quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Manifesto ''Ética Econômica Mundial - Consequências para os Negócios Globais''

Publicamos aqui a íntegra do Manifesto "Ética Econômica Mundial – Consequências para os Negócios Globais", promovido pela Fundação Ética Mundial e publicado durante um simpósio sobre ética nos negócios na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, no dia 06 de outubro. Desenvolvido pelo teólogo suíço-alemão Hans Küng, presidente da Fundação, o documento busca apresentar “uma visão fundamental comum do que é legítimo, justo e correto” nas atividades econômicas. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS


Manifesto "Ética Econômica Mundial – Consequências para os Negócios Globais" Sede da ONU, Nova York, 06 de outubro de 2009


Preâmbulo

Para que a globalização da atividade econômica leve à prosperidade universal e sustentável, todos aqueles que fazem parte ou são afetados pelas atividades econômicas dependem de trocas e cooperação comerciais baseadas em valores. Essa é uma das lições fundamentais da crise mundial atual dos mercados financeiros e produtivos.

Além disso, as trocas e a cooperação comerciais justas apenas irão alcançar objetivos sociais sustentáveis quando as atividades das pessoas percebam que seus interesses privados legítimos e sua prosperidade estão inseridos em um marco ético global que goza de ampla aceitação. Esse acordo sobre normas globalmente aceitas para as ações e decisões econômicas – em resumo, para "uma ética do fazer negócio" – ainda está em sua primeira fase.

Uma ética econômica mundial – uma visão fundamental comum do que é legítimo, justo e correto – baseia-se nos princípios e valores morais que, há tempos imemoráveis, têm sido compartilhados por todas as culturas e têm sido sustentados pela experiência prática comum.

Cada um de nós – em nossos diversos papéis como empresários, investidores, credores, trabalhadores, consumidores e membros de diferentes grupos de interesse em todos os países – detém uma responsabilidade comum e essencial, junto com as nossas instituições políticas e organizações internacionais, de reconhecer e aplicar esse tipo de ética econômica mundial. Por essas razões, os signatários desta declaração expressam seu apoio ao seguinte Manifesto.

Manifesto por uma Ética Econômica Mundial

Nesta declaração, os princípios e valores fundamentais de uma economia mundial estão estipulados abaixo, de acordo com a Declaração sobre Ética Mundial, publicada pelo Parlamento das Religiões Mundiais