quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Entrevista - Marcelo Carcanholo

Marcelo Carcanholo é professor da Universidade Federal Fluminense e membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e marxismo (NIEP-UFF). Carcanholo é doutor em economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De suas obras, citamos A quem pertence o amanhã? Ensaios sobre o neoliberalismo (SP: Loyola, 1997) e A vulnerabilidade econômica do Brasil: abertura externa a partir dos anos 90 (Aparecida: Idéias & Letras, 2005). Esta entrevista se encontra na edição 278 da Revista do Instituto Humanitas Unisinos - A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. Fonte: UNISINOS


IHU On-Line – Quais são as lições do marxismo para resolver uma situação de crise mundial, como a que se apresenta no sistema financeiro?

Marcelo Carcanholo - Em primeiro lugar, do ponto de vista mais rigoroso, a obra de Marx – em especial, O capital, que trata das leis gerais de funcionamento do modo de produção capitalista – não tem como objetivo construir uma instrumentalização político-econômica para resolver os momentos de crise da economia capitalista. Ao contrário, o que se pretende é mostrar como o processo de acumulação de capital, e mais especificamente suas leis (de tendência) gerais, pressupõe as crises econômicas, manifestem-se estas da forma que for. Em outras palavras, as crises não são anomalias do sistema, mas partes integrantes de sua lógica. O processo de acumulação de capital é cíclico, porque, para cada fase de crescimento na acumulação de capital, as contradições aprofundadas nessa fase levam, inexoravelmente, a crises, e estas, por sua vez, produzem conseqüências que permitirão uma nova fase de acumulação de capital. Dessa forma, nem o capitalismo acabará, por si só, em razão de uma crise econômica – ainda que esta possa explicitar tanto as contradições do sistema que os seres humanos se proponham a transformar esse sistema social – e nem os crescimentos da economia são eternos. Qualquer perspectiva (que se diga) marxista que analise instrumentos de política econômica para minorar os efeitos das crises está, no fundo, propondo uma perspectiva muito mais keynesiana que marxista, pois, para esta última, a política econômica para suavizar os movimentos cíclicos é uma questão menor, se é que se trata de uma questão.

Em segundo lugar, o que o livro III de O capital mostra, dentre outras coisas, é que o desenvolvimento do capital fictício (que não pode ser confundido com aquilo que Hilferding, em 1910, chamou de Capital Financeiro) potencializa o caráter dialético da acumulação de capital, e, em momentos de preponderância de sua funcionalidade, acelera o seu crescimento. No entanto, pelas mesmas razões, nos momentos de imposição de sua disfunção, ele potencializa os efeitos da crise, podendo ser até o fator detonador dessa fase. Este é o momento que vivemos agora.

IHU On-Line - Em que medida a regulação das instituições financeiras poderá acalmar o mercado financeiro e proporcionar um novo rumo para o capitalismo? Isso é possível?

Marcelo Carcanholo - Regulamentações que desincentivem as tomadas de posições mais especulativas de instituições financeiras podem diminuir a instabilidade do sistema. Mas a lógica que prevaleceu no capitalismo contemporâneo até agora foi justamente a oposta: desregulamentação e flexibilização de mercados. Do ponto de vista do capital fictício, isso representa um terreno construído para expansão de sua lógica meramente de apropriação de valor, sem contribuição direta para a sua produção. Isso levou à crise atual. Quais as suas conseqüências e o seu tamanho? Isso é algo que só poderá ser tratado com rigor a posteriori. É possível uma nova “fase de ouro” para o capitalismo, com regulamentação do setor financeiro e participação do Estado? Pode até ser, mas não antes que todas as conseqüências - extremamente maléficas para os seres humanos – se explicitem, e, mesmo a retomada da acumulação de capital, dada a conjuntura atual, só será possível com um extremo aprofundamento da exploração do trabalho, a fim de expandir a taxa de mais-valia. O resultado disso para os trabalhadores é o aprofundamento da atual lógica. O que poderia mudar, lá adiante, é a lógica da apropriação dessa mais-valia produzida, com menor participação da lógica fictício-especulativa. Isso é meramente uma possibilidade, mas mesmo aí o capitalismo tenderá a aprofundar a exploração do trabalho.

IHU On-Line - Quais as principais transformações que o capitalismo neoliberal provocou na estrutura de classes da sociedade brasileira?

Marcelo Carcanholo - Pelo fato de que o capitalismo neoliberal (contemporâneo) corresponde ao domínio da lógica do capital fictício, meramente apropriador de mais-valia, sem produzi-la diretamente, tende-se a acreditar que isso produziu um fracionamento determinístico na classe burguesa entre capitalistas produtivos e capitalistas “financeiros”. Isto é um equívoco. De fato, esse fracionamento das formas do capital se aprofundou na atualidade, mas trata-se ainda de conteúdo-capital, por mais que se manifeste em outras formas.

Isso, do ponto de vista social, nos permite entender como mesmo os capitalistas “produtivos” são também “financeiros”. As principais empresas “produtivas” da sociedade brasileira possuem, hoje em dia, bancos e, portanto, atuam também com uma lógica fictício-especulativa. Além do mais, distintos arranjos econômicos podem unificar frações de classe que, por alguma razão, estivessem efetivamente fracionadas em seus interesses. O melhor exemplo disso foi depois da crise cambial brasileira em 1999, quando a desvalorização do câmbio permitiu atender os interesses da burguesia agrário-exportadora, ao mesmo tempo em que, aliado ao ciclo de alta na liquidez internacional, essas maiores exportações permitiam a entrada de divisas, o que atende os interesses meramente patrimonialistas do capital fictício-especulativo. Essa conjuntura unificou as três frações de classe da burguesia brasileira (agrário-exportadora, “financeira” e “produtiva”). Tudo isso em pleno governo do Partido dos Trabalhadores, o que nos leva a outra questão.

No capitalismo contemporâneo, a lógica do capital fictício é tão hegemônica que até os trabalhadores passam a se comportar como se fossem proprietários de capital. Isso ocorre porque, quando os trabalhadores conseguem poupar alguma parcela de seus salários, do ponto de vista individual, aparece a questão: onde aplicar? Entra-se exatamente no terreno do capital fictício, de forma que os trabalhadores se sentem proprietários de um capital. Do ponto de vista das classes sociais, isso aprofunda também o fracionamento de interesses dentro da própria classe trabalhadora, algo já apontado pela reestruturação produtiva neoliberal.

IHU On-Line - Se Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, 150 anos antes, que espécie de previsões podemos fazer para nossa economia a partir da sociedade que temos hoje, baseada em valores consumistas e na autonomia?

Marcelo Carcanholo - Sendo conseqüente com sua perspectiva teórico-metodológica, Marx tratava a História como um processo aberto. Existem leis de tendência em uma sociabilidade que definem o leque de opções para o futuro, mas, dentro desse leque, o rumo efetivo da época social em questão possui uma determinação sociopolítica. Os seres humanos decidirão, coletiva e conflituosamente (diferentes classes sociais), qual será o rumo efetivo. O que ocorrerá daqui para frente? O socialismo, rumo a uma sociedade comunista? Não há nenhuma garantia disso. Só ocorrerá se os seres humanos se propuserem a isso, e se, de fato, esse projeto for historicamente exeqüível. Uma nova forma de manifestação histórica do capitalismo? Pode ser. Mas, se assim for, continuarão imperando as leis gerais de seu funcionamento. As crises cíclicas dentre elas, mas existe outra mais trágica para o destino da humanidade: a acumulação de capital desenfreada com a utilização de recursos naturais e produtivos que isso requer, sem nenhuma preocupação com a sua renovação e sustentabilidade. O fim disso é facilmente antevisto.

IHU On-Line - Você considera razoável a previsão de Marx de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente? Há elementos de mercado que poderiam sobreviver em algum sistema pós-capitalista?

Marcelo Carcanholo - Marx não fez nenhuma previsão sobre a inexorabilidade do socialismo/comunismo. Quando ele falou em necessidade de transformação social, queria dizer que se o ser humano não implementar uma transformação emancipatória na sua sociabilidade, todos os problemas de alienação, subordinação à lógica do capital, exploração etc. continuariam. Portanto, a transformação social era uma necessidade para uma afirmação do ser humano (social) para si; ali começaria, de fato a sua história. Se essa época social fosse possível e obtida, a condição necessária para que ela se apresentasse (com o nome que seja, socialismo, comunismo...) era a de que as relações entre os seres humanos fossem imediatamente sociais, e não intermediadas, seja por produtos do trabalho (mercadorias transacionadas no mercado) e/ou por uma instância externa que definisse de antemão o que, como, quanto e para quem se produz. Sendo assim, uma sociedade emancipada que viva sob a lógica da sociabilidade mercantil (onde as relações sociais estão subordinadas ao movimento das mercadorias) é uma contradição insuperável. O socialismo, para ser uma fase de transição para o comunismo, não pode aprofundar a lógica mercantil, ainda que pequenos espaços onde se troquem fortuitamente coisas possam existir, mas não como norma de sociabilidade.

IHU On-Line - Baseados em Marx, podemos afirmar que o neoliberalismo se aproxima do fim?

Marcelo Carcanholo - Independente de uma interpretação marxista, parece que o período neoliberal manifestou sua crise ideológica e política de forma aguda com esta crise financeira atual. Isso por uma razão muito simples. A única “saída” para o capital é contar com a atuação incisiva e decisiva do Estado na monetização de grande parte dos créditos podres explicitados na crise. Isto significa que o Estado arcaria com esses prejuízos, no sentido de que adquire esses títulos sem nenhuma liquidez (sem possibilidades de revenda em mercados secundários), no final das contas, a custas do tesouro. Em um contexto como esse, fica difícil sustentar qualquer aporia (neo)liberal. Entretanto, é preciso lembrar que isso já aconteceu antes. O que a História nos mostra é que, após um bom período de crescimento na acumulação do capital, esse tipo de ideário acaba voltando, com uma ou outra roupagem. Isso se deve ao fato da ideologia (neo)liberal explicitar de forma mais clara a defesa e propaganda da lógica da economia mercantil-capitalista.

