”.

Desde sua identificação durante a Grande Depressão, o vírus H1N1 da gripe suína só havia experimentado uma ligeira mudança de seu genoma original. Em 1998, uma variedade muito patógena começou a dizimar porcas em uma granja da Carolina do Norte, e começaram a surgir novas e mais virulentas versões ano após ano, incluindo uma variante do H1N1 que continha os genes do H3N2 (causador da outra gripe de tipo A com capacidade de contágio entre humanos).

Os cientistas entrevistados pela Science mostravam-se preocupados com a possibilidade de que um desses híbridos pudesse se transformar em um vírus de gripe humana – acredita-se que as pandemias de 1957 e de 1968 foram causadas por uma mistura de genes aviários e humanos forjada no interior de organismos de porcos – e defendiam a criação urgente de um sistema oficial de vigilância para a gripe suína: advertência, cabe dizer, que encontrou ouvidos surdos em Washington, que achava mais importante então despejar bilhões de dólares no sumidouro das fantasias bioterroristas.

O que provocou tal aceleração na evolução da gripe suína: Há muito que os estudiosos dos vírus estão convencidos que o sistema de agricultura intensiva da China meridional é o principal vetor da mutação gripal: tanto da “deriva” estacional como do episódico intercâmbio genômico. Mas a industrialização empresarial da produção pecuária rompeu o monopólio natural da China na evolução da gripe. O setor pecuário transformou-se nas últimas décadas em algo que se parece mais com a indústria petroquímica do que com a feliz granja familiar pintada nos livros escolares.

Em 1965, por exemplo, havia nos Estados Unidos 53 milhões de porcos espalhados entre mais de um milhão de granjas. Hoje, 65 milhões de porcos concentram-se em 65 mil instalações. Isso significou passar das antiquadas pocilgas a gigantescos infernos fecais nos quais, entre esterco e sob um calor sufocante, prontos a intercambiar agentes patógenos à velocidade de um raio, amontoam-se dezenas de milhares de animais com sistemas imunológicos muito debilitados.

No ano passado, uma comissão convocada pelo Pew Research Center publicou um informe sobre a “produção animal em granjas industriais”, onde se destacava o agudo perigo de que “a contínua circulação de vírus (...) característica de enormes aviários ou rebanhos aumentasse as oportunidades de aparição de novos vírus mais eficientes na transmissão entre humanos”. A comissão alertou também que o uso promíscuo de antibióticos nas criações de suínos – mais barato que em ambientes humanos – estava propiciando o surgimento de infecções de estafilococos resistentes, enquanto que os resíduos dessas criações geravam cepas de escherichia coli e de pfiesteria (o protozoário que matou um bilhão de peixes nos estuários da Carolina do Norte e contagiou dezenas de pescadores).

Qualquer melhora na ecologia deste novo agente patógeno teria que enfrentar-se com o monstruoso poder dos grandes conglomerados empresariais avícolas e pecuários, como Smithfield Farms (suíno e gado) e Tyson (frangos). A comissão falou de uma obstrução sistemática de suas investigações por parte das grandes empresas, incluídas algumas nada recatadas ameaças de suprimir o financiamento de pesquisadores que cooperaram com a investigação.

Trata-se de uma indústria muito globalizada e com influências políticas. Assim como a gigante avícola Charoen Pokphand, sediada em Bangkok, foi capaz de desbaratar as investigações sobre seu papel na propagação da gripe aviária no sudeste asiático, o mais provável é que a epidemiologia forense do vírus da gripe suína bata de frente contra a pétrea muralha da indústria do porco.

Isso não quer dizer que nunca será encontrada uma acusadora pistola fumegante: já corre o rumor na imprensa mexicana de um epicentro da gripe situado em torno de uma gigantesca filial da Smithfield no estado de Vera Cruz. Mas o mais importante – sobretudo pela persistente ameaça do vírus H5N1 – é a floresta, não as árvores: a fracassada estratégia antipandêmica da OMS, a progressiva deterioração da saúde pública mundial, a mordaça aplicada pelas grandes transnacionais farmacêuticas a medicamentos vitais e a catástrofe planetária que é uma produção pecuária industrializada e ecologicamente bagunçada.


Silvia Ribeiro

Epidemia de lucro


Silvia Ribeiro é pesquisadora do Grupo ETC
Tradução e fonte: ADITAL


A epidemia de gripe suína que dia-a-dia ameaça expandir-se por mais regiões do mundo, não é um fenômeno isolado; é parte da crise generalizada e tem suas raízes no sistema de criação industrial de animais dominado pelas grandes empresas transnacionais.

No México, as grandes empresas de criação de aves e suínos têm proliferado amplamente nas águas (sujas) do Tratado de Livre Comércio da América do Norte. Um exemplo é Granja Carroll, em Veracruz, propriedade de Smithfield Foods, a maior empresa de criação de porcos e processamento de produtos suínos no mundo, com filiais nos EUA, na Europa e na China. Em sua sede de Perote começou há algumas semanas uma virulenta epidemia de enfermidades respiratórias que atingiu 60% da população de La Gloria, fato informado por La Jornada em várias oportunidades a partir das denúncias dos habitantes do lugar. Eles, há uns anos travam uma dura luta contra a contaminação causada pela empresa e têm sofrido, inclusive, repressão das autoridades por denunciar. Granjas Carroll declarou que não está relacionada e nem é a origem da atual epidêmica, alegando que a população tinha uma gripe "comum". Não foram feitas análises para saber exatamente de que vírus se tratava.

Em contraste, as conclusões do painel Pew Commission on Industrial Farm Animal Prodution (Comissão Pew sobre Produção Animal Industrial), publicadas em 2008, afirmam que as condições de criação e confinamento da produção industrial, sobretudo em suínos, criam um ambiente perfeito para a recombinação de vírus de distintas cepas. Inclusive, mencionam o perigo de recombinação da gripe aviária e da suína e como finalmente pode chegar a recombinar em vírus que afetem e sejam transmitidos entre humanos. Mencionam também que por muitas vias, incluindo a contaminação das águas, pode chegar a localidades longínquas, sem aparente contato direto. Um exemplo do que devemos aprender é o surgimento da gripe aviária. Ver , por exemplo, o relatório de GRAIN, que ilustra como a indústria avícola criou a gripe aviária (www.grain.org)

Porém, as respostas oficiais diante da crise atual, além de ser tardias (esperaram que os Estados Unidos anunciassem primeiro o surgimento do novo vírus, perdendo dias preciosos para combater a epidemia), parecem ignorar as causas reais e mais contundentes. Mais do que enviar cepas de vírus para sua sequenciamento genômico a cientistas, como Craig Venter, que enriqueceu com a privatização da investigação e seus resultados (sequenciamento que, com certeza, já foi feita por investigadores públicos do Centro de Prevenção de Enfermidades em Atlanta, EUA), o que se necessita é entender que esse fenômeno vai continuar repetindo-se enquanto existam os criadores dessas enfermidades.

Já na epidemia, são também transnacionais as que mais lucram: as empresas biotecnológicas e farmacêuticas que monopolizam as vacinas e os antivirais. O governo anunciou que tinham um milhão de doses de antígenos para atacar a nova cepa de influenza suína; porém, nunca informou a que custo.

Os únicos antivirais que ainda têm ação contra o novo vírus estão patenteados na maior parte do mundo e são de propriedade de duas grandes empresas farmacêuticas: o zanamivir, com nome comercial Relenza, comercializado por GlaxoSmithKline, e o oseltamivir, cuja marca comercial é Tamiflu, patenteado pela Gilead Sciencies, licenciado de forma exclusiva pela Roche. Glaxo e Roche são, respectivamente, a segunda e a quarta empresas farmacêuticas em escala mundial e, igualmente como no restante de seus remédios, as epidemias são suas melhores oportunidades de negócio.

Com a gripe aviária, todas elas lucraram centenas ou milhões de dólares. Com o anúncio da nova epidemia no México, as ações da Gilead subiram 3%, as da Roche 4% e as da Glaxo 6%; e isso é somente o começo.

Outra empresa que persegue esse lucrativo negócio é a Baxter, outra farmacêutica global (ocupa o 22 lugar), teve um "acidente" em sua fábrica na Áustria, em fevereiro de 2009. Enviou um produto contra a gripe a Alemanha, Eslovênia e a República Checa, contaminado com vírus da gripe aviária. Segundo a empresa. "foram erros humanos e problemas no processo", do qual não pode dar detalhes, "porque teria que revelar processos patenteados".

