terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Entrevista - Álvaro Bianchi

Álvaro Bianchi é Professor do Departamento de Ciência Política/UNICAMP, doutor em Ciências Sociais/UNICAMP, diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) e secretário de redação da revista Outubro. Esta entrevista se encontra na edição 278 da Revista do Instituto Humanitas Unisinos - A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. Fonte: UNISINOS






IHU On-Line - O que Marx entendia por “economia política vulgar”? Como ela contribui para chegarmos à crise atual?


Álvaro Bianchi - Marx tinha em grande conta a economia política clássica e considerava a obra de David Ricardo o ápice da ciência econômica de sua época. Mas, na medida em que o conflito social tornou-se mais intenso, a ciência econômica deixou de ter como objetivo a investigação das contradições sociais e transformou-se em uma apologética. Marx chamava essa ciência econômica pós-ricardiana de “economia vulgar”. A principal característica da economia vulgar é que ela insiste em fixar-se nas formas de manifestação da mais-valia e da produção capitalista, ao invés de analisar a verdadeira natureza destas. Desse modo, se, no capital produtor de juros, que é a forma do capital financeiro, este aparece (e destaco a palavra aparece) como fonte independente de valor, os economistas vulgares tomavam essa aparência como sua essência. Este erro, que já havia sido denunciado por Marx em seus escritos do começo dos anos 1860, pode ajudar a explicar a crise atual.

IHU On-Line - Quais as principais transformações que o capitalismo neoliberal provocou na estrutura de classes da sociedade brasileira?

Álvaro Bianchi - Nos últimos vinte anos, tiveram lugar profundas transformações na estrutura de classes de nossa sociedade. Tais mudanças não atingiram apenas os trabalhadores como também a composição da burguesia. Comecemos por esta última. Nas décadas de 1980 e 1990, teve lugar uma recomposição profunda da economia nacional que reconfigurou a burguesia. A indústria nacional, que ganhou força nas décadas anteriores, foi fortemente internacionalizada. Fusões e aquisições tiveram lugar e indústrias que simbolizavam o período anterior – por exemplo, Metal Leve, Cofap e Cobrasma – simplesmente deixaram de existir, dando lugar a empresas multinacionais em alguns casos. Ao mesmo tempo, os setores da indústria mais fortemente vinculados ao mercado internacional ganharam espaço. Houve, também, uma enorme expansão do setor financeiro e um importante crescimento da agricultura e da pecuária vinculadas à exportação. Tudo isso mudou profundamente a cara da burguesia brasileira. Se antes era difícil falar de uma burguesia nacional, agora é uma completa impropriedade.

Do lado da classe trabalhadora, ocorreu uma intensa desregulamentação e precarização do mercado de força de trabalho com processos de terceirização, externalização, deslocalização, fragmentação, trabalho temporário ou eventual. A relação salarial “canônica”, isto é, portadora de direitos sociais, tornou-se uma exceção à regra da “contratualização”, ou seja, da multiplicação das formas contratuais. A força de trabalho em alguns setores da indústria, como a metalúrgica, diminuiu. Na verdade, durante o governo FHC, a indústria brasileira perdeu mais de dois milhões de postos de trabalho. Alguns mais apressados chegaram até mesmo a falar do fim do proletariado. Trata-se, a meu ver, de um grande equívoco. Mas também é errado dizer que nada mudou. A classe trabalhadora assumiu novas formas e cresceu numericamente em setores como o de serviços.

IHU On-Line - Em que sentido Marx pode ser visto como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista?

Álvaro Bianchi - Em 2005, Colin Graham, da Merrill Lynch Investment Management, aconselhou investidores que ouviam sua palestra a terem cautela com os hedge funds e contou que, quando havia começado a trabalhar na empresa, durante a crise nas bolsas de outubro de 1997, seu chefe saiu correndo e comprou O capital, de Marx, para compreender o que ocorreria quando o capitalismo ruísse. A obra de Marx, e principalmente O capital, tem por objeto as contradições da sociedade capitalista e os limites postos ao capitalismo por essas contradições. São estas contradições econômicas, sociais e políticas as que provocam suas crises. Uma compreensão apurada dessas contradições permitiria um conhecimento mais aprofundado do desenvolvimento capitalista. Mas a esse respeito é necessário um esclarecimento. Marx nunca achou que o capitalismo encontraria calma e pacificamente seu fim dando lugar a uma forma de sociabilidade que conseguisse expurgar as crises. Mas as recorrentes crises do capitalismo revelam as tendências autodestrutivas do próprio capitalismo. A escala dessa autodestruição não pode ser subestimada. O retorno de formas pré-capitalistas de trabalho, como o trabalho escravo nas zonas agrícolas extrativistas, ou formas degradadas de salário, com a remuneração por peça na moderna indústria, o aquecimento global e a invasão do Iraque são algumas manifestações dessa autodestruição.

IHU On-Line - Por que hoje muitos retomam Marx como o centro das atenções no debate sobre a crise financeira internacional?