IHU On-Line - Como o senhor avalia a economia brasileira, a partir do sentimento ufanista de crescimento econômico? Quais os riscos do Brasil ser atingido pela turbulência internacional?

Marcelo Carcanholo - Independente de qualquer coloração teórico-ideológica, há consenso entre os interpretes que a economia brasileira não ficará imune – ao contrário do que pensou inicialmente nosso presidente – aos impactos da crise financeira. Isso, basicamente, por duas razões. Do ponto de vista do ciclo de liquidez internacional, entramos agora na fase de descenso, ou seja, há escassez no mercado de crédito internacional, pois existe uma crescente demanda por financiamento dos ativos podres.

A tentativa dos Bancos Centrais no mundo é a de, por vários instrumentos, sancionar/ratificar esse excesso de demanda, mas o que até agora se viu é que essas tentativas não tiveram sucesso. Isso significa que o excesso de demanda será precificado, isto é, as taxas internacionais de juros subirão, o que reduzirá o fluxo de capitais para a economia brasileira, ao mesmo tempo em que obrigará a elevação das taxas internas de juros. Por outro lado, a recessão mundial freará o crescimento de nossas exportações, reduzindo os preços das commodities e a demanda pelos nossos produtos. Os dois efeitos, em conjunto, significam que os problemas estruturais da economia brasileira em suas contas externas voltarão a se explicitar, após uma fase meramente conjuntural (em razão do cenário externo), de relativo alívio. A restrição estrutural ao crescimento em função do estrangulamento externo voltará com toda sua força.

IHU On-Line - O senhor acredita que a atual crise irá suscitar uma renovação política mundial? Em que sentido o senhor vislumbra mudanças?

Marcelo Carcanholo - É possível, mas, mais uma vez, meramente possível. O que está em jogo neste momento é a capacidade da economia norte-americana exercer sua hegemonia através de sua moeda como medida internacional dos valores, como dinheiro mundial. A crise financeira atual, sob a lógica do capital fictício, poderá significar uma brutal desvalorização, em dólar, dos ativos que o compõe. Dependendo do tamanho dessa desvalorização, o dólar pode ser questionado como padrão monetário internacional. Entretanto, se as taxas de juros americanas subirem, refletindo a enorme falta de crédito em seu mercado, os capitais internacionais podem fluir novamente para a economia americana provocando o efeito inverso; uma tendência de valorização do dólar. Quanto mais para um lado, como para outro, dependerá da capacidade que a economia americana tiver de atender a demanda por liquidez e, portanto, dessa demanda não ser precificada em elevação de seus juros e os conseqüentes impactos cambiais.

Entrevista - Álvaro Bianchi

Álvaro Bianchi é Professor do Departamento de Ciência Política/UNICAMP, doutor em Ciências Sociais/UNICAMP, diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e secretário de redação da revista Outubro. Esta entrevista se encontra na edição 278 da Revista do Instituto Humanitas Unisinos - A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. Fonte: UNISINOS






IHU On-Line - O que Marx entendia por “economia política vulgar”? Como ela contribui para chegarmos à crise atual?


Álvaro Bianchi - Marx tinha em grande conta a economia política clássica e considerava a obra de David Ricardo o ápice da ciência econômica de sua época. Mas, na medida em que o conflito social tornou-se mais intenso, a ciência econômica deixou de ter como objetivo a investigação das contradições sociais e transformou-se em uma apologética. Marx chamava essa ciência econômica pós-ricardiana de “economia vulgar”. A principal característica da economia vulgar é que ela insiste em fixar-se nas formas de manifestação da mais-valia e da produção capitalista, ao invés de analisar a verdadeira natureza destas. Desse modo, se, no capital produtor de juros, que é a forma do capital financeiro, este aparece (e destaco a palavra aparece) como fonte independente de valor, os economistas vulgares tomavam essa aparência como sua essência. Este erro, que já havia sido denunciado por Marx em seus escritos do começo dos anos 1860, pode ajudar a explicar a crise atual.

IHU On-Line - Quais as principais transformações que o capitalismo neoliberal provocou na estrutura de classes da sociedade brasileira?

Álvaro Bianchi - Nos últimos vinte anos, tiveram lugar profundas transformações na estrutura de classes de nossa sociedade. Tais mudanças não atingiram apenas os trabalhadores como também a composição da burguesia. Comecemos por esta última. Nas décadas de 1980 e 1990, teve lugar uma recomposição profunda da economia nacional que reconfigurou a burguesia. A indústria nacional, que ganhou força nas décadas anteriores, foi fortemente internacionalizada. Fusões e aquisições tiveram lugar e indústrias que simbolizavam o período anterior – por exemplo, Metal Leve, Cofap e Cobrasma – simplesmente deixaram de existir, dando lugar a empresas multinacionais em alguns casos. Ao mesmo tempo, os setores da indústria mais fortemente vinculados ao mercado internacional ganharam espaço. Houve, também, uma enorme expansão do setor financeiro e um importante crescimento da agricultura e da pecuária vinculadas à exportação. Tudo isso mudou profundamente a cara da burguesia brasileira. Se antes era difícil falar de uma burguesia nacional, agora é uma completa impropriedade.

Do lado da classe trabalhadora, ocorreu uma intensa desregulamentação e precarização do mercado de força de trabalho com processos de terceirização, externalização, deslocalização, fragmentação, trabalho temporário ou eventual. A relação salarial “canônica”, isto é, portadora de direitos sociais, tornou-se uma exceção à regra da “contratualização”, ou seja, da multiplicação das formas contratuais. A força de trabalho em alguns setores da indústria, como a metalúrgica, diminuiu. Na verdade, durante o governo FHC, a indústria brasileira perdeu mais de dois milhões de postos de trabalho. Alguns mais apressados chegaram até mesmo a falar do fim do proletariado. Trata-se, a meu ver, de um grande equívoco. Mas também é errado dizer que nada mudou. A classe trabalhadora assumiu novas formas e cresceu numericamente em setores como o de serviços.

IHU On-Line - Em que sentido Marx pode ser visto como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista?

Álvaro Bianchi - Em 2005, Colin Graham, da Merrill Lynch Investment Management, aconselhou investidores que ouviam sua palestra a terem cautela com os hedge funds e contou que, quando havia começado a trabalhar na empresa, durante a crise nas bolsas de outubro de 1997, seu chefe saiu correndo e comprou O capital, de Marx, para compreender o que ocorreria quando o capitalismo ruísse. A obra de Marx, e principalmente O capital, tem por objeto as contradições da sociedade capitalista e os limites postos ao capitalismo por essas contradições. São estas contradições econômicas, sociais e políticas as que provocam suas crises. Uma compreensão apurada dessas contradições permitiria um conhecimento mais aprofundado do desenvolvimento capitalista. Mas a esse respeito é necessário um esclarecimento. Marx nunca achou que o capitalismo encontraria calma e pacificamente seu fim dando lugar a uma forma de sociabilidade que conseguisse expurgar as crises. Mas as recorrentes crises do capitalismo revelam as tendências autodestrutivas do próprio capitalismo. A escala dessa autodestruição não pode ser subestimada. O retorno de formas pré-capitalistas de trabalho, como o trabalho escravo nas zonas agrícolas extrativistas, ou formas degradadas de salário, com a remuneração por peça na moderna indústria, o aquecimento global e a invasão do Iraque são algumas manifestações dessa autodestruição.

IHU On-Line - Por que hoje muitos retomam Marx como o centro das atenções no debate sobre a crise financeira internacional?

Álvaro Bianchi - É como o romance de García Márquez: a crise financeira é a crônica de uma morte anunciada. Como disse, a obra de Marx é uma investigação sobre as contradições e os limites do capitalismo. Com base nessa obra, os marxistas insistiram muito nas últimas décadas que a liberalização e desregulamentação das finanças, do comércio e da força de trabalho tinham por objetivo superar os entraves à acumulação do capital que tinham levado ao esgotamento o modelo econômico do pós-guerra, assentado nos acordos de Breton Woods. Acontece que, enquanto as contradições imanentes ao sistema não forem superadas, os limites ao desenvolvimento da economia capitalista também não o serão definitivamente. Eles reaparecem logo à frente ainda maiores, mais perigosos e mais difíceis de transpor. Tomemos o caso que está sendo discutido agora.

A partir do final dos anos 1960, começou a ficar claro que o capitalismo enfrentava uma grave crise de superprodução. Um dos meios de superar essa crise foi incentivar fortemente o consumo mediante uma expansão do capital fictício (ações, títulos da dívida, derivativos etc.) e do crédito. Isso permitiu contornar os obstáculos à acumulação, mas, como estamos vendo agora, os novos obstáculos se revelaram ainda maiores. Aparentemente, o capital financeiro havia se tornado independente do processo de produção de novos valores. Para Marx, assim como para David Ricardo, era mais fácil encontrar no trabalho o fundamento do valor. Hoje, a expansão dos mercados financeiros torna mais difícil encontrar essa essência por detrás da aparência e a crise contemporânea assume também a forma de uma crise da medida do valor. Os mercados são incapazes de dizer quanto os ativos realmente valem. Mas essa aparência só enganava os economistas vulgares, ou seja, aqueles que queriam ser enganados. Certamente essa aparência não enganou os leitores mais atentos de O capital.

IHU On-Line - Qual o valor que os capitalistas e liberais vêem nas teorias de Marx? Como entender esse paradoxo?

Alvaro Bianchi - Na verdade, a maioria deles nunca leu O capital. O juízo que costumam fazer da obra de Marx costuma ser desinformado ou baseado em lugares comuns. Veja-se o tal economista relatado por Colin Graham. Marx nunca disse que o capitalismo ruiria sozinho devido a suas crises econômicas. Se ele esperava encontrar isso em O capital, e se de fato o leu, deve ter ficado decepcionado. Os mais esclarecidos, é verdade, procuram na obra de Marx uma análise do desenvolvimento capitalista. Mas a teoria que podem encontrar em O capital não é uma teoria do desenvolvimento e sim uma teoria das contradições desse desenvolvimento. O paradoxo é que essas contradições não podem ser superadas sem que o próprio capitalismo seja superado. Ou seja, o único conselho que capitalistas e liberais podem encontrar em O capital é que deixem de ser capitalistas e liberais. Mas não creio que estejam dispostos a aceitá-lo.