Não necessitamos enfrentar somente a epidemia da gripe; necessitamos enfrentar também a epidemia do lucro.

[Publicado em La Jornada, México.
Copyright © 1996-2009 DEMOS, Desarrollo de Medios, S.A. de C.V.]

sábado, 25 de abril de 2009

Delze dos Santos Laureano

Invasão ou ocupação de terras? Quem é o vilão nesta história


Delze é advogada, professora de Direito Agrário na Escola Superior Dom Hélder Câmara, em Belo Horizonte, MG; Integra a Rede Nacional dos Advogados Populares - RENAP
Fonte: Adital




Às vezes dá até preguiça de ficar explicando todo dia o óbvio. Mas, é recorrente o mesmo fato. Toda vez que noticiamos a ocupação de terras rurais ou urbanas por famílias empobrecidas, o senso comum fala mais alto. Usualmente vamos ouvir de muitos dos nossos interlocutores: "Não sou contra a distribuição de terra e casa para quem precisa, mas tem muito oportunista no meio desta gente que só quer tirar proveito e vender depois a terra que ganhou do governo!" Outras vezes ouvimos: "Não podemos admitir o uso da violência pelos sem-terra ou sem-teto. Por que eles não fazem como eu que trabalhei muito para ter a minha casa!" Podemos ouvir ainda: "O que sou contra é a invasão de terra que tem dono, a propriedade tem de ser respeitada. Precisamos de segurança jurídica!"

Desde já posso garantir que todas essas afirmações são falsas. Vemos que a falta de informação acaba levando as pessoas, mesmo trabalhadoras, a repetirem o discurso das elites, capitaneado pela mídia subserviente desses interesses. Para provar o que afirmo vou começar bem do começo. Primeiro, toda grande propriedade no Brasil é injusta. Desafio alguém que consiga me provar que qualquer latifúndio existente no Brasil tenha sido comprado com dinheiro ganho honestamente. Todas as grandes propriedades, rurais e urbanas, resultaram de vantagens obtidas junto ao poder do Estado, com a grilagem de terras ou é fruto de herança, algo que perpetua a desigualdade entre as pessoas. Podemos citar, por exemplo, as grandes áreas adquiridas durante o regime das sesmarias. Enquanto em Portugal o donatário tinha de prestar contas do que produzia na pequena extensão de terra que recebia, no Brasil a doação de terras virou motivo de escândalos.

Em 1850, já no Segundo Império, ao ser promulgada a primeira Lei de Terras - Lei 601/1850, a obrigação legal imposta a todos os donatários foi a de que medissem as suas terras e fizessem o registro nas Paróquias respectivas. Muitos donatários não o fizeram, portanto caíram em comisso, ou seja, as terras que possuíam, ou as que passaram a seus herdeiros, perderam a legitimidade inicial e são devolutas. São terras públicas pertencentes à União federal ou aos Estados membros, por força do que dispõe a Constituição de 1988 nos artigos 20, II, e 26, IV. Essas terras destinam-se prioritariamente à Política Agrícola e de Reforma Agrária. No Estado de Minas Gerais, a titulação das terras devolutas em nome do atual possuidor é limitada a 250 hectares na zona rural, e em 500 metros quadrados na zona urbana. Em nível federal o limite é de 100 hectares, conforme dispõe Lei 6383/76. Infelizmente, agora, o presidente Lula assinou a Medida Provisória 458/09, que permite a legalização/titulação das terras griladas na Amazônia. Os primeiros 1500 hectares podem ocorrer de forma gratuita, outros 1.500 hectares podem ser adquiridos por meio de licitação. Como vemos, ao invés de avanços, retrocede a legislação agrária no país, o que apenas torna mais injusta ainda a nossa Política Agrária.

Mas, vamos imaginar que o donatário, tendo recebido um imenso latifúndio tenha medido a terra e realizado o registro. Toda essa extensão de terra, desde a confirmação da sesmaria deveria estar cultivada ou aplicada a alguma atividade agrária e cumprindo a função social, simultaneamente nos aspectos econômicos, ambientais e sociais. Tudo conforme já previa o Estatuto da Terra em 1964 e agora nos moldes estipulados pelo Art. 186 da Constituição de 1988. Caso contrário, devem ser desapropriadas para fins de reforma agrária.

Não podemos nos esquecer que a maioria dos grandes proprietários ocultaram por muito tempo a real extensão de suas terras para não pagar o valor devido do ITR - Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural -, previsto na Constituição como um imposto progressivo, Art. 153, de modo a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas. Como a bancada ruralista existente no Congresso Nacional tem um peso muito grande nas decisões, não há efetivamente a valorização deste comando constitucional. O valor arrecadado com o ITR no país inteiro é insignificante. A reforma agrária, que deveria ser financiada com essa arrecadação, conforme a destinação prevista no Estatuto da Terra, continua sistematicamente adiada.

Os índices de produtividade utilizados pelo INCRA - Instituto Nacional de Reforma Agrária - para a avaliação do cumprimento da função social do imóvel rural, sob o aspecto econômico, são ainda os de 1975, permitindo a manutenção das atividades do agronegócio de baixa produtividade, inclusive da pecuária extensiva, que é a atividade agrária mais atrasada no Brasil. Some-se que os aspectos sociais, como a existência de trabalho escravo, a degradação do meio ambiente e os conflitos pela posse da terra são sistematicamente ignorados pelo Poder Judiciário ao julgar o aspecto do cumprimento da função social, restando somente o critério da produtividade.

É bom refrescar na memória também a doação de extensas áreas de terras rurais às empresas nas décadas de 1960 a 1980. O discurso dos militares assentava-se no desenvolvimentismo para contrapor à reforma agrária. Frases como "Exportar é o que importa!" e "Plante que o João garante!" justificaram as doações de terras para empresas. Essas se beneficiavam da renúncia fiscal para "desenvolver" o campo. Em 1988 o legislador constituinte entendeu necessário fazer uma revisão de todas essas doações. O dispositivo inscrito no Art. 51 da ADCT - Atos das Disposições Constitucionais Transitórias - nunca foi cumprido pelo Congresso Nacional, restando mais essa dívida moral para com a sociedade brasileira. Todos os estudos realizados dão conta de ter ocorrido desde essa época o maior êxodo rural do mundo, expulsando do meio rural mais de 40% da população brasileira em pouco mais de uma década. A propriedade da terra tornou-se ainda mais concentrada, enquanto uma massa de trabalhadores passou a disputar um posto de trabalho na cidade. Porém as oportunidades de emprego tornaram-se cada vez mais escassas, principalmente para a mão-de-obra excedente do campo, despreparada para o trabalho na indústria e nos serviços urbanos.

Não posso deixar de mencionar ainda as artimanhas utilizadas para a tão conhecida grilagem de terras. Como os antigos registros basearam-se nas medidas calculadas "no olho" por pessoas que tinham experiência nesse trabalho, por vezes havia pequenos ajustes a serem feitos, posteriormente, nos registros dos imóveis. Todavia, as retificações das áreas, na maioria das vezes, são indícios claros de legalização de terras solapadas dos antigos possuidores, normalmente pessoas pobres que foram constrangidas/violentadas para abandonarem suas terras por não possuírem o título de domínio. Muitas vezes são terras devolutas, que devido à inércia dos governos, desde 1850, nunca foram discriminadas, permanecendo na posse de grandes empreendedores, como são as empresas eucaliptadoras em Minas Gerais. Considerando que os cartórios são negócios privados no Brasil, portanto controlados pelos donos do poder, muitos documentos foram forjados e não resistem a um levantamento idôneo da cadeia dominial do imóvel.

Finalmente, cabe falar do problema dos imóveis urbanos. A especulação imobiliária urbana é conhecida de norte a sul, de leste a oeste do Brasil. Todos sabem que terra não tem um valor intrínseco, senão as obras e o trabalho realizados sobre a sua superfície ou o serviço que pode ser vendido em razão do seu direito de uso. Muitos proprietários urbanos ganham dinheiro beneficiando-se dos melhoramentos públicos realizados na região. Assim, detêm uma área de terra, não porque precisam ou porque efetivamente podem dar uma função social ao imóvel, mas esperando a sua valorização. Só que essa valorização ocorre em razão da aplicação dos recursos de toda a sociedade e que, portanto, deveriam ser revertidos em benefício de toda a sociedade. Mecanismo para isso existe na lei, como, por exemplo, a cobrança do IPTU progressivo, expressamente previsto na Constituição federal, ou a contribuição de melhoria em razão de obra que supervalorize o imóvel. Porém, como a propriedade é vista como direito absoluto, intocável, ela é sempre protegida pelos titulares do poder, ainda que contra a dignidade da pessoa humana. Basta ver a quantidade de pessoas que reivindicam um pedaço de chão para morar ou para trabalhar, enquanto são mantidos os privilégios de uma minoria proprietária que descumpre o preceito fundamento da função social do imóvel. Por tudo isso, só resta indagar: será que é defensável em um país com área de 850 milhões de hectares de terra existirem pessoas sem lugar para morar?