Álvaro Bianchi - É como o romance de García Márquez: a crise financeira é a crônica de uma morte anunciada. Como disse, a obra de Marx é uma investigação sobre as contradições e os limites do capitalismo. Com base nessa obra, os marxistas insistiram muito nas últimas décadas que a liberalização e desregulamentação das finanças, do comércio e da força de trabalho tinham por objetivo superar os entraves à acumulação do capital que tinham levado ao esgotamento o modelo econômico do pós-guerra, assentado nos acordos de Breton Woods. Acontece que, enquanto as contradições imanentes ao sistema não forem superadas, os limites ao desenvolvimento da economia capitalista também não o serão definitivamente. Eles reaparecem logo à frente ainda maiores, mais perigosos e mais difíceis de transpor. Tomemos o caso que está sendo discutido agora.

A partir do final dos anos 1960, começou a ficar claro que o capitalismo enfrentava uma grave crise de superprodução. Um dos meios de superar essa crise foi incentivar fortemente o consumo mediante uma expansão do capital fictício (ações, títulos da dívida, derivativos etc.) e do crédito. Isso permitiu contornar os obstáculos à acumulação, mas, como estamos vendo agora, os novos obstáculos se revelaram ainda maiores. Aparentemente, o capital financeiro havia se tornado independente do processo de produção de novos valores. Para Marx, assim como para David Ricardo, era mais fácil encontrar no trabalho o fundamento do valor. Hoje, a expansão dos mercados financeiros torna mais difícil encontrar essa essência por detrás da aparência e a crise contemporânea assume também a forma de uma crise da medida do valor. Os mercados são incapazes de dizer quanto os ativos realmente valem. Mas essa aparência só enganava os economistas vulgares, ou seja, aqueles que queriam ser enganados. Certamente essa aparência não enganou os leitores mais atentos de O capital.

IHU On-Line - Qual o valor que os capitalistas e liberais vêem nas teorias de Marx? Como entender esse paradoxo?

Alvaro Bianchi - Na verdade, a maioria deles nunca leu O capital. O juízo que costumam fazer da obra de Marx costuma ser desinformado ou baseado em lugares comuns. Veja-se o tal economista relatado por Colin Graham. Marx nunca disse que o capitalismo ruiria sozinho devido a suas crises econômicas. Se ele esperava encontrar isso em O capital, e se de fato o leu, deve ter ficado decepcionado. Os mais esclarecidos, é verdade, procuram na obra de Marx uma análise do desenvolvimento capitalista. Mas a teoria que podem encontrar em O capital não é uma teoria do desenvolvimento e sim uma teoria das contradições desse desenvolvimento. O paradoxo é que essas contradições não podem ser superadas sem que o próprio capitalismo seja superado. Ou seja, o único conselho que capitalistas e liberais podem encontrar em O capital é que deixem de ser capitalistas e liberais. Mas não creio que estejam dispostos a aceitá-lo.

IHU On-Line - Como relacionar o 160° aniversário da publicação do Manifesto Comunista com uma crise econômica internacional particularmente dramática, em um período de ultra-rápida globalização do livre-mercado?

Alvaro Bianchi - No Manifesto Comunista, há uma descrição com cores muito vivas do processo de afirmação e expansão do capitalismo em uma escala mundial. Muitos já disseram que Marx previu o fenômeno da globalização econômica, e isso já se tornou um daqueles lugares comuns que os liberais gostam de repetir. Na verdade, nesse texto, está explicitada a tendência à internacionalização da acumulação capitalista que se verificava já em seu próprio nascedouro, com as grandes navegações e o empreendimento colonial nas Américas. O proletariado não tem pátria, segundo o Manifesto, porque o capital também não tem. A reprodução ampliada do capital tende a transgredir fronteiras a encontrar novas frentes de expansão, a atingir os mais recônditos lugares. O que o Manifesto não disse e não poderia dizer é que essa transgressão seria levada a cabo pelo capital financeiro.

De fato, em outros textos de Marx, é possível encontrar menções à especulação financeira promovida pelos mercados acionários. Mas são poucas passagens. Há, entretanto, um tema sobre o qual devemos prestar atenção. A mundialização do capital afirmada no Manifesto é, também, a mundialização de suas crises econômicas e políticas. O ano no qual esse texto foi publicado já deu uma amostra do que estava por vir. A partir de fevereiro de 1848, uma onda de revoluções propagou-se pelo continente europeu com uma velocidade superior a dos meios de comunicação. Essas revoluções foram precedidas pela crise econômica que teve seu ápice em 1847. Embora os comunistas fossem uma pequena força política, o fantasma da revolução andou assombrando muita gente. Hoje o espectro que ronda o mundo é o da crise do capitalismo. Mas ainda é cedo para saber se ele será capaz de acordar seu parceiro, o fantasma da revolução. Tem gente que já não dorme direito pensando nisso.

IHU On-Line - Se Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, 150 anos antes, que espécie de previsões podemos fazer para nossa economia a partir da sociedade que temos hoje, baseada em valores consumistas e na autonomia?

Alvaro Bianchi - Em 1999, o ultra-liberal Alan Greenspan, o chefe todo-poderoso do Federal Reserve, anunciou em depoimento ao Congresso dos Estados Unidos, que teriam ido “para além da história”, isto é, superado as agruras dos ciclos econômicos e atingido o crescimento perpétuo. Hoje ele é acusado pelo prêmio Nobel da Economia, Paul Krugman, de ser co-responsável pela atual crise. Para evitar justamente a apologética, os marxistas são muito cuidadosos, ou deveriam sê-lo, com as previsões. A única previsão que creio possível é a de que a dinâmica de crises continuará e que os conflitos sociais se tornarão mais intensos. A teoria de Marx não permite (e não deseja) prever mais do que isso.

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