IHU On-Line - Como relacionar o 160° aniversário da publicação do Manifesto Comunista com uma crise econômica internacional particularmente dramática, em um período de ultra-rápida globalização do livre-mercado?

Alvaro Bianchi - No Manifesto Comunista, há uma descrição com cores muito vivas do processo de afirmação e expansão do capitalismo em uma escala mundial. Muitos já disseram que Marx previu o fenômeno da globalização econômica, e isso já se tornou um daqueles lugares comuns que os liberais gostam de repetir. Na verdade, nesse texto, está explicitada a tendência à internacionalização da acumulação capitalista que se verificava já em seu próprio nascedouro, com as grandes navegações e o empreendimento colonial nas Américas. O proletariado não tem pátria, segundo o Manifesto, porque o capital também não tem. A reprodução ampliada do capital tende a transgredir fronteiras a encontrar novas frentes de expansão, a atingir os mais recônditos lugares. O que o Manifesto não disse e não poderia dizer é que essa transgressão seria levada a cabo pelo capital financeiro.

De fato, em outros textos de Marx, é possível encontrar menções à especulação financeira promovida pelos mercados acionários. Mas são poucas passagens. Há, entretanto, um tema sobre o qual devemos prestar atenção. A mundialização do capital afirmada no Manifesto é, também, a mundialização de suas crises econômicas e políticas. O ano no qual esse texto foi publicado já deu uma amostra do que estava por vir. A partir de fevereiro de 1848, uma onda de revoluções propagou-se pelo continente europeu com uma velocidade superior a dos meios de comunicação. Essas revoluções foram precedidas pela crise econômica que teve seu ápice em 1847. Embora os comunistas fossem uma pequena força política, o fantasma da revolução andou assombrando muita gente. Hoje o espectro que ronda o mundo é o da crise do capitalismo. Mas ainda é cedo para saber se ele será capaz de acordar seu parceiro, o fantasma da revolução. Tem gente que já não dorme direito pensando nisso.

IHU On-Line - Se Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, 150 anos antes, que espécie de previsões podemos fazer para nossa economia a partir da sociedade que temos hoje, baseada em valores consumistas e na autonomia?

Alvaro Bianchi - Em 1999, o ultra-liberal Alan Greenspan, o chefe todo-poderoso do Federal Reserve, anunciou em depoimento ao Congresso dos Estados Unidos, que teriam ido “para além da história”, isto é, superado as agruras dos ciclos econômicos e atingido o crescimento perpétuo. Hoje ele é acusado pelo prêmio Nobel da Economia, Paul Krugman, de ser co-responsável pela atual crise. Para evitar justamente a apologética, os marxistas são muito cuidadosos, ou deveriam sê-lo, com as previsões. A única previsão que creio possível é a de que a dinâmica de crises continuará e que os conflitos sociais se tornarão mais intensos. A teoria de Marx não permite (e não deseja) prever mais do que isso.

Entrevista - Leda Paulani

Leda Paulani é doutora em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da USP, presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Econômicas e professora da USP. É autora de obras: Modernidade e discurso econômico (SP: Boitempo, 2005) e Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico (SP: Boitempo, 2008). Esta entrevista se encontra na edição 278 da Revista do Instituto Humanitas Unisinos - A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. Fonte: UNISINOS


IHU On-Line - É correto afirmar que a crise financeira internacional é conseqüência da crise do capitalismo?


Leda Paulani - Essa é uma questão polêmica, cuja resposta não podemos dar aqui integralmente, pois o espaço não é suficiente. O ponto mais polêmico é se o capitalismo está ou não em crise e se está desde quando. Dentre os autores marxistas, alguns julgam que o capitalismo está em crise desde meados dos anos 70 do século passado, porque desde então as taxas médias de crescimento declinaram em todo o planeta. Outros acreditam que há, desde pelos menos uma década antes disso, um problema não resolvido de sobreacumulação de capital. Outros ainda acreditam que o capitalismo passa por ciclos sistêmicos de acumulação, ora real, ora financeira, e que estaríamos agora num ciclo de acumulação financeira. Seja como for, o fato é que, pelo menos desde o início deste novo século, essa morosidade do sistema no que tange ao crescimento da riqueza real parece ter sido substituída por uma velocidade maior, puxada fundamentalmente pela decisão da China de passar a integrar o sistema capitalista. Nesse sentido, o terremoto financeiro que assistimos tem funcionado como desmancha-prazeres, de modo que se poderia dizer, ao contrário, que a crise do capitalismo (a que virá agora) é que é conseqüência da crise financeira. Mas, como disse, essa é uma questão muito complicada para ser trabalhada aqui.

IHU On-Line - Quais as lições de Marx em relação ao livre mercado que podem nos ajudar a compreender a crise financeira atual?

Leda Paulani - O que Marx mostrou de mais importante sobre o assim chamado “livre mercado” é que ele esconde por trás de sua aparência de liberdade, igualdade e equilíbrio o contrário disso. Ele põe a aparência de liberdade porque todos são juridicamente iguais, proprietários de mercadorias, e parecem livres para vender suas mercadorias a quem quiserem e se quiserem e para comprar o que quiserem, de quem quiserem e se quiserem. Ele põe a igualdade porque quando mostra que algo, uma bolsa, por exemplo, é igual a R$ 25,00, a venda da bolsa parece uma transação justa, em que se trocou valor de um tipo por valor de outro tipo. A aparência de equilíbrio vem da reiteração das transações mercantis (com suas trocas iguais) no dia-a-dia dos mercados, num movimento que parece poder repetir-se indefinidamente. Quando surgem crises da dimensão da que agora vivemos, elas não combinam com essa aparência idílica e denunciam a complexidade e as relações contraditórias que constituem o sistema capitalista.

IHU On-Line - Qual a validade das definições de Marx para o crédito e o capital financeiro neste momento de crise mundial?

Leda Paulani - Crédito e Capital Financeiro condicionam-se mutuamente. Quando o dinheiro serve não apenas para comprar mercadorias (bens, serviços, força de trabalho, máquinas, etc.), mas igualmente para pagar dívidas (e também comprar honra, consciência, enfim tudo aquilo que seja adaptável à forma preço), Marx diz que ele se transforma em meio de pagamento geral, e se ele funciona assim é porque já estão em cena credores e devedores. Aquele que fornece crédito é ao mesmo tempo o detentor de uma forma especial de capital, que Marx chama de capital portador de juros, e que mais popularmente é chamado de capital financeiro. Marx diz sobre o capital portador de juros que ele é a matriz de todas as formas aloucadas de capital. Quem acompanhou o redemoinho vivido pelos mercados financeiros do mundo nas últimas semanas não pode deixar de dar-lhe razão.

IHU On-Line - Em que sentido o conceito de “capital fictício” elaborado por Marx contribui para esclarecer o caráter da crise de agora?

Leda Paulani - Dentre todos os conceitos criados por Marx para dar conta da realidade capitalista, talvez não haja conceito mais importante para interpretar a crise atual do que o de capital fictício. Muitos autores têm considerado que, pelo menos desde o início dos anos 1980 do século passado, o capitalismo vive uma nova etapa, cujo tom é dado pela financeirização. Essa financeirização, produzida pelo crescimento desmesurado da riqueza financeira (frente ao crescimento da riqueza real), implica a submissão da totalidade do sistema econômico aos imperativos da lógica financeira da acumulação, o que garante a continuidade do crescimento dessa mesma riqueza. Ora, esse crescimento desmesurado simplesmente não existiria se não existisse o capital fictício. Quando o dinheiro é emprestado para que se o receba de volta aumentado, numa data futura, está implícita nessa transação a capacidade potencial que o dinheiro tem de se multiplicar. Essa capacidade é “verdadeira”, se esse dinheiro for dar uma voltinha no mundo da produção de bens e serviços, mas cria capital fictício quando, por meio de uma série de mecanismos, cuja explicação demandaria um espaço que não temos, ele não percorre esse caminho. A crise que agora presenciamos tem em seu bojo uma criação num grau inédito de capital fictício. Tudo seria mais simples se pudéssemos simplesmente eliminar esse capital, digamos assim, “espúrio”, penalizando apenas quem contribuiu para sua disseminação, conseguindo com isso colocar o sistema de volta num curso menos fantasmagórico. Mas isso está longe de ser simples, porque existem inúmeros fios nervosos ligando um sistema ao outro. O crédito para a produção e para o comércio é o mais importante e o mais visível desses fios.

IHU On-Line - A partir das teorias de Marx, quais os rumos que podemos imaginar para o mundo capitalista, a partir da crise financeira internacional?

Leda Paulani - Esta pergunta está relacionada à anterior sobre a crise do sistema capitalista e sua resposta depende, em última instância, da forma como enxergamos o capitalismo hoje. Tem se falado muito que voltaremos a viver sob um capitalismo super regulado, como aquele vigente desde o fim da Segunda Guerra até meados dos anos 1970, que o capital financeiro perderá força, que o neoliberalismo morreu etc. Não acredito muito nessas previsões. Creio que o reinado financeiro ainda durará por um bom tempo, primeiro porque, por mais que a crise tenha debilitado essa poderosa riqueza financeira, ela ainda parece grande demais para deixar de impor seus requerimentos ao andamento material do planeta. Segundo, porque o que vivemos hoje é o resultado de um longo processo de financeirização, cujo desmonte não se dará assim do dia para a noite. Terceiro, porque, e esse talvez seja o argumento mais forte, ninguém sabe para onde vai o sistema monetário internacional, e esse processo todo — a financeirização e sua crise — é resultado, entre outras coisas, da (não) solução encontrada para a desarticulação do sistema de Bretton Woods1.

IHU On-Line - A crise financeira internacional representa o fim de um ciclo? Podemos aguardar uma mudança na condução do sistema financeiro internacional?

Leda Paulani - Se entendemos que a financeirização configurou um ciclo e se ao mesmo tempo acreditamos que esta crise marca o fim do predomínio do capital financeiro, então estamos autorizados a falar que esta crise marca o fim de um ciclo. Se pensarmos, porém, que a economia mundial vinha finalmente retomando um crescimento menos anêmico depois de décadas de resultados pobres, então não dá para acreditar em ciclo e teremos simplesmente que admitir que as estripulias financeiras destinadas a aumentar mais e mais a riqueza e o poder do capital fi nanceiro atropelaram o ciclo que vinha firmemente engatando a marcha da subida.