Juridicamente, o direito à propriedade é um direito real oponível erga omnes. Trocando em miúdos, é um direito que ocorre entre um sujeito, aquele que é o titular do domínio, em face de todos os outros integrantes daquela sociedade, que devem respeitar esse direito. Entretanto, para este sujeito dono é exigido o cumprimento da função social. Essa é a condição sine qua non para que todos os demais, não proprietários, respeitem o seu direito de propriedade. Descumprindo a função social, perde o proprietário o critério objetivo inerente à propriedade que é o direito de posse. Portanto, um imóvel que não cumpre a função social está vazio. Ninguém tem a sua posse, como consequência lógica não pode o Poder Judiciário, baseado somente no registro, dar as garantias da ação possessória. A propriedade, aspecto subjetivo, somente garante ao detentor do título de domínio, o direito à indenização, nos termos do Art. 5º, XXIV da Constituição. Portanto, errado falar que houve invasão do imóvel pelos atuais ocupantes. Quem é o invasor é aquele que se diz proprietário sem legitimidade.

Mesmo tendo dito o óbvio, acredito que valha a pena, de vez em quando, refrescar a memória dos mais desinformados acerca da legitimidade das ações dos que lutam de forma organizada pelo direito à moradia, pela reforma agrária, pelo direito de ter trabalho e renda. Todos os direitos sociais são tão protegidos pelas leis brasileiras quanto o direito à propriedade. Ressalvado apenas que o direito à propriedade sofre a restrição fundamental da exigência do cumprimento da função social, conforme explicado acima. Melhor pensar como os anarquistas: "Toda propriedade privada é um roubo!" Toda especulação imobiliária deve ser considerada um roubo e não merece proteção jurídica.

Para concluir, entendemos que os direitos individuais, como o direito de propriedade, que são os direitos de liberdade, só podem ser invocados se considerarmos na mesma medida o direito de igualdade. Nesta esteira é que proponho: antes de defendermos os direitos dos proprietários temos o dever de defender os direitos da maioria da população que vive condenada a uma desigualdade gritante. Um processo de exclusão mesmo, em um país tão rico como o Brasil. Se depender da boa vontade dos políticos de plantão nada será feito senão as migalhas assistencialistas. As mudanças estruturais só vão ocorrer com a luta do povo organizado.

Essa a nossa bandeira ao apoiar os movimentos sociais que contribuem na construção da via democrática popular no Brasil.

Belo Horizonte, 24/04/2009.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Frei Tito

As próprias pedras gritarão Frei Tito por ele mesmo

Relato da tortura de Frei Tito
Fonte: Frei Tito memorial on-line

Este é o depoimento de um preso político, frei Tito de Alencar Lima, 24 anos. Dominicano. (redigido por ele mesmo na prisão). Este depoimento escrito em fevereiro de 1970 saiu clandestinamente da prisão e foi publicado, entre outros, pelas revistas Look e Europeo.

Fui levado do presídio Tiradentes para a "Operação Bandeirantes", OB (Polícia do Exército), no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: "Você agora vai conhecer a sucursal do inferno". Algemaram minhas mãos, jogaram me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.

Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz auditor dr Nelson Guimarães. Soube posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob “garantias de integridade física”.

Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me "telefones" (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do "pau-de-arara". O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.

Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.

Na quinta-feira três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas. "Vai ter que falar senão só sai morto daqui", gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na "cadeira do dragão" (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao "pau-de-arara". Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse "antes de morrer". Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz.

"Nosso assunto agora é especial", disse o capitão Albernaz, ligou os fios em meus membros. "Quando venho para a OB - disse - deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede... Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo "não" que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber". Eram três militares na sala. Um deles gritou: "Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)". Quando respondi: "não sei" recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos.

Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte "metidos na subversão". Partiu para a ofensa moral: "Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?". Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido "a toque de caixa" e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo "tratamento". Disse que a "Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo". Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca "para receber a hóstia sagrada". Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.

Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma "explicação". Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O "interrogatório" reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo "corredor polonês". Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no "pau-de-arara". Mas o capitão Albernaz objetou: "não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis". "Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".

Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.

Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.

Na sexta-feira fui acordado por um policial. Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: "o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos". Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a "gillete" para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: "Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos". No meu quarto a OB deixou seis soldados de guarda.

No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: "A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo". Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.

Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era "uma estupidez" e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltaria à OB, o que prometeu.

De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OB que montavam guarda em meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.

É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.

A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo

"Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos" (2Cor, 8-9).

Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.

Frei Tito de Alencar Lima, OP
Fevereiro de 1970

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Zeca Baleiro

Maranhão, engenhosa mentira

Zeca Baleiro é cantor é compositor
Fonte: Revista IstoÉ, nº 2035, 1ºabr/2009


O Maranhão é um Estado do Meio Norte brasileiro, um preciosismo para nomear a região geograficamente multifacetada que é ponto de interseção entre o Nordeste e a Amazônia. Com área de 330 mil km2, pleno de riquezas naturais, tem fartas agricultura e pecuária, uma culinária rica e diversa e uma cultura popular exuberante. Não obstante tudo isso, pesquisa recente coloca o Estado como o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do País, atrás apenas de Alagoas.

Sou maranhense. Nasci em São Luís, capital do Estado, no ano de 1966, mesmo ano em que o emergente político José Sarney assumiu o governo estadual, sucedendo o reinado soberano do senador Vitorino Freire, tenente pernambucano que se tornou cacique político do Maranhão, a dominar a cena estadual por quase 40 anos. De 1966 até os dias de hoje, são outros 40 anos de domínio político no feudo do Maranhão, este urdido pelo senador eleito pelo Amapá José Sarney e seus correligionários, sucedâneos e súditos, que gerou um império cujo sólido (e sórdido) alicerce é o clientelismo político, sustentado pela cultura de funcionalismo público e currais eleitorais do interior, onde o analfabetismo é alarmante.

O senador José Sarney, recém-empossado presidente do Senado em um jogo de caras barganhas políticas, parecia ter saído da cena política regional para dar lugar a ares mais democráticos, depois de amargar a derrota da filha Roseana na última eleição ao governo do Estado para o pedetista Jackson Lago. Mas eis que volta, por meio de manobras politicamente engenhosas e juridicamente questionáveis, para não dizer suspeitas, orquestrando a cassação do governador eleito, sob a acusação de crime eleitoral, conduzindo a filha outra vez ao trono de seu império. Suprema ironia, uma vez que paira sobre seus triunfos políticos a eterna desconfiança de manipulações eleitoreiras (a propósito, entre os muitos significados da palavra maranhão no dicionário há este: "mentira engenhosa").

Em recente entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disparou frase cruel: "Não vamos transformar o Brasil num grande Maranhão." A frase, de efeito, aludia a uma provável política de troca de favores praticada pelo Planalto atualmente - segundo acusação do ex-presidente -, baseada em jogo de interesses regionais tacanhos e tráfico de influências. Como alguém nascido no Maranhão, e que torce para que o Estado alcance um lugar digno na história do País (potencial para isso não lhe falta, afinal!), lamento o comentário de FHC, mas entendo a sua ironia, pois o Maranhão tornou-se, infelizmente, ao longo dos tempos, um emblema do que de pior existe na política brasileira. Não é de admirar que divida o ranking dos "piores" com Alagoas, outro Estado dominado por conhecidas dinastias familiares.