IHU On-Line - Até que ponto a regulação do mercado proposta por Marx e Keynes permitirá que o mercado não se autodestrua?

Leda Paulani - Parece evidente que passaremos por um período de maior regulação, até porque isso acabará por se impor como exigência política. Contudo, se prevalecer, como imagino que prevalecerá, o poder do capital financeiro, essas crises abissais continuarão no horizonte, porque o capital financeiro é extremamente flexível e pródigo em invenções que escapam a qualquer regulação. Além disso, não podemos esquecer que vivemos uma fase do capitalismo em que o dinheiro e o poder estão muito próximos, particularmente por conta de ativos financeiros importantíssimos como os títulos da dívida pública, cujo volume é hoje enorme em praticamente todos os países. Passada a turbulência e o temor, essa proximidade impedirá que qualquer regulação mais efetiva se estabeleça.

IHU On-Line - A senhora acredita que a atual crise irá suscitar uma renovação política mundial? Em que sentido a senhora vislumbra mudanças?

Leda Paulani - Uma verdadeira renovação política mundial só aconteceria se a crise permitisse uma reorganização dos trabalhadores e dos movimentos sociais de modo geral e planetário, num processo que permitisse a construção de uma efetiva resistência a esse “fascismo do capital” que experimentamos há pelo menos um quarto de século. Infelizmente, creio que estamos muito longe de um cenário como esse. Ao contrário, me parece que a crise vai contribuir para vitaminar o discurso conservador (afinal, estamos numa situação de emergência!) e permitir a elevação do grau de exploração que possibilita, a um só tempo, enfrentar a tendência congênita deste tipo de capitalismo a sobreacumular capital, e gerar a renda real que coloca sempre ao alcance da mão a possibilidade de tornar absolutamente concretos, assim que se queira, os luxuosos desejos dos donos do capital fictício. Assim, se alguma mudança houver será talvez uma perda relativa de importância dos EUA, mas nada que altere o âmago do sistema capitalista e de sua reprodução tal como hoje se dá.

1 Conferência de Bretton Woods: nome com que ficou conhecida a Conferência Monetária Internacional, realizada em Bretton Woods, no estado de New Hampshire, nos EUA, em julho de 1944. A conferência de Bretton Woods, definindo o sistema de gerenciamento econômico internacional, estabeleceu as regras para as relações comerciais e financeiras entre os países industrializados do mundo. Representantes de 44 países participaram da conferência. Nela foi planejada a recuperação do comércio internacional depois da Segunda Guerra Mundial e a expansão do comércio através da concessão de empréstimos e utilização de fundos. Os representantes dos países participantes concordaram em simplificar a transferência de dinheiro entre as nações, de forma a reparar os prejuízos da guerra e prevenir as depressões e o desemprego. Concordaram também em estabilizar as moedas nacionais, de forma que um país sempre soubesse o preço dos bens importados. A Conferência de Bretton Woods traçou os planos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. (Nota da IHU On-Line)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

José Saramago









O golpe final
Dezembro 16, 2008

O riso é imediato. Ver o presidente dos Estados Unidos a encolher-se atrás do microfone enquanto um sapato voa sobre a sua cabeça é um excelente exercício para os músculos da cara que comandam a gargalhada. Este homem, famoso pela sua abissal ignorância e pelos seus contínuos dislates linguísticos, fez-nos rir muitas vezes durante os últimos oito anos. Este homem, também famoso por outras razões menos atractivas, paranoico contumaz, deu-nos mil motivos para que o detestássemos, a ele e aos seus acólitos, cúmplices na falsidade e na intriga, mentes pervertidas que fizeram da política internacional uma farsa trágica e da simples dignidade o melhor alvo da irrisão absoluta. Em verdade, o mundo, apesar do desolador espectáculo que nos oferece todos os dias, não merecia um Bush. Tivemo-lo, sofrêmo-lo, a um ponto tal que a vitória de Barack Obama terá sido considerada por muita gente como uma espécie de justiça divina. Tardia como em geral a justiça o é, mas definitiva. Afinal, não era assim, faltava-nos o golpe final, faltavam-nos ainda aqueles sapatos que um jornalista da televisão iraquiana lançou à mentirosa e descarada fachada que tinha na sua frente e que podem ser entendidos de duas formas: ou que esses sapatos deveriam ter uns pés dentro e o alvo do golpe ser aquela parte arredondada do corpo onde as costas mudam de nome, ou então que Mutazem al Kaidi (fique o seu nome para a posteridade) terá encontrado a maneira mais contundente e eficaz de expressar o seu desprezo. Pelo ridículo. Um par de pontapés também não estaria mal, mas o ridículo é para sempre. Voto no ridículo.

Gaza
Dezembro 22, 2008

A sigla ONU, toda a gente o sabe, significa Organização das Nações Unidas, isto é, à luz da realidade, nada ou muito pouco. Que o digam os palestinos de Gaza a quem se lhes estão esgotando os alimentos, ou que se esgotaram já, porque assim o impôs o bloqueio israelita, decidido, pelos vistos, a condenar à fome as 750 mil pessoas ali registadas como refugiados. Nem pão têm já, a farinha acabou, e o azeite, as lentilhas e o açúcar vão pelo mesmo caminho. Desde o dia 9 de Dezembro os camiões da agência das Nações Unidas, carregados de alimentos, aguardam que o exército israelita lhes permita a entrada na faixa de Gaza, uma autorização uma vez mais negada ou que será retardada até ao último desespero e à última exasperação dos palestinos famintos. Nações Unidas? Unidas? Contando com a cumplicidade ou a cobardia internacional, Israel ri-se de recomendações, decisões e protestos, faz o que entende, quando o entende e como o entende. Vai ao ponto de impedir a entrada de livros e instrumentos musicais como se se tratasse de produtos que iriam pôr em risco a segurança de Israel. Se o ridículo matasse não restaria de pé um único político ou um único soldado israelita, esses especialistas em crueldade, esses doutorados em desprezo que olham o mundo do alto da insolência que é a base da sua educação. Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado.

Fonte: O Caderno de Saramago

Sociólogo Lejeune Mirhan

A simbologia de um sapato

Todos viram. Vibraram. Na última segunda, dia 15 de dezembro, o jovem jornalista iraquiano, Muntader Al Zaide, arremessando seus dois sapatos em direção ao chefe do império americano, George W. Bush causou comoção no mundo todo. Indubitavelmente de forma positiva. As pessoas vibraram, sentiram-se representadas na pessoa desse combativo periodista árabe. Mas, os seus significados vão além do simples arremesso. Como veremos.

O jornalista e o episódio do arremesso

Al Zaide é jovem mesmo. Tem apenas 29 anos. Foi, ainda sob o governo de Saddam Hussein, presidente de uma entidade estudantil. Segundo a emissora Al Jazira, é membro do partido Comunista Iraquiano. Tem muitos irmãos e alguns deles mortos em combate na resistência contra a ocupação do Iraque por tropas estrangeiras desde 2003. Zaide é jornalista da emissora de TV Al Baghdadiya (cuja sede central fica no Cairo). Todas as reportagens da TV que ele faz na cidade de Bagdá ele conclui dizendo "da Bagdá ocupada". A própria emissora que o emprega exigiu a sua imediata libertação, assim como o Sindicato dos Jornalistas do Iraque.

AL Zaide virou instantaneamente um herói nacional. E usou a sua arma mais potente tanto física como simbolicamente de que dispunha no momento: seus sapatos de sola de borracha pesados não teve dúvidas. Foi ficando cada vez mais irritado com a entrevista coletiva que Bush vinha dando, com suas mentiras habituais, ao lado do primeiro Ministro fantoche do Iraque, Nuri Al Maliki. Num determinado momento, decidiu arremessar em seguida, os seus dois sapatos contra Bush. A catatonia dos presentes e mesmo da segurança presidencial foi tamanha, que ele conseguiu inclusive tempo para atirar o segundo sapato.

A frase que ele proferiu, gravada ao vivo por todas as emissoras presentes foi: "É o seu beijo de despedida do povo iraquiano, seu cachorro. Isso é pelas viúvas, órfãos e pelos que foram mortos no Iraque". E não precisava dizer mais nada. AL Zaide mostrava-se ao mundo como o vingador dos mais de 200 mil iraquiano mortos, representava o sentimento de uma nação destruída, desmontada, aviltada, vendida, entregue à sanha imperialista e com quase toda a sua infra-estrutura destruída e vendida ao setor privado (doadas na verdade).

Sua fama foi instantânea. Foi saudado no mundo inteiro. Passeatas saíram às ruas para exigir a sua imediata libertação. Circulou a informação de que um empresário saudita estaria oferecendo dez milhões de dólares por um dos sapatos que foram arremessados contra Bush. A foto de Al Zaide não saia de todas as TVs árabes e os jornais americanos publicaram o sapato "voador" passando rente à cabeça de Bush. Claro, os americanos procuraram minimizar o fato, dizendo que o mesmo não tinha importância alguma e que o jornalista não agiu em nome de nenhuma organização e não expressava a vontade do povo. Pura balela. Só se falava do ato de bravura praticado por um árabe contra o chefe do império mais odiado da história.

Os policiais que o prenderam, o espancaram brutalmente. Seu irmão, Maitham Al Zaide afirma que diversas de suas costelas foram quebradas e seu olho foi atingido por coronhadas de fuzil. Continua preso sem que nenhuma acusação lhe tenha sido feita e comunicado formalmente à justiça a sua detenção. Fala-se que poderia pegar de sete até quinze anos de cadeia por ter tentado agredir chefe de estado estrangeiro em visita ao Iraque.

Imediatamente uma rede de advogados formou-se para defendê-lo e exigir a sua libertação. A imprensa noticiou mais de cem advogados dispostos a prestar seus serviços gratuitamente para que ele possa ser libertado. O chefe da defesa de Saddam Hussein, Dr. Jalil Al Duleimi, será o provável defensor central de Al Zaide. Ainda continua sem nenhum contato tanto com seus familiares, como amigos e advogados, num claro desrespeito às tais normas mínimas de direitos humanos que os Estados Unidos tanto, e hipocritamente, pregam pelo mundo afora mas sem respeitá-las em lugar nenhum onde tem hegemonia.

A simbologia do sapato

Atirar um sapato em alguém, no mundo muçulmano é uma das maiores ofensas que se pode imaginar. É sabido que para adentrar a uma mesquita todos os seguires do Islã devem tirar seus sapatos na porta da Mesquita. Sapatos são os protetores dos pés contra as impurezas da terra. Boa parte das coisas ruins e várias doenças adentram em nosso corpo pelos nossos pés. As solas dos sapatos retêm grande parte dessas impurezas. Assim, a simbologia não poderia ser melhor. Uma imensa ofensa ao chefe do império. Além do que chamá-lo ainda por cima de "cachorro", foi duplamente ofensivo.

Esse contexto é toda a simbologia que se poderia ter, de um final mais do que melancólico e dramático do governo mais impopular da história dos Estados Unidos. Que deixa o maior rombo de caixa na maior economia do planeta. Que deixa de legado para todo o planeta o modelo neoliberal, que foi devidamente enterrado com a maior crise da história financeira do mundo. O presidente mais odiado do mundo, que encerra seu mandato em mais 30 dias apenas, mas que ninguém agüenta mais e não se vê a hora de que tudo esteja terminado e que o novo governo tome logo posse, antes que todo o sistema se derreta.

Ainda com toda essa impopularidade, com toda a crise econômica, Bush insiste em manter as tropas de ocupação no Iraque até 2011! A um custo mensal de 10 bilhões de dólares, a maior de todas as guerras feitas pelos americanos desde o final do século 19. Pode-se caracterizar essa simbologia do sapato atirado na cara do presidente americano como o retrato fiel do fim de uma era. Uma era de tristezas, de crises, de dominação e truculência, de financeirização do capital. Uma era de ocaso, de fim do unilateralismo, de fim de humilhações a que os EUA impuseram ao mundo todo, em especial aos árabes.

A simbologia não poderia ser melhor. Mais do que vaias ao final do seu impopular mandato, Bush sai sob sapatadas de um jovem combativo comunista e jornalista iraquiano de consciência elevada. Naquela sapatada desferida contra o chefe do império, Al Zaide representava o mundo inteiro. Representava todos os que lutam contra as injustiças, contra as ocupações, contra os ataques covardes que o exército americano praticou e continua praticando contra o povo do Iraque. Se em 2003 a simbologia era contra Saddam - quem não se lembra da derrubada da sua estátua na praça central de Bagdá e as várias chineladas e sapatadas desferidas contra a sua imagem - agora ela se volta contra aquele que se arvorou em ter derrubado um ditador. Mas pagará para toda a posteridade de sua vida, os imensos erros que a sua gestão deixou para o mundo. O povo árabe que o diga. Podemos nos sentir, como disse Gilles Lapouge (Estadão de 16/1/8), de "alma lavada, aliviados". Não é qualquer dia que se presencia dois sapatos sendo atirados contra o presidente dos Estados Unidos.

Certo mesmo está Lapouge com sua conclusão de que vencedor da guerra, Bush, se iguala ao vencido Saddam e o dito "vencedor" é agora vencido por uma sapatada de número 42 partindo de um iraquiano, de um árabe. Pode haver maior simbologia do que isso?
Fonte: ADITAL

Frei Betto

América do Sul - A pasteurização da esquerda

Na virada do século XX ao XXI, a América do Sul assistiu ao agravamento da questão social em decorrência das políticas neoliberais adotadas nas décadas precedentes. Isso fortaleceu os movimentos sociais e os partidos políticos que representavam alternativas de mudanças. É o que explica a eleição a presidente da República de Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Morales na Bolívia, Correa no Equador e Lugo no Paraguai.

Se, de um lado, a esquerda sul-americana logra ser uma alternativa de governo, por que não o consegue ao se tratar de uma alternativa de poder?

Desde a queda do Muro de Berlim (1989) a esquerda, em todo o mundo, entrou em crise de identidade. A implosão da União Soviética e a adesão da China à economia capitalista de mercado deixaram-na órfã, sem respaldo necessário para empreender mudanças pela via revolucionária.

Na América do Sul, optou-se, pois, pelo fortalecimento dos movimentos sociais representados por partidos políticos cujas raízes se inseriam nas comunidades cristãs de base, fomentadas pela Teologia da Libertação; no sindicalismo combativo; nas organizações populares de indígenas, camponeses, negros, migrantes, mulheres, e excluídos em geral. No caso venezuelano, a contestação se transformou em força política até mesmo nas Forças Armadas.

Não restava alternativa a esse movimento social engajado na busca de um "outro mundo possível" senão disputar, com os partidos do establishment, o espaço do poder. Embora desprovidas de recursos financeiros e apoio internacional, as forças políticas de oposição - a esquerda - detinham suficiente poder de mobilização popular adquirido, nas décadas anteriores, pelo "trabalho de formiga" para organizar setores populares situados entre a pobreza e a miséria, como, no Brasil, o fizeram as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que tinham, no PT, no PCdoB e, de certo modo, no PDT, as suas expressões políticas.

Esse processo tem sido responsável por mudar o caráter político de governos da América do Sul.

O que se vê, agora, é um impasse, do qual o caso brasileiro é exemplo. Não há como gerar uma ruptura revolucionária, como ocorreu em Cuba em 1959. Como, então, promover reformas de estruturas e reduzir a brutal desigualdade entre a população? Avanços nesse sentido acontecem, hoje, em países que se apóiam numa nova ordem constitucional, como é o caso da Venezuela, da Bolívia e do Equador.

No Brasil, o governo Lula optou por uma governabilidade baseada na política de conciliação com os setores dominantes e compensação aos dominados, dentro do receituário econômico neoliberal. Ao assumir a presidência, Lula poderia ter assegurado sua sustentabilidade política em duas pernas: o Congresso Nacional e os movimentos sociais. Escolheu o primeiro parceiro e descartou o segundo, que lhe era co-natural. Assim, tornou-se refém de forças políticas tradicionais, oligárquicas, que ora integram o grande arco de alianças (14 partidos) de apoio ao governo.

Descolamento das bases populares

Ao chegar ao governo, o PT preencheu considerável parcela de funções administrativas graças à nomeação de líderes de movimentos sociais. Afastados de suas bases, essas lideranças se encontram, hoje, perfeitamente adaptadas às benesses do poder, sem o menor interesse em retomar o "trabalho de base". Instados a se manifestar, são a voz do governo junto às bases, e não o contrário.

Por sua vez, o governo adotou uma política de relação direta com a parcela mais pobre da população, sem a mediação dos movimentos sociais, como é o caso do programa Bolsa Família, que ocupou o espaço do Fome Zero. Este se apoiava em Comitês Gestores integrados por lideranças da sociedade civil, que controlavam e fiscalizavam a iniciativa. Agora, o mesmo papel é exercido pelas prefeituras. E o propósito emancipatório, de manter as famílias castigadas pela miséria no programa por, no máximo, dois anos, foi abandonado em favor de uma dependência que traz ao governo bônus eleitoral.

Tal medida enfraquece os movimentos e, ao mesmo tempo, joga o governo no risco de ceder ao neocaudilhismo: o núcleo governante, voltado unicamente ao seu projeto de perpetuação no poder, mantém, via políticas sociais, relação direta com a população beneficiária, sem contar sequer com a mediação de partidos políticos originados na esquerda. No Brasil, o fenômeno do lulismo (76% de aprovação) se descolou do petismo. O PT, por sua vez, aceitou restringir-se ao jogo do poder. São cada vez mais raros, pelo país, os núcleos de base do PT. Agora, o processo de filiação de novos militantes já não obedece a critérios ideológicos, e nem há cursos de capacitação política.

Um projeto de poder

O que significam tais mudanças? Elas apontam para a perda do horizonte socialista, que norteava o PT, o PCdoB e muitos militantes do PDT. Trata-se de sobreviver politicamente, combinando a economia neoliberal com uma política social-democrata de caráter compensatório, não emancipatório. Assim, questões candentes da pauta histórica da esquerda, como a reforma agrária, são relegadas a futuro incerto. Escolhe-se abster-se de um modelo alternativo de desenvolvimento sustentável e libertador. O projeto Brasil é descartado em benefício de um projeto de poder, para cujo êxito não faltam escândalos de corrupção (mensalão) e alianças contraídas com partidos e forças sociais e econômicas que o PT, o PCdoB e o PDT, ao serem fundados, se propunham enfrentar e derrotar.

Esperava-se que o efeito Lula viesse a demonstrar que, através do fortalecimento progressivo dos movimentos populares, seria possível conquistar parcelas de poder. E novos paradigmas seriam introduzidos na esfera de governo. Se isso significasse a superação paulatina das políticas neoliberais, e a melhoria da qualidade de vida da população, representaria um avanço. Caso contrário, não haveria como não dar razão ao profetismo político de Robert Michels que, em 1911, em seu clássico Os partidos políticos, defende a tese, até agora confirmada pela história, de que todo partido de esquerda que insiste em disputar espaço na institucionalidade burguesa termina por ser cooptado por ela, em vez de transformá-la.

Lula teve, nos primeiros meses de seu governo, poder suficiente para promover a reforma agrária e a auditoria da dívida pública. Não soube aproveitá-lo. Há momentos em que o poder está com o povo (caso da mobilização que derrubou o governo Collor, em 1992); outros, com o governo; e outros com o capital financeiro ou com algum setor nacional ou internacional. A correlação de forças determina quem, num dado momento, detém o poder.

Lula comprovou ser possível inserir-se numa estrutura viciada - a sindical - sem se deixar cooptar por ela. Haveria de lograr o mesmo no governo? Não o conseguiu. A máquina do Estado, azeitada pelos interesses das elites, refreou-lhe idéias e aspirações. Atucanada, a política econômica impôs-se como prioridade das prioridades, sem reflexos significativos na área social, em que pese a redução da miséria através do Bolsa Família.