Em seus tempos de apogeu literário, São Luís, a capital do Maranhão, tornou-se conhecida como a "Atenas brasileira". Mais recentemente, pela reputação de cidade amante do reggae, ganhou a alcunha de "Jamaica brasileira". Não me espantará que num futuro próximo o Maranhão venha a ser chamado de "Uganda brasileira" ou "Haiti brasileiro". A semelhança com o quadro de absoluta miséria social a que dois célebres ditadores levaram estes países - além do apaixonado apego ao poder, claro - talvez justificasse os epítetos.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Frei Betto

Novo modelo de sociedade

Fonte: ADITAL


Ao participar do Fórum Econômico Mundial para a América Latina, a 15 de abril, no Rio, indaguei: diante da atual crise financeira, trata-se de salvar o capitalismo ou a humanidade? A resposta é aparentemente óbvia. Por que o advérbio de modo? Por uma simples razão: não são poucos os que acreditam que fora do capitalismo a humanidade não tem futuro. Mas teve passado? Em cerca de 200 anos de predominância do capitalismo, o balanço é excelente se considerarmos a qualidade de vida de 20% da população mundial que vivem nos países ricos do hemisfério Norte. E os restantes 80%? Excelente também para bancos e grandes empresas. Porém, como explicar, à luz dos princípios éticos e humanitários mais elementares, estes dados da ONU e da FAO: de 6,5 bilhões de pessoas que habitam hoje o planeta, cerca de 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, dos quais 1,3 bilhão abaixo da linha da miséria. E 950 milhões sofrem desnutrição crônica.

Se queremos tirar algum proveito da atual crise financeira, devemos pensar como mudar o rumo da história, e não apenas como salvar empresas, bancos e países insolventes. Devemos ir à raiz dos problemas e avançar o mais rapidamente possível na construção de uma sociedade baseada na satisfação das necessidades sociais, de respeito aos direitos da natureza e de participação popular num contexto de liberdades políticas.

O desafio consiste em construir um novo modelo econômico e social que coloque as finanças a serviço de um novo sistema democrático, fundado na satisfação de todos os direitos humanos: o trabalho decente, a soberania alimentar, o respeito ao meio ambiente, a diversidade cultural, a economia social e solidária, e um novo conceito de riqueza.

A atual crise financeira é sistêmica, de civilização, a exigir novos paradigmas. Se o período medieval teve como paradigma a fé; o moderno, a razão; o pós-moderno não pode cometer o equívoco de erigir o mercado em paradigma. Estamos todos em meio a uma crise que não é apenas financeira, é também alimentar, ambiental, energética, migratória, social e política. Trata-se de uma crise profunda, que põe em xeque a forma de produzir, comercializar e consumir. O modo de ser humano. Uma crise de valores.

Desacelerada a ciranda financeira, inútil os governos tentarem converter o dinheiro do contribuinte em boia de salvação de conglomerados privados insolventes. A crise exige que se encontre uma saída capaz de superar o sistema econômico que agrava a desigualdade social, favorece a xenofobia e o racismo, criminaliza os movimentos sociais e gera violência. Sistema que se empenha em priorizar a apropriação privada dos lucros acima dos direitos humanos universais; a propriedade particular acima do bem comum; e insiste em reduzir as pessoas à condição de consumistas, e não em promovê-las à dignidade de cidadãos.

Há que transformar a ONU, reformada e democratizada, no fórum idôneo para articular as respostas e soluções à atual crise. Urge implementar mecanismos internacionais de controle do movimento de capitais; de regular o livre comércio; de pôr fim à supremacia do dólar e aos paraísos fiscais; e assegurar a estabilidade financeira em âmbito mundial.

Não haveremos de encontrar saída se não nos dermos conta de que novos valores devem ser rigorosamente assumidos, como tornar moralmente inaceitável a pobreza absoluta, em especial na forma de fome e desnutrição. É preciso construir uma cultura política de partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano, e passar da globocolonização à globalização da solidariedade.

As Metas do Milênio e, em especial, os sete objetivos básicos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, de 1995, devem servir de base a um pacto para uma nova civilização: 1) Escolaridade primária universal;
2) Redução imediata do analfabetismo de adultos em 50%;
3) Atenção primária de saúde para todos;
4) Eliminação da desnutrição grave e redução da moderada em 50%;
5) Serviços de planificação familiar;
6) Água apta para o consumo ao alcance de todos;
7) Créditos a juros baixos para empresas sociais.

A experiência histórica demonstra que a efetivação dessas metas exige transformações estruturais profundas no modelo de sociedade que predomina hoje, de modo a reduzir significativamente as profundas assimetrias entre nações e desigualdades entre pessoas.

sábado, 18 de abril de 2009

José Saramago

Mania das grandezas

Fonte: O Caderno de Saramago

A coisa é séria, demasiado séria. Soube há poucos dias que Portugal tem auto-estradas em excesso, nada menos que nove, num total de quase setecentos quilómetros. Se pensarmos em quanto custa a construção de um só quilómetro dessas sumptuosas vias de comunicação rodoviária em que o utente goza praticamente de todas as comodidades da vida doméstica, é inevitável concluir que alguém se enganou nas contas ou com elas nos enganou. Segundo a lei, ou o que para o caso lhe faz as vezes, a abertura de uma auto-estrada requer uma certa previsibilidade de tráfego para não cairmos na velha piada do “lá vem um”, como sucede, por exemplo, à que leva (não a piada, mas a estrada) de Lisboa a Elvas, saudosa dos tempos em que, com um modesto estatuto de nacional, transportava multidões à Pousada para comerem o bacalhau à Brás. Mutatis mutandis, com bacalhau ou sem ele, esta é a situação nas oito auto-estradas restantes.

A tineta vem de longe. Quando informaram o rei D. João V do preço do carrilhão que iria ser instalado em Mafra, ele não se conteve e, com a sua ridícula prosápia de nouveau-riche, disse: “Acho barato. Comprem dois”. E, não há muitos anos, quando Portugal foi encarregado de organizar o campeonato europeu de futebol, que logo desgraçadamente não ganhou, alguém terá dito que precisaríamos de construir uns quantos estádios porque estávamos muito em baixo de instalações desportivas. Imagino o diálogo: “Quantos?”, perguntou o manda-chuva da modalidade, “Aí uns três ou quatro devem bastar”, respondeu o técnico, “Quais três? Quais quatro?” indignou-se o figurão, “Dez, doze é que hão-de ser, seríamos uns bons idiotas se não aproveitássemos os fundos europeus até lhe vermos o fundo ao saco”. Também neste caso alguém se enganou nas contas ou com elas nos enganou.

Onde as contas parece que batem certo é no número de pobres em Portugal. São dois milhões, segundo as últimas informações. Quer dizer, uma expressão mais da nossa histórica mania das grandezas…

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Paloma Oliveto

Cisternas modificam semiárido

Do solo rachado de tanta aridez, brotaram frutas, legumes, verduras. Artigo raro no sertão nordestino, a água começou a chegar às casas, sem necessidade de se percorrer quilômetros atrás de um açude cheio. Famílias que passavam fome e sede agora não precisam abandonar suas roças inférteis. Plantam, criam animais, geram renda. Para isso, uma solução simples, barata e eficiente: a construção de cisternas, que beneficiam mais de 1 milhão de sertanejos de 1.021 municípios do semiárido. A reportagem é de Paloma Oliveto, da equipe do Correio Braziliense, 16/04/2009 e reproduzida pelo EcoDebate, 17-04-2009.
Fonte: UNISINOS

O programa da rede Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), da sociedade civil, tem o apoio de organismos internacionais, empresas e dos ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e da Agricultura. A experiência deu tão certo que saiu do Nordeste e foi parar num encontro internacional sobre tecnologias sociais, que termina amanhã em Brasília e conta com a participação de Estados Unidos, Canadá, Argentina, Espanha e México.

Criado em julho de 2003, o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC) já possibilitou a construção de 252.575 reservatórios que armazenam água da chuva. Com custo de R$ 1,7 mil, cada cisterna tem capacidade de 16 mil litros, suficiente para abastecer uma família de cinco pessoas por até oito meses. “A cisterna mudou minha vida para melhor. Antes era muito difícil, tinha que carregar água de muito longe, e a água não era boa. Tinha momentos de ter a comida, mas não ter a água para fazer a comida. Hoje, graças a Deus, minha cisterna está cheinha”, conta Maria Emília Nobre da Silva, moradora de Pesqueira, em Pernambuco.

O resultado, constatado pelo Centro de Pesquisa Tecnológica do Semiárido, é que as famílias têm mais tempo para cuidar de suas casas e roças. Um estudo do CPTSA mostrou que pessoas sem cisterna chegam a caminhar 36 dias por ano atrás de água - o equivalente a mais de um mês de trabalho. Somente em Pajeú, no interior pernambucano, os homens gastam em média uma hora por dia atrás dos açudes, segundo a organização não governamental Diaconia, que atua na região.

“Mas para garantir a soberania alimentar das famílias, são necessárias duas águas: a de beber e a de comer”, diz José Aldo dos Santos, coordenador da ASA. Água de comer, explica, é aquela que permite aos pequenos agricultores plantar e criar animais. Para isso foi preciso desenvolver uma nova estratégia, batizada de Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Uma Terra e Duas Águas (P1 + 2). Uma cisterna adaptada, chamada calçadão, é capaz de armazenar 52 mil litros de água. “O custo é de R$ 4 mil, e pode ser considerado pequeno em relação aos resultados”, diz Santos. Ele faz questão de ressaltar que a tecnologia, que consiste em uma área pavimentada de captação de chuvas e num reservatório, foi invenção de um agricultor. “Não saiu da cabeça de um acadêmico”, diz, orgulhoso.

Procura

Com a garantia da água, famílias como a da dona de casa Maria Valnice da Silva de Oliveira, de Santana do Acaraú, no Ceará, não precisam mais deixar o semiárido para procurar melhores condições de vida longe do sertão. Hoje, além da criação de animais - principalmente do bode, cuja carne é vendida para vários estados -, elas cultivam milho, feijão, algodão, hortaliças, caju, goiaba, limão e banana. Frutas como seriguela também fazem parte da produção e são transformadas em compotas.

Entrevista - Noam Chomsky

Nacionalizações são um passo para a democratização

Em entrevista à The Real News Network, Noam Chomsky defende as nacionalizações nos Estados Unidos e que as empresas nacionalizadas sejam administradas democraticamente. Tradução de Luis Leiria/Esquerda.Net.
Fonte: Agência Carta Maior




Paul Jay: Benvindo à The Real News Network. Estamos no MIT, em Cambridge, com o professor Noam Chomsky, que julgo não precisar de apresentação. Muito obrigado por aceitar estar conosco. Há uns dias, a administração Obama e Geithner anunciaram o seu plano para os bancos. Qual é a sua opinião sobre ele?

Chomsky: Bem, na verdade há vários planos. Um é a capitalização. O outro, o mais recente, é o resgate dos ativos tóxicos através de uma união pública-privada. Essa medida fez subir imediatamente a bolsa de valores. E compreende-se porquê: é extremamente boa para os banqueiros e investidores. Significa que um investidor pode, se quiser, comprar estes ativos sem valor. E se por acaso eles subirem, ótimo, ganha dinheiro; se caírem, o governo garante-os. Assim, pode haver uma pequena perda, mas também pode haver um grande ganho. Um gestor financeiro disse esta manhã no Financial Times que "é uma situação de ganhar-ganhar."

Uma situação de ganhar ou ganhar, se for investidor.

Chomsky: Sim, se for investidor. Para o público, é uma situação de perder-perder. Este plano é uma reciclagem das medidas de Bush-Paulson, com pequenas alterações, mas essencialmente a mesma idéia: manter igual a estrutura institucional, tentar iludir a gravidade da situação, subornar os banqueiros e investidores, mas evitar as medidas que podiam ir ao cerne do problema, impondo mudanças da estrutura institucional.

Que plano o senhor apoiaria?

Chomsky: Por exemplo, veja a questão dos bônus da AIG que estão causando tanto justo repúdio. Dean Baker mostrou que havia uma forma fácil de tratar da questão. Já que o governo, de qualquer forma, é o dono da AIG (só não usa esse poder para tomar decisões), podia separar a seção de investimentos financeiros, que causou todos os problemas, e deixá-la ir à falência. Depois disto, os executivos podem procurar obter os seus bônus de uma empresa falida, se quiserem. Isso resolveria muito bem o problema da falência, e o governo manteria ainda o seu controlo efetivo em larga-escala, se quisesse exercê-lo sobre a parte viável da AIG.

E com os grandes bancos, como o Bank of America, um dos maiores problemas é que ninguém sabe o que se passa lá dentro. São aparelhos muito opacos e que fazem muitas manipulações - não são eles que vão falar. Por que o fariam? De fato, quando a Associated Press enviou jornalistas para entrevistar os gestores do banco e lhes perguntaram o que fizeram com o dinheiro do TARP (programa governamental de recuperação de ativos problemáticos), eles simplesmente riram-se. Disseram: "Não têm nada com isso. Somos empresas privadas. A vossa tarefa, a do serviço público, é de dar-nos fundos, mas não de saber o que estamos fazendo." Mas o governo podia descobrir facilmente - nomeadamente, assumindo o controle dos bancos.

Todas estas maquinações políticas são para evitar a nacionalização?

Chomsky: Não é preciso usar a palavra "nacionalização" se ela incomoda as pessoas, mas alguma forma que permitisse que investigadores independentes, investigadores do governo tivessem acesso aos livros e descobrissem o que eles estão fazendo, quem deve o quê a quem, que é a base de qualquer forma de mudança. Não há uma lei da natureza que diga que as empresas têm apenas de se dedicar a dar lucro aos seus acionistas. Nem sequer está na lei. Na sua maioria são decisões de tribunais e decisões de gestão e por aí adiante. É perfeitamente concebível que as empresas, se existem, sejam responsáveis diante dos acionistas, da comunidade, dos seus trabalhadores.

Especialmente quando é o dinheiro público que está fazendo o sistema funcionar...

Chomsky: Veja, o fato é que é quase sempre dinheiro público. Veja o homem mais rico do mundo, Bill Gates. Como é que ele se tornou o mais rico? Muito do que ganhou veio de dinheiro público. De fato, lugares como este onde estamos agora...

O MIT...

Chomsky: É onde foram desenvolvidos os computadores, a Internet, software sofisticado, aqui ou em lugares semelhantes, e quase inteiramente financiados por dinheiro público. No essencial, o sistema funciona assim: o público paga os custos e assume os riscos, e os lucros são privatizados.

Que é o que está acontecendo com todos os planos de resgate.

Chomsky: Bem, fala-se muito disso agora porque são as instituições financeiras e é tudo muito visível, mas isto acontece o tempo todo. Quer dizer: computadores e Internet foram a base para a revolução das tecnologias de informação no final dos anos 90.

Quando fala em "desafiar a estrutura institucional" o que gostaria que acontecesse?

Chomsky: Para começar, empresas, bancos e outros deveriam, penso, ser responsáveis diante de todos os interessados, não só dos acionistas. Não é uma grande mudança. De fato, já foi até levado aos tribunais. Há cerca de 30 anos, as maiores empresas siderúrgicas queriam destruir as fábricas de aço de Youngstown - o núcleo central da comunidade fora construído em torno delas - e os trabalhadores e a comunidade queriam mantê-las e achavam que podiam geri-las privadamente. Levaram o caso aos tribunais, argumentando que as regras de gestão tinham de ser mudadas de forma a que todos os interessados e não só os acionistas tivessem o controle da empresa. Bem, perdeu nos tribunais, naturalmente, mas é uma idéia perfeitamente factível. Podia ser uma maneira de manter viva a comunidade e as indústrias.

Assim, se olhar agora para o sistema financeiro e aplicar esse princípio, de representar os interesses gerais, e não só os dos acionistas, o que significaria isso em termos de política?

Chomsky: Antes de mais nada, para começar, significaria que o governo não resgataria os bancos, aplicaria capital mas exerceria o controle. E controle começa com a fiscalização. Assim, descobrimos o que eles estão fazendo. Em seguida, mantemos as partes viáveis. E se são viáveis deveriam ser postas sob controle público. O governo poderia ter comprado a AIG ou o Citigroup por muito menos do que está gastando agora. Numa sociedade democrática, o governo deveria seguir os interesses do povo, e haver um compromisso público direto no que estas instituições devem fazer e como elas devem distribuir o seu dinheiro, em que termos, etc. Podiam ser democraticamente geridas pelos seus trabalhadores, pela comunidade.

Mas, use-se ou não a palavra, isso não requer uma espécie de nacionalização? O banco não se torna uma instituição de propriedade pública?

Chomsky: Tornam-se instituições de propriedade pública que servem o público e cujas decisões são tomadas pelo público. É uma via longa. É preciso aproximar-se dela passo a passo. Quando se pensa em nacionalização, o sistema doutrinal, por razões históricas, associa nacionalização a uma espécie de Big Brother que toma o controle e dá ordens ao público. Mas não tem de ser necessariamente assim. Há muitas instituições nacionalizadas que funcionam de forma bastante eficiente. De fato, veja, digamos, o exemplo do Chile, que é suposto ser a imagem de marca das economias de livre-mercado Thatcheristas/Reaganistas. Uma grande parte da economia é baseada na muito eficiente produtora de cobre, a Codelco, que foi nacionalizada por Allende, mas era tão eficiente que durante os anos de Pinochet nunca foi desmantelada.