Como sindicalista, Lula não esperou que os trabalhadores freqüentassem a sede do sindicato. Fez o sindicato deixar a sede para ir ao encontro dos trabalhadores na porta e no interior das fábricas. Como estadista, não conseguiu repetir o gesto. Portanto, não implementou, como sonhava o PT, uma política de empoderamento popular, através da mobilização permanente dos setores organizados da sociedade civil.

Para Robert Michels, um partido de esquerda sobrevive legalmente na democracia burguesa abdicando de seu programa socialista e compactuando com a ordem vigente. Contudo, a probabilidade disso ocorrer só se conhece quando o partido chega ao governo. Enquanto permanece minoritário, destituído de poder institucional, todo o seu discurso de esquerda não passa de palavra vazia para os partidos que governam. O perigo surge quando ele surpreende e, devido a circunstâncias que escapam às previsões e manobras da elite, sai vitorioso nas eleições. Sim, o povo em sua sabedoria tem o direito de se dar uma chance, ao menos pela lógica da exclusão. Vota na oposição, não necessariamente convencido de que é melhor, mas cansado da mesmice.

Para chegar a ser vitorioso no atual regime democrático-burguês há forças políticas de esquerda que, tendo abandonado o trabalho de organização popular, estão convencidas de que é preciso aceitar as regras do jogo. A primeira é depender do dinheiro de quem o possui, o que não é o caso dos desempregados, dos operários, dos trabalhadores em geral. Dinheiro em eleição significa investimento; ninguém investe para perder. Todo investimento supõe a possibilidade de ganhos, lucros. Há que contar com meios de comunicação, que não se reduzem a panfletos impressos em gráficas de fundo de quintal, nem a comícios em que a sucessão de discursos repetitivos aborrece o público, exceto a militância que ali se junta para fazer eco e marola frente ao que é proferido.

O bom uso dos meios de comunicação depende, por sua vez, de marqueteiros, que detêm os segredos de sedução do eleitor. Como não são políticos, e em geral nem gostam de política, aplicam aos candidatos a mesma receita do sucesso de venda de produtos que anunciam. Assim, a dependência do dinheiro da elite, da mídia das grandes corporações e do marketing das agências de publicidade, resultam na progressiva descaracterização das campanhas eleitorais que, no caso dos partidos de esquerda, significa o abandono da proposta socialista e a progressiva desideologização de seu discurso e de suas propostas.

Há uma diferença radical entre esquerda e direita: esta age motivada por interesses, sobretudo de aumento da riqueza concentrada em suas mãos; aquela age (ou deveria agir) por princípios, centrada no direito à vida da maioria da população. É muito raro um político de direita apoiar reformas direcionadas a diminuir a desigualdade social, reduzindo a renda dos mais ricos para permitir mais acesso dos pobres à riqueza nacional. Se acontece, é por força de pressões da conjuntura.

Qual seria a solução? Primeiro, resgatar o "trabalho de base", de educação política dos militantes de movimentos sociais, de fortalecimento de suas organizações e entidades. A isso seria preciso somar a reforma política, introduzindo o financiamento público das campanhas eleitorais. Evitar-se-ia que os mais endinheirados tivessem sempre maiores chances de ser eleitos. Mas enquanto essa proposta não ganha força de lei, os partidos deveriam ser obrigados a divulgar os gastos de campanha de cada um de seus candidatos, bem como explicitar as fontes financiadoras. E caberia à Justiça Eleitoral exigir prestação de contas e a quebra do sigilo bancário dos eleitos. Afinal, estamos falando de res publica, esfera na qual toda clandestinidade é suspeita, excetuando os serviços de informação do Estado.

A reforma política, se mantido o financiamento de campanhas eleitorais pela iniciativa privada, deveria criminalizar o uso de caixa dois. Toda contribuição viria da contabilidade formal, sujeita à auditoria da Justiça Eleitoral e da Receita Federal.

A pasteurização eleitoral da esquerda corre o risco de prolongar-se no exercício do poder. Se a mulher de César deve ser honesta e também parecer honesta, o político que se deixa maquiar para efeitos eleitorais periga preocupar-se mais em parecer eficiente do que em sê-lo. Governa de olho nas pesquisas de opinião, abdica de seus compromissos de campanha para submeter-se à síndrome do eleitoralismo. Conservar-se no poder passa a ser a sua obsessão, e não a preocupação de administrar para imprimir melhoria nas condições de vida da maioria da população. Essa desideologização tende a reduzir a política à arte de acomodar interesses. Perdem-se a perspectiva estratégica e o horizonte histórico; já não se busca um "outro mundo possível", agora tudo se reduz a cultivar uma boa imagem junto à opinião pública. Aos poucos a militância fenece, dando lugar aos que atuam por contrato de trabalho, gente desprovida daquele entusiasmo que imprimia idealismo às campanhas. A mobilização é suplantada pela profissionalização.

A política sempre foi um fator de educação cidadã. Esvaziada de conteúdo ideológico, como consistência de idéias, transforma-se em mero negócio de acesso ao poder. Elege-se quem tem mais visibilidade pública, ainda que desprovido de ética, princípios e projetos. É a vitória do mercado sobre os valores humanitários. No lugar de Liberdade, Igualdade e Fraternidade entram a visibilidade, o poder de sedução e os amplos recursos de campanha. É a predominância do marketing sobre os princípios. E, como todos sabem, o segredo do marketing não é vender produtos, e sim ilusões com as quais os embala, pois nutrem a mente de fantasias, embora não encham barriga; ao contrário, alimentam a revolta dos excluídos que, atraídos pela fantasia, cobram a realidade à sua maneira, o que é pior para todos nós... A menos que o que resta da esquerda - movimentos sociais como o MST, o incipiente PSOL e alguns setores do PT e do PCdoB - se empenhe em mergulhar no mundo dos excluídos para ajudá-los a dar consistência política às suas demandas e aspirações, e que conquiste uma reforma política capaz de depurar e aprimorar o nosso processo democrático.

Fonte: ADITAL

sábado, 27 de dezembro de 2008

Sociólogo Léo Lince

Esquina da história

O ano da graça de 2008 se despede sem deixar saudades. Ele entrará para o calendário da história como marco inicial da grande crise do capitalismo globalizado. Foi o ano em que a crise chegou e, para espanto geral, ninguém se arrisca a fazer previsões. Até mesmo os estudiosos melhor aparatados para observar tal tipo de fenômeno se mostram desnorteados na turbulência generalizada. O tamanho, a duração e a profundidade da crise permanecem no terreno do indecifrável. Ninguém sabe de nada.

O pano de fundo sobre o qual se projeta, em termos comparativos, o potencial de destruição do abalo atual é a Grande Depressão de 29-33. George Soros, que conhece por dentro a roleta do cassino e também especula sobre os rumos da história, tem insistido sobre a virulência comum aos dois períodos. Agora, como naquela ocasião e ao contrário de surtos anteriores, o epicentro do terremoto se localiza no cerne e não mais na periferia do sistema capitalista. Vértice e principal beneficiário dos anos dourados do pós-guerra, o império americano vive dias de Pompéia.

A "bolha" que estourou no mercado imobiliário era apenas a espoleta. Na seqüência, a fidúcia do papelório desabou como castelo de cartas. As tentativas de contornar o problema como se ele fora um pequeno desacerto no escaninho da regulação financeira se destinaram ao fracasso imediato. A montanha de papéis podres, derivativos tóxicos e alavancas derretidas, bombas de efeito retardado espalhadas nos quatro cantos do mundo pela globalização financeira, desabou do centro para a periferia. Sufoca e soterra a atividade econômica em todos os quadrantes. O capitalismo ensandecido pela especulação desenfreada se revela como um "desvalor" universal.

O protocolo usado habitualmente para o tratamento das crises cíclicas não está dando resultado. A quantia bestial de dinheiro lançado na roleta financeira pelos Bancos Centrais mais poderosos do mundo desaparece como gotas de água no deserto tórrido. As "estatizações" para socializar prejuízos não dão conta do tamanho do buraco. A patente ineficácia do protocolo habitual aponta para um fato cada vez mais evidente: o ineditismo da crise atual. O receituário neoliberal, ao produzir a supremacia absoluta da casta financeira, redefiniu a morfologia e natureza do sistema inteiro. O "horror econômico" que destrói direitos no mundo do trabalho, o padrão predatório que coloca em risco o equilíbrio da natureza e a própria vida sobre a terra são elementos da crise que evidenciam os limites do capitalismo.

A idéia falsa de que a economia brasileira estaria "descolada" da crise durou pouco. A turbulência chegou galopante e, como a casta financeira está blindada pelo governo que lhe presta serviços, se instalou direto na economia real. E, com isso, 2008 se encerra enredado pela brutal reversão de expectativas. Sem que houvesse qualquer calamidade local, passamos do paraíso ao inferno sem baldeação no purgatório. Saem de cena: a comemoração basbaque do investment grade, a euforia com a alternativa energética dos biocombustíveis, a projeção de ganhos com o pré-sal miraculoso. No lugar, como num passe de mágica, entram: PDV, férias coletivas, demissões em massa. Não adiantam as reservas volumosas, "fundamentos" de acordo com o prescrito pela ordem dominante e outras "tecnicalidades": mantido o modelo vigente, a vulnerabilidade é total. E nos arrasta para o olho do furacão.

Existem períodos na história da humanidade em que o acumulado de fatos aparentemente desconexos, na economia, na política e na cultura, aponta para mudanças bruscas e profundas. A ordem mundial sofre os abalos da crise do capitalismo globalizado. A dinâmica dos conflitos sociais se destina a produzir uma conjuntura inteiramente nova. O rumo dos acontecimentos segue indefinido, mas já se sabe que nada será como antes, amanhã. Tudo indica que, a partir de 2008, passamos a viver em período de tal tipo, conhecido desde tempos imemoriais como esquina da história.

Fonte: Correio da Cidadania

Professor Ricardo Carneiro (UNICAMP)






No contexto atual, só o sistema público pode expandir o crédito


Diante de uma crise sistêmica que atinge a essência do capitalismo financeirizado, ou seja, as instituições e mecanismos de geração de riqueza fictícia, e cuja intensidade e alcance começa apenas a se delinear, a pergunta é evidente: o que fazer? Há uma dupla resposta à questão: a primeira, de ordem mais geral, deve se ater às possibilidades de reformar esse tipo de capitalismo, incluindo aí a redefinição das relações internacionais. A segunda, de caráter específico, precisa discutir as possibilidades do Brasil em minimizar os impactos dessa crise global e, até mesmo, buscar transformá-los em novas oportunidades. O foco desse artigo é na segunda questão.