Na verdade, está de certa forma sendo enfraquecida mas penso que ainda é a maior produtora de cobre do mundo, recolhe a maior parte dos ganhos do Estado. Noutros lugares também há empresas nacionalizadas com muito sucesso. Mas a nacionalização é só um passo em direção à democratização. A questão é quem as gere, quem toma as decisões, quem as controla. Agora, nas instituições nacionalizadas, as decisões ainda são tomadas de cima para baixo, mas não tem de ser assim. Não há uma lei da natureza que diga que não podem ser administradas democraticamente.

Como seria feito?

Chomsky: Com a participação de conselhos de trabalhadores, da organização da comunidade em reuniões, discussões nas quais são delineadas as políticas - é assim que, supostamente, funciona a democracia. Claro que ainda estamos muito longe disso, mesmo no sistema político. Veja o exemplo das eleições primárias. Da forma como funciona o nosso sistema, os chefes de campanha dos candidatos vão a alguma cidade de New Hampshire e fazem uma reunião, e o candidato vai e diz: "Vejam como sou um cara simpático. Votem em mim. E as pessoas ou acreditam nele ou não, e vão para casa. Imagine que tínhamos um sistema democrático que funcionava ao contrário. O povo da cidade de New Hampshire se reuniria em conferências, reuniões, organizações públicas, etc., e delinearia as políticas que queriam ver aplicadas. Depois, se alguém se candidatava, podia ir lá; se quiserem, podem convidá-lo e ele iria ouvi-los. Eles diriam: olhe, eis as políticas que queremos que implemente; se pode fazê-lo, vamos aceitar que nos represente, mas vamos destituí-lo se não o fizer.

Como disse, isso está muito longe em termos da política de hoje.

Chomsky: Não está tão longe, acontece.

Mas em nível nacional...

Chomsky: Nesse nível está mais distante. Mas vejamos aquele que é provavelmente o mais democrático país do hemisfério ocidental, apesar de as pessoas não gostarem de pensar dessa forma: a Bolívia. É o país mais pobre do hemisfério. É o mais pobre da América do Sul. Houve eleições nos últimos anos nas quais a grande maioria da população, que é o povo mais reprimido do hemisfério, a população indígena, entrou pela primeira vez em 500 anos na arena política, determinou as políticas que quis, e elegeu um líder das suas próprias fileiras, um camponês pobre. E as questões são muito sérias - o controle sobre os recursos, a justiça econômica, os direitos culturais, as complexidades de um sociedade multiétnica muito diversa. As políticas vêm do próprio povo, e é suposto que o presidente as implemente. Há todo o tipo de problemas, nada funciona tão perfeitamente, mas é a democracia a funcionar. É quase o oposto da forma como funciona o nosso sistema.

Voltando aos EUA, pensa que os atuais planos para o setor financeiro, o setor automobilístico, o plano de estímulo geral vão funcionar? E se não, para onde estamos caminhando em termos de intensidade de crise? E o que significa em termos de democracia americana?

Chomsky: Não creio que alguém saiba se vão funcionar. É uma espécie de tiro no escuro. O meu palpite é que não vai ser a Grande Depressão, mas pode haver anos difíceis pela frente e muitos remendos se as atuais políticas forem aplicadas. O núcleo central das atuais políticas é manter a atual estrutura estável, decisões tomadas de cima.

E pôr dinheiro para os planos de resgate.

Chomsky: Pode entrar com o dinheiro para os planos de resgate, mas sem fazer parte do aparelho de decisão. É certo que vai haver alguma forma de regulação. A mania de desregulação dos últimos 30 anos, baseada em conceitos religiosos realmente fundamentalistas sobre a eficiência dos mercados em grande parte desapareceu, e muito rapidamente. Veja por exemplo Lawrence Summers, que é hoje praticamente o principal conselheiro econômico de Obama, conseguiu reconstruir o sistema regulatório que ele destruiu há poucos anos. Ele foi um dos principais a impedir o Congresso a regulamentar os derivados e outros instrumentos exóticos, sob a influência destas idéias sobre eficiência dos mercados e escolha racional, etc. Essas idéias estão agora muito abaladas, e parte do aparelho regulatório vai ser reconstruído. Mas a história disto é muito clara e fácil de entender: os sistemas de regulação tendem a ser tomados pelas empresas que deveriam regulamentar. Foi o que aconteceu com as ferrovias e outros casos. E é natural. Elas têm o poder, poder concentrado, capital concentrado, influência política enorme - de certa forma regem o governo. Acaba que eles assumem o controle do aparelho regulatório no seu próprio interesse. Assim, por exemplo durante o que muitos economistas chamam a época de ouro do moderno capitalismo de estado, entre os 50 e meados de 70, não havia grandes crises. Havia um sistema regulatório, havia regulação dos fluxos de capitais, taxas de câmbio, etc., o que levou ao maior crescimento em época de paz da história. Mudou em meados dos 70, quando a economia foi em direção à desregulamentação e financeirização, enorme crescimento dos fluxos de capital especulativo, mitologias sobre a eficiência dos mercados. Houve, é claro, crescimento, mas concentrado em poucos bolsos, e estamos há 30 anos em relativa estagnação de salários reais para a maioria da população.

E como é que isso muda?

Chomsky: Há um pequeno aspecto distributivo na política fiscal, chamam-lhe socialismo, comunismo, etc., mas mal regressa aonde estava há poucos anos. Por outro lado, a melhor maneira de chegar a um sistema mais igualitário seria, simplesmente, ampliar a sindicalização. Os sindicatos tradicionalmente não só melhoraram as vidas e os benefícios e as condições de trabalho e os salários dos trabalhadores, mas também ajudaram a democratizar a sociedade. Os sindicatos são um dos poucos meios que permitem ao povo comum reunir-se, fazer planos e influenciar as escolhas públicas. Houve um grande exemplo disto há umas semanas. O presidente Obama queria demonstrar a sua solidariedade ao povo trabalhador; foi a Illinois e falou numa fábrica. A escolha foi marcante; escolheu a Caterpillar. Teve de se contrapor às objeções da igreja e dos grupos de direitos humanos, devido ao efeito devastador que as máquinas da Caterpillar estão tendo nos territórios ocupados por Israel, onde estão destruindo terra agrícola, estradas e aldeias. Mas ninguém, que eu saiba, noticiou algo ainda mais dramático. A Caterpillar tem um papel na história do trabalho nos EUA. Foi a primeira fábrica, em gerações, a usar fura-greves para destruir uma greve. Foi, se não me engano, em 1988, como parte dos ataques de Reagan aos trabalhadores, mas foi a primeira instalação industrial a fazê-lo. Isso é um fato grande, importante. Nessa altura, os Estados Unidos eram os únicos, junto com a África do Sul, a permitir uma coisa dessas. E isso destrói na essências o direito de associação do povo trabalhador.

O Employee Free Choice Act (lei de livre-escolha do empregado) supostamente é algo que facilita a sindicalização, mas não ouvimos muito falar dela desde as eleições.

Chomsky: Não ouvimos falar muito dela. Não ouvimos quando Obama foi à fábrica, que é o símbolo de destruição do trabalho por práticas injustas, porque isto foi tirado da memória das pessoas. O Employee Free Choice Act é sempre mal interpretado. É descrito como um esforço para evitar eleições secretas. Não é isso. É um esforço para permitir que os trabalhadores decidam se deve haver eleições secretas, em vez de deixar as decisões inteiramente nas mãos dos empregadores. Durante a campanha, Obama falou nisso, mas rapidamente o tema foi deixado de lado. Mas um passo muito maior para superar a redistribuição radical para os mais ricos, que ocorreu nos últimos 30 anos, seria simplesmente facilitar os esforços de sindicalização. Mas cada presidente desde Reagan atacou isto. Reagan disse diretamente: "não vamos aplicar a lei". Assim, a demissão de trabalhadores - demissão legal - por organizar os trabalhadores triplicou, de acordo com a Business Week, durante os anos Reagan. Quando chegou Clinton, havia basicamente um dispositivo diferente. Chamava-se Nafta. O Nafta oferecia aos empregadores uma maravilhosa forma de impedir a organização dos trabalhadores: bastava pôr um grande cartaz a dizer: "Operação de transferência para o México". É ilegal, mas se o governo é fora da lei, pode ter sucesso nisto. E nem vale a pena falar dos anos Bush. Mas pode-se reverter isto, e isso seria um passo significativo não só para reverter a enorme redistribuição de rendimento para os de cima, mas também para redemocratizar a sociedade, fornecendo mecanismos pelos quais o povo possa atuar politicamente no seu próprio interesse. Mas isso mal está sendo discutido, até agora, nas margens. E coisas como, por exemplo, o controle dos interessados sobre as instituições, trabalhadores e comunidade, não está muito abaixo da superfície no espírito das pessoas. Está sendo empurrado para o lado. Mas se olharmos para trás, para os anos 30, quando questões semelhantes - não as mesmas, mas questões bastante parecidas estavam sendo levantadas, o que realmente causou medo nos corações do mundo dos negócios foram as greves de ocupação (sit-in strikes). Foi quando os empresários começaram a falar sobre o risco de que enfrentavam e sobre o poder das massas.

Mas o que tem de ameaçador uma greve de ocupação? Bem, uma greve de ocupação está apenas a cinco segundos de fazer emergir a idéia: "Por que nós devemos sentar aqui? Por que não dirigir a fábrica? Podemos fazê-lo, melhor que os gerentes, porque sabemos como tudo funciona". Isso assusta. E está começando a acontecer. Há um mês, houve uma greve de ocupação numa fábrica de Chicago, a Republic Windows and Floors. A multinacional proprietária queria fechá-la ou transferi-la para outro lado. E os trabalhadores manifestaram-se e protestaram, mas finalmente fizeram uma greve de ocupação. Bem, tiveram uma meia-vitória; não venceram totalmente. Muitos mantiveram os empregos. Uma outra empresa comprou-a. Mas não deram o passo seguinte, que era: "Bem, por que não dirigimos a fábrica, junto com a comunidade, que se importa com a fábrica, e talvez uma comunidade mais ampla, que também se importa, no público em geral?" Essas eram questões que deviam ser discutidas.


quarta-feira, 15 de abril de 2009

Marco Politi

Os primeiros meses de 2009 colocaram uma crise em plena luz. A do pontificado de Bento XVI. Ainda não se pode medir suas consequências, mas as pesquisas realizadas na França sobre as eventuais "demissões" do Papa são incontestavelmente o sinal de uma dessacralização em curso da função papal, e isso em uma medida jamais conhecida pelos seus antecessores, desde Leão XIII no século XIX até João Paulo II. A análise é de Marco Politi, publicada no jornal Le Monde, 11-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS

Tanto no interior da Cúria romana quanto em seu exterior, interroga-se para se saber se um intelectual como Joseph Ratzinger tem o temperamento de um homem de Estado. Mas é mais no sistema de pensamento do atual Papa que é preciso buscar as raízes desse impasse. Dado que, depois de tudo, não há diferença de linha entre ele e João Paulo II sobre o aborto, contracepção, casamento, biogenética, homossexualidade.

O que se reforçou com Bento XVI foi o caráter doutrinário do papado. Recebendo, em março de 2006, os parlamentares do Partido Popular Europeu (PPE), o Papa os enviou à defesa ativa de "princípios não negociáveis", princípios "inscritos na própria natureza humana e consequentemente comuns a toda a humanidade". Que se trate do não aos contraceptivos e ao preservativo, da rejeição à legalização do aborto, do veto imposto aos casais homossexuais ou da proibição da pesquisa com células-tronco, Bento XVI está convicto de que as leis que regem a socieade contemporânea devem ser subordinadas à lei natural que só a Igreja representa. "Nenhuma lei feita pelos homens pode subverter a norma escrita pelo Criador", ele adora repetir.

No plano teórico, o Papa destaca muitas vezes que a Igreja não pretende ser protagonista da vida pública, que a ação política é de competência dos católicos enquanto cidadãos e é exercida sob a sua total responsabilidade. Mas o que fica dessa autonomia quando a própria autoridade eclesiástica determina os princípios supremos dessa lei natural que deve valer para a humanidade inteira?

Até a razão acaba sendo submetida ao poder espiritual. "A fé cristã, defende o Papa, purifica a razão e a ajuda a ser mais consciente de si mesma". Até a laicidade é medida segundo os critérios do Papa. Uma laicidade "sadia", explica o soberano pontífice, é a de um Estado que, na sua legislação, dá espaço a uma dimensão particular: a Transcendência. De todas essas intervenções, deriva a imagem de um papado que sustenta todos os cetros ao mesmo tempo. O cetro da fé, o cetro da razão, o cetro da natureza. A consequência política: um enfoque neoteocrático – que, porém, Bento XVI, enquanto filósofo, recusaria.

Essa abordagem acaba por diminuir o porte da grande pergunta que Bento XVI – o teólogo – colocou aos cristãos no começo do terceiro milênio: qual lugar para Deus na sociedade ocidental contemporânea? Porque, apesar do revival religioso das últimas duas décadas, o processo de secularização é irreversível.

Os ocidentais não dão mais o ritmo da sua existência em função de um calendário divino. Deus não está morto, mas – para quem crê – precisa ser reatualizado por cada geração por meio de novas formas de testemunho. Certas pessoas que conhecem bem o modo de pensar de Bento XVI defendem que o seu pontificado se articula em torno de um conceito: "Defender a integridade da fé e mostrar que o cristianismo é alegria". Conduzir a bom fim essa missão é uma tarefa de grande exigência.

O cardeal Ratzinger tinha dito, dialogando com o filósofo alemão Jürgen Habermas, em München (Alemanha), em 2004, que a sociedade moderna deveria inverter a frase do filósofo holandês Hugo Grotius (1583-1645), segundo a qual era preciso agir "etsi Deus non daretur" ("como se Deus não existisse"). Isso podia valer, defendia Ratzinger, em tempos em que os europeus, incluídos os livre-pensadores, viviam com base em um patrimônio de ideias alimentado pela cultura cristã. Na atual desagregação dos valores, afirmava Bento XVI, o objetivo deveria ser viver "veluti Deus daretur" ("como se Deus existisse").

A máxima contém a sedução de uma fina provocação filosófica e, portanto, aplicada à sociedade pluralista européia, leva fatalmente a um vínculo cego. A qual divindade pede-se que se faça referência? Ao Deus cristão na sua acepção protestante ou católica, ortodoxa ou neoevangélica? Ao Deus dos judeus? Dos muçulmanos? Ao não-Deus do budismo? E como um agnóstico poderia ser obrigado a reconhecer uma Transcendência na qual não acredita?

É surpreendente constatar até que ponto a linha seguida por Bento XVI atinge as reflexões do grande poeta romântico Novalis (1772-1801), seu compatriota. Depois das mudanças radicais que acompanharam a Revolução Francesa, Novalis considerou que era essencial agarrar-se aos sólidos ramos representados pela Igreja católica. O poeta temia a difusão, nos anos posteriores à Revolução, de um "ódio antirreligioso". Segundo ele, os seus contemporâneos se ocupavam de "fazer desaparecer todo traço de sagrado", substituindo a fé pelo saber, e o amor pelo ter.

"Onde não há deuses, reinam os espectros", exclamava Novalis. Do mesmo modo, Ratzinger, depois do cisma da secularização e do trauma dos totalitarismos do século XX, não vê outra salvação para o Ocidente a não ser o retorno às fontes cristãs. No fundo, mas o Papa não pode dizer isto, a sua proposta seria mais "viver como se o Deus dos católicos existisse", conformando-se à lei assim como a Igreja apostólica romana, segura intérprete de Deus, da Razão e da Natureza, a enuncia. Ora, é justamente o que, depois de dois séculos, se tornou impossível na Europa! Perseverar nessa linha significa arrastar a Igreja rumo a um choque com a sociedade e com os próprios católicos.

domingo, 12 de abril de 2009

Sistema bancário do Brasil contribui para a exclusão social

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra que o esvaziamento do Estado no mercado financeiro e a redução da quantidade de bancos em operação nos últimos onze anos contribuir para promover mais desigualdade regional. "Nos últimos dez anos houve uma transferência de recursos que serviam de crédito para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil para uma maior concentração na região Sudeste", destaca Marcio Pochmann, presidente do instituto

Redação - Carta Maior (*)
Fonte: Agência Carta Maior

A íntegra deste estudo está disponível na página do IPEA.