Há várias batalhas a serem travadas para minimizar os efeitos da crise e redirecionar a economia brasileira para um novo padrão de crescimento. Das questões imediatas, o crédito, a taxa de câmbio e o gasto público assumem importância crucial. Como questões prementes mas com impactos num horizonte mais longo há que se discutir as novas frentes de expansão da economia brasileira e associadas a ela, duas dimensões essenciais: como lidar com a restrição externa e qual o papel do Estado no novo modelo.

Um dos fatores mais danosos à economia brasileira tem sido a parada súbita do crédito. Movidos por uma exacerbada preferência pela liquidez os bancos travaram o crédito e pouco adiantaram as medidas de injeção de dinheiro pro meio da redução dos compulsórios, permitida pelo Banco Central. Uma parcela expressiva dessa liquidez injetada na economia empoçou nas operações de tesouraria.

Reconstituir o fluxo de empréstimos bancários é essencial para evitar que o consumo, o investimento e o comércio exterior continuem a se contrair. Se o Governo foi derrotado na primeira batalha, pode não perder a segunda. No contexto atual a única maneira de expandir o crédito é fazê-lo pelo sistema público. Isto induzirá o sistema privado, num segundo momento, a fazer o mesmo, sob pena de perder de maneira permanente, parte do mercado. Fica por resolver a política monetária propriamente dita: a redução rápida e substancial da taxa básica de juros seria outro requisito essencial para a expansão do crédito.

No front cambial, o Governo tem agido de forma importante mas insuficiente. Prover o sistema com liquidez, em dólares, usando para isto as reservas internacionais, ou vender swaps cambiais, é necessário para financiar o comércio exterior, refinanciar temporariamente as empresas endividadas e vender proteção conta a variação do dólar, mas não restringe a atividade especulativa. O Brasil tem hoje cerca de US$ 200 bilhões em reservas que bem utilizadas poderiam promover uma relativa estabilidade na taxa de câmbio. Mas por que isto não está ocorrendo? Por conta da especulação no mercado de derivativos. Logo, é preciso intervir decididamente nesses mercados.

Uma vez recomposto o crédito, e obstaculizada a especulação cambial, a política econômica teria de se preocupar com a inevitável contração do gasto privado criando, por meio do gasto público, um mecanismo compensatório a essa redução. O maior problema aqui reside na assincronia: rápido declínio das despesas privadas ante a lenta ampliação das despesas públicas. O Governo tem, contudo, nessa área, um trunfo importante. Já está autorizado para Maio de 2009 um aumento do salário mínimo da ordem de 12%. Sua antecipação para Janeiro ampliaria rapidamente as transferências do setor público para o privado e exatamente para os setores da população mais desfavorecidos aquecendo o consumo e ampliando a proteção social.

Fonte: Carta Maior


Entrevista - Conceição Tavares


Em entrevista à Carta Maior, a economista Maria da Conceição Tavares diz que o Brasil não pode mais contar com o BC. "A partir de agora, o Banco Central tornou-se uma peça menor no xadrez econômico". Para ela, a grande batalha de 2009 é fortalecer o emprego e o poder aquisitivo do povo. Ao falar sobre 2010, manifesta apoio a Dilma Roussef e diz que ela mais consistente do que José Serra. E lança um desafio ao PT: "o partido precisa submeter seus projetos e ideais à nova realidade mundial.
Fonte: Carta Maior


O consenso nacional para derrubar a taxa de juro, unanimidade que agora arregimenta até conservadores de carteirinha, chegou tarde demais, na opinião da economista Maria da Conceição Tavares. Ela acredita que o BC irá fazê-lo em gotas de sereno, a partir de janeiro de 2009, quando esse simbolismo já não terá mais capacidade de reverter a dinâmica deflagrada pela crise.

Expectativas pessimistas e revisões em planos de investimento puseram-se em marcha ao longo da omissão persistente da política monetária comandada por Henrique Meirelles nos últimos anos. A ortodoxia encastelada no BC fez a sua escolha. E a cumpriu com fidelidade. “O Brasil não pode mais contar com o BC”, diz Conceição. Seus membros prestaram um desserviço ao país para servir ao rentismo, que os ancora e protege.

“A partir de agora, o Banco Central tornou-se uma peça menor no xadrez econômico”, resume e prossegue calmamente. “Reduziu-se a um estorvo apenas; uma irrelevância diante dos fatos, das urgências e das possibilidades que se colocam para a economia e o governo. Essa gente já não consegue mais sequer me provocar indignação, apenas cansaço”.

O tom sereno do diagnóstico não é usual, por isso mesmo soa mais forte que pancada. Vindo de quem vem, não poderia haver manifesto de desprezo mais contundente a uma esfera de governo que se fez obsoleta para os interesses do país. A professora, como Maria da Conceição é tratada carinhosamente pelos seus admiradores, discípulos e ex-alunos, e até por adversários, não costuma poupar decibéis na defesa de idéias sempre vigorosas. Que o faça agora em tom plano é um sintoma eloqüente do menosprezo que atribui à instituição e à política monetária nas questões decisivas dos próximos meses.

A grande batalha que mobiliza a professora nesse momento, tão difícil quanto foi a do juro, envolve uma conseqüência que faz enorme diferença: perder desta vez seria definitivamente fatal. Evitar esse desfecho é o propósito que devolve a determinação costumeira à sua voz. “Fortalecer o emprego e o poder aquisitivo do povo; em torno disso acontecerá a batalha decisiva para vencermos ou não a travessia de 2009”. É assim que ela define o que está em jogo na economia e na política de agora em diante. “Portanto, meu Deus”, e aqui está de volta a oratória envolvente da decana dos economistas brasileiros, “os que falam em cortar gasto de custeio que me perdoem, não sabem do que estão falando. Política social também é custeio. E se não é tudo, talvez seja o único grande trunfo que o governo controla, a partir do qual poderá agir com eficácia e rapidez diante da crise”.

Gastar mais na esfera social, no seu entender, é a injeção de adrenalina capaz de preservar a atividade, o emprego e o poder aquisitivo; ao menos naquele pedaço do Brasil que escapou da linha da pobreza durante o governo Lula e hoje agiganta o mercado interno, proporcionando ao país uma variável que o distingue na resistência ao colapso econômico mundial. Sim, isso poderia incluir até a antecipação de reajuste do salário mínimo, “como propõe o Carneiro”, diz Conceição (NR: economista Ricardo Carneiro, leia artigo nesta página). “Mas veja bem, estamos diante de uma questão política, não uma unanimidade tardia como parece ser a do juro hoje. Ampliar a despesa social é o que pensamos nós, economistas heterodoxos, assim como dizíamos há meses – anos - que era preciso baixar os juros. Mas por enquanto não há consenso sobre isso; talvez nem dentro do próprio governo. É uma corrida contra o tempo, motivo pelo qual insisto: o gasto de custeio social é a nossa chance de defender o país contra o desemprego e a recessão. Mesmo assim serão tempos difíceis”.

Não se trata apenas de vencer um percurso econômico. Conceição antevê nessa travessia a prefiguração do teste eleitoral a que será submetido um projeto que ela ajudou a construir nos últimos anos. Na verdade desde antes quando, jovem ainda, iniciou-se no BNDES e elegeu Celso Furtado e o projeto de desenvolvimento nacional como bússola histórica de sua vida e de sua profissão.

A professora Maria da Conceição é amiga de longa data da ministra Dilma Roussef, possível candidata do PT à sucessão do Presidente Lula. Conceição também já foi próxima de José Serra, candidato declarado da oposição no embate sucessório de 2010. Mas Conceição não tem dúvida de que lado estará então. “Serra não é um neoliberal; é bom que se diga e que não se confunda”, antecipa em tom sério. “Conheço ambos. A diferença entre Dilma e o Serra é que a visão da Dilma é mais consistente do ponto de vista histórico. Dilma escolheu o lado que pode apoiar um projeto de desenvolvimento para o Brasil no século XXI. E isso faz toda diferença. Entre o desenvolvimentismo de boca, do Serra, e o projeto ao qual Dilma pertence, eu não tenho dúvida de que lado fica a consistência histórica. E arremata: “Sim, Serra se opunha ao Malan no governo FHC. Mas Serra não se opôs às privatizações nem à política fiscal, concebida por gente da sua influência. Dilma é mais consistente. E não se trata apenas de superioridade no manejo econômico. Sua visão da economia tem uma contrapartida social coerente; e uma contrapartida de democracia consistente”.

Com um sorriso de entusiasmo, a professora comemora a notícia de que o PT , junto com a Fundação Perseu Abramo, criará uma Escola de Formação Política. “A agenda neoliberal contaminou toda sociedade; claro, também alcançou esferas do partido”, explica. “A crise econômica coloca esse pensamento em xeque e abre espaço para o PT retomar seu programa dos anos 94 e 98. Era um bom programa de reformas para o Brasil”, comenta, mas sem saudosismo - “perdemos com um bom programa, sempre é bom lembrar“. E aconselha como se fosse ao mesmo tempo cronista eqüidistante e personagem do mesmo enredo: “O PT precisa submeter seus projetos e ideais à nova realidade mundial. Isso requer estudo e reflexão. Essa crise não é como a de 30. É uma crise de paradigma, inclusive de paradigma industrial, o que não ocorreu em 30. É muito sério. Portanto, é hora de refletir, esclarecer, debater. O partido deve fazer isso sem perder a serenidade”, pontua preocupada: “Existe o horizonte político amplo, mas uma proposta de governo tem que oferecer respostas condicionadas às circunstâncias do país, agravadas pela crise mundial”

A seguir, trechos da entrevista de Maria da Conceição Tavares à Carta Maior

I)Controlar a conta de capitais com um BC desse tipo?Acho difícil.
A inflação está caindo, desaba em todo o planeta e aqui? Aqui eles mantém o juro no céu, a 13,75%. Para quê? Para atrair dólares? Para evitar fuga de capitais ? Mudou a conjuntura mundial, não existe mais liquidez internacional para ser atraída. Essa política é anômala: não vai atrair um dólar furado com essa taxa. Tampouco impedirá a fuga em busca de segurança. O que pode impedir esses movimentos de capitais é a taxa de juro zero decidida pelo Fed. Vamos torcer que seja assim. Mesmo porque, não vejo como controlar a conta de capitais num país que não controlou nem operações especulativas com derivativos. E elas foram feitas aqui, sim senhor; não foram contratadas apenas nos paraísos fiscais. Estavam aí à vista de todos, a começar do BC, e nada se fez. A verdade é que fizemos na área financeira uma abertura mais radical do que em qualquer outra. Talvez o Estado brasileiro não disponha no momento nem de mecanismos, nem de pessoal, e menos ainda de uma lógica de estado para controlar o movimento de capitais.

II) O Banco Central brasileiro virou um caso psicanalítico internacional
Os membros do Copom agem por necessidade de auto-afirmação, dizem seus defensores. Mas e o país? Temos um BC que se tornou um caso psicanalítico internacional... A intransigência tornou-o irrelevante para o país, essa é a verdade; e isso é uma marca grave. O BC brasileiro é um ponto fora da curva mundial. Um estorvo; uma peça menor no esforço do governo para defender o país contra a recessão. Simplesmente, não se pode mais contar com essa gente para nada. Na verdade, eu já não esperava nada desse grupo de interesses. Hoje, quando eles falam nem indignada eu fico; me dá cansaço.

III) A ortodoxia e o tamanho da crise apequenaram o BC
A turma do BC deixou a coisa passar a tal ponto que agora temos um paradoxo: a maior taxa de juros do planeta e, quando fizerem os cortes, será tarde demais. Nada do que possam fazer em gotas simbólicas, a partir de janeiro, terá importância na ordem do dia para enfrentar a crise. O governo não deve esperar mais nada daí. O BC ficou desimportante. As expectativas já foram formadas. Os interesses se aferram a sua lógica. Veja o caso da Vale do Rio Doce; uma empresa que está nadando em dinheiro e vem o Agnelli demitir e falar em exceção trabalhista! A rigidez monetária jogou lenha nessas distorções e agora não serve mais para nada. O governo precisa olhar para frente e esquecer o BC.

IV) Governo deve agir seletivamente e administrar o mercado de câmbio e crédito
O fato grave é que as taxas de juros estão subindo na ponta; o crédito continua caro e curto. Há uma pressão danada pela rolagem de dívidas contraídas por empresas dentro e fora do país. Isso ainda não está resolvido. E é sério. Para a rolagem externa teremos que tomar medidas adicionais em 2009. Não tenho a certeza de que a linha de US$ 30 bi criada pelo FED para países como Brasil e Coréia será suficiente. Talvez precisemos de mais, mesmo tendo o governo destinado também US$ 20 bi das reservas para essa finalidade.

Para o crédito interno não adianta mais liberar compulsório (percentual dos depósitos recolhidos obrigatoriamente pelos bancos no BC). Você libera, a banca privada não repassa; não chega na ponta e o custo do financiamento ainda aumenta. O governo deve agir direto, cada vez mais. Setor por setor, caso a caso. O Estado deve alocar recurso onde for mais relevante e administrar o mercado de crédito no piloto manual. É o que temos feito na área da construção civil e no mercado automobilístico. Deve-se aprofundar a ação estatal nessa direção. Não haverá normalidade de crédito via mercado; esqueçam o que diz o Meirelles e o BC. Não têm mais nenhuma importância.

V) Cortar o juro agora serve para reduzir custo da dívida interna; pode liberar fôlego fiscal para investimento público
Para ter algum sentido, o BC teria que derrubar a taxa de juro em pelo menos um ponto em janeiro, mas o farão de forma desprezível, em 0,25 ponto. Não falo para a atividade econômica, mas para reduzir a pressão fiscal no pagamento de juros da dívida pública. Isso permitiria liberar fôlego para a despesa social do governo. Esse é o ponto decisivo agora: agir na frente do emprego e do gasto social. A política do BC não fará mais nada pelo país. Por caminhos opostos, atingimos o mesmo esgotamento da ferramenta monetária que se verifica agora nos EUA; aqui, por fidelidade dos membros do BC aos interesses que representam, em detrimento dos interesses do país. Eles fizeram uma escolha e foram fiéis a ela até o fim. Absoluta disciplina. Infelizmente a escolha não foi o país, mas o mercado, de onde vieram e para onde voltarão.

VI)Custeio do Estado não é gasto com lápis e borracha; é gasto com gente, gasto social que tirou milhões da pobreza nos últimos anos
O fato é que a alavanca monetária chegou a um ponto de irrelevância. É hora da política fiscal: quem fala em corte de custeio nesse momento que me perdoe, fala sem saber do que está falando. Estão esquecendo: despesa social também é custeio. É o espaço que temos para defender o país, o emprego e a demanda interna. Os grandes projetos do PAC são importantes; os projetos privados associados a exportação de commodities também são de grande envergadura. Não vão parar porque são planos de longo prazo. Mas geram pouco emprego. Terão efeito reduzido na dinâmica do mercado interno. O que faz a diferença e está ao alcance do governo é o gasto de custeio do Estado. Claro, não falo de aumentar salários de assessorias etc. Gasto de custeio não é lápis e borracha; é principalmente gasto social. Esse tem que aumentar e aumentar urgente.

Naturalmente, em torno disso não existe o consenso que se vê agora, esse consenso tardio pelo corte dos juros. Ampliar o gasto de custeio, na esfera social, é algo que os economista heterodoxos defendem; mas o mercado não. Talvez nem mesmo dentro do governo exista clareza sobre isso. Sim, é preciso agir com os instrumentos disponíveis; até antecipar o reajuste do salário mínimo, se for o caso, como diz o Carneiro (NR: Ricardo Carneiro, economista da Unicamp). E fazê-lo não só na esfera federal, mas também nos Estados e municípios. Um mutirão público pelo gasto social, contra a recessão.

VII) O PT deve se preparar; se é certo que vai criar uma Escola de Formação Política chega em boa hora; a crise exige renovação
O partido deve se preparar para entender a dimensão da crise e agir sobre ela. Estamos diante de algo distinto de tudo o que se viu até hoje em termos de crise capitalista. Só é igual a de 30 na gravidade; e pode ser pior. Em 30 não tivemos uma ruptura de paradigma, exceto para romper o padrão ouro. Mas a indústria era fordista e continuou fordista, durante e depois da crise. Agora, parece que o padrão industrial se esgotou. Pior: ao contrário do mundo que emergiu após 30, não se vê uma força ordenadora capaz de injetar coerência na economia mundial. Ninguém sabe para onde vão os EUA; nem eles. Significa que a desordem pode demorar muito tempo.

Se o PT, finalmente, criará uma Escola de Formação Política, só tenho a comemorar. Chega em boa hora. O fato é que o colapso da agenda neoliberal tem que ser profundamente discutido. E isso tem a ver com o PT também. Essa agenda penetrou as entranhas de toda sociedade e o partido não foi poupado. Vide a posição que se esboçou em relação à Previdência Social, por exemplo; e mesmo em relação à dita autonomia do BC. Pallocci diz que está fora se o PT continuar criticando o Banco Central? É um favor que ele nos faz.

VIII) Quando me aproximei do PT em 1989 achavam que eu era reformista; hoje estou à esquerda
O PT já teve uma agenda consistente de reformas, aquela de 94 e 98; trata-se de retomá-la; submetê-la aos desafios da atual crise e abrir um ciclo de debates e de esclarecimento dentro do partido com dois horizontes: o de longo prazo, na análise desse colapso e do colapso do ideário neoliberal no mundo. Mas no curto prazo é preciso avaliar o que é possível e necessário para defender o país da desordem internacional. Não se pode confundir os dois tempos, ou daqui a pouco tem gente querendo reduzir jornada de trabalho e manter salário. É bonito. Mas vai acontecer? Não. Então não dá para jogar o partido em coisas desse tipo. É preciso ter respostas de curto e longo prazo.

É uma agenda para um debate interno. Fico feliz que o partido, finalmente, se abra a isso. Quando entrei no PT em 1989 muitos me olhavam com reticência; achavam que eu era uma reformista conservadora. Hoje dizem que estou à esquerda, mas eu não saí do meu lugar. É uma boa hora para resgatar a vida intelectual dentro do partido.

IX) Dilma tem uma visão histórica mais consistente que a do Serra
Estou otimista com a chance da Dilma ocupar a Presidência da República. Sim, já fui muito ligada ao Serra; conheço ambos. A diferença entre o desenvolvimentismo da Dilma e o do Serra é que a visão histórica e política da Dilma é mais consistente. O Serra, diga-se, não é um neoliberal; e isso é bom porque vai elevar o debate eleitoral em 2010. Mas o desenvolvimentismo do Serra é um desenvolvimentismo de boca. Ele se opunha ao Malan, é verdade (no governo FHC). Mas nunca se opôs às privatizações nem à política fiscal ortodoxa, concebida por gente da sua influência. É muito diferente da Dilma. De qualquer forma, fico feliz que a luta seja entre os dois. O país vai ganhar com isso. A sociedade entenderá as diferenças entre projetos que têm nomes parecidos, como desenvolvimento, mas que envolvem forças e concepções distintas, especialmente na sua dimensão social e na sua correspondência democrática. É aí que está a força da Dilma.

Será mais fácil negociar um projeto nacional de desenvolvimento tendo Serra e Dilma no embate. Melhor do que ter uma sociedade rachada entre um neoliberal de direita e um candidato nosso, de centro esquerda. Ontem, como hoje, e amanhã também, teremos que negociar um projeto nacional. Duas candidaturas que ao menos falem uma língua próxima facilitará a compreensão dos brasileiros; ajudará a somar forças.

É mais uma razão para o PT se preparar e definir, afinal, qual é o desenvolvimento que defende. O resultado de 2010 dependerá de tudo isso. Mas, sobretudo, vai depender da nossa capacidade de atravessar com sucesso 2009. Espero que seja um bom ano. Para todos nós. E para o bem do Brasil.

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