O Brasil tem um sistema bancário incompleto, que contribui para a concentração de riqueza e aumento da exclusão social. É o que mostra o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgado por meio do Comunicado número 20 da presidência do instituto apresentado pelo presidente Marcio Pochmann em coletiva à imprensa realizada terça-feira (7), na sede do Ipea em Brasília.

Denominado "Transformações na indústria bancária brasileira e o cenário de crise" o estudo mostra que o esvaziamento do Estado no mercado financeiro brasileiro em nada beneficiou a inclusão social e a popularização bancária. A redução da quantidade de bancos em operação nos últimos onze anos contribuiu ainda para promover mais desigualdade regional. "Nos últimos dez anos houve uma transferência de recursos que serviam de crédito para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil para uma maior concentração na região Sudeste", apontou Pochmann.

Segundo o estudo, "ao contrário dos Estados Unidos, que combinou a redução na quantidade de bancos com ampliação do número de agências bancárias, o Brasil apresentou diminuição na quantidade tanto de bancos como no número de agências."

Em 2007, por exemplo, o país possuía somente 156 instituições bancárias, enquanto a Alemanha registrou 2.130 bancos e os Estados Unidos 7.282 bancos. A principal fase de redução da presença dos bancos públicos no Brasil ocorreu entre 1995 e 2001, com uma breve interrupção entre 2001 e 2003, quando voltou novamente a perder importância relativa no total de ativos bancários. Em 2007, o Brasil tinha menos agência por brasileiro do que na década de 80, quando havia, para cada agência, cerca de 8 mil brasileiros.

A diferença regional indicada no estudo é alarmante quando se pensa em desenvolvimento de médio e longo prazo no país. "Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, a relação da população por agência chega a ser quase três vezes maior do que nas regiões Sul e Sudeste". Entre 1996 e 2006 as três regiões acumulam uma perda de 41,4% na participação relativa no total de crédito.

O estudo observa que houve avanço da experiência brasileira de popularização de serviços bancários por intermédio das operações de correspondentes não bancários. "No ano de 2008, por exemplo, o Brasil registrou a presença de 84,3 mil correspondentes bancários operados em locais não bancários como padarias, postos lotéricos, correios, farmácias, entre outros".

Esses avanços, no entanto, não são ideais. "O Brasil precisa avançar rapidamente do ponto de vista da popularização dos bancos", defendeu Pochmann. Ele considera que a constituição de novos bancos, "bancos comunitários como existem nos Estados Unidos e Alemanha, por exemplo, ajudaria não apenas a difundir o crédito, mas torná-lo mais acessível à população que se encontra fora do sistema bancário".

(*) As informações são do IPEA.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Élodie Maurot

O Tríduo Pascal

Da Quinta-feira Santa ao domingo da Páscoa, os cristãos celebram o mistério central de sua fé: a morte e a ressurreição de Cristo. Segue a matéria de Élodie Maurot, publicada no jornal francês La Croix, 06-04-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS




O que é o Tríduo Pascal?

O Tríduo Pascal é o período de três dias durante o qual os cristãos celebram o centro de sua fé, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Esse termo vem do latim (tres “três” e dies “dia”).

O Tríduo Pascal começa na Quinta-feira Santa e termina no dia da Páscoa, depois das vésperas. Esses três dias constituem o centro de gravidade de todo o ano litúrgico. Sucessivamente, os cristãos comemoram a última ceia de Cristo com os seus discípulos, a prisão, crucificação e seu sepultamento e depois a sua ressurreição dentre os mortos.

Esses três dias formam um conjunto fortemente simbólico: recordam aqueles acontecimentos evocados no Evangelho de João. Jesus, tendo expulsado os vendilhões do Templo é interpelado pelos judeus para que manifeste a autoridade em nome de quem realizou esse gesto em Jerusalém, ao que lhes responde: “Destruí esse santuário e em três dias eu o reconstruirei”. Prefigurando a sua ressurreição, o evangelista precisa: “Ele falava do santuário de seu corpo” (Jo 2, 18-21).

Por que esses três dias?

A Igreja celebra num único e mesmo movimento a paixão, morte e ressurreição de Cristo. Ela manifesta assim a relação essencial entre a maneira de Jesus viver e morrer, “dando a sua vida por seus amigos” (Jo 15, 12), e sua ressurreição dentre os mortos. Isso manifesta que a existência de Jesus, tal como foi vivida até a cruz, é acolhida e salva por Deus.

“A ressurreição não significa o começo de um novo período na vida de Jesus (...), mas precisamente a dimensão definitiva permanente e salva da única vida singular de Jesus”, escreveu o teólogo Karl Rahner (Curso Fundamental da Fé, p. 315).

O que é celebrado na Quinta-feira Santa?

Na noite da quinta-feira antes da Páscoa, os católicos celebram a Ceia, a última refeição de Jesus com os seus discípulos, na qual lhes anuncia que vai entregar a sua vida livremente e por amor. Essa entrega é significada de maneira diferente pelos quatro Evangelhos. Marcos, Mateus e Lucas mostram Jesus partilhando com os doze pão e vinho, que representam o seu corpo e o seu sangue.

No Evangelho de João, esta cena está ausente, e a entrega de Jesus é traduzida pelo gesto do lava-pés. Jesus assume assim a situação de servo e deixa aos seus discípulos este testamento: “Pois é um exemplo que eu vos dei: o que fiz por vós, fazei-o vós também” (Jo 13, 15).

Fiel à memória de Cristo, a Igreja procede, na noite da Quinta-feira Santa, ao rito do lava-pés e celebra solenemente a Eucaristia. No fim da missa, os fieis prosseguem a sua oração acompanhando Jesus na noite de sua prisão no Jardim das Oliveiras. “Eis o que distingue os cristãos dos pagãos”, escreverá o teólogo Dietrich Bonhoeffer. “‘Não podeis vigiar uma hora comigo?’, pergunta Jesus no Getsêmani. É o contrário de tudo o que o homem religioso espera de Deus”.

O pastor alemão via nisso o sinal de uma vida cristã liberta dos ídolos: “Deus é impotente e frágil no mundo, e assim somente ele está conosco e nos socorre”.

A Sexta-feira Santa é um dia de morte?

Não apenas isso, porque nesse dia os cristãos celebram o amor extremo de Deus. Eles celebram a “kénose” de Deus, sua humilhação que vai até a cruz para reunir os homens. Nesse gesto radical de humildade, que inverte a visão pagã de um deus dominador, os cristãos recebem a revelação de um Deus que é amor.

Durante este dia, os cristãos acompanham Jesus em sua Paixão, relendo comunitariamente o relato de sua prisão e morte. Ao longo do ofício, a liturgia prevê um gesto de veneração da cruz. Desde o fim da Idade Média, a prática da via-sacra se difundiu largamente. Isso acontece depois do meio-dia da sexta-feira e consiste numa peregrinação em catorze (ou quinze) estações.

O Sábado Santo é um dia “vazio”?

O Sábado Santo é o único dia do ano litúrgico em que não se realiza nenhum ofício coletivo, exceto a Liturgia das Horas (oração do breviário). Nenhum sacramento é celebrado. É um dia de silêncio e de recolhimento, um dia de espera.

A Tradição o associa “à descida aos infernos”, particularmente presente na espiritualidade bizantina: o Cristo reúne os mortos que permaneceram longe de Deus, a começar por Adão e Eva, para associá-los à libertação iminente de sua ressurreição. O Sábado Santo é também consagrado aos preparativos da Festa da Páscoa nas famílias e comunidades cristãs.

O que é celebrado na vigília pascal?

Na Páscoa – celebrada tanto na liturgia noturna do Sábado Santo como no domingo da Páscoa –, a Igreja celebra a ressurreição de Jesus, sua “passagem” da morte à vida. Segundo a fé cristã, Deus não deixou seu Filho crucificado na cruz. “Deus o ressuscitou”, “Deus o glorificou”, “Deus o restabeleceu” da morte – estas são as palavras em grego utilizadas pelo Novo Testamento – quem deu a sua vida por amor ao seu Pai e aos homens.

Para os cristãos, essa vitória sobre a morte concerne toda a humanidade. “Pois sabemos: aquele que ressuscitou o Senhor Jesus, também nos ressuscitará com Jesus”, escreve Paulo aos Coríntios (2Cor 4, 14). Este anúncio de uma vida em abundância, mais forte que a morte, é a salvação, a “boa nova” festejada na Páscoa.

Projeto Excelências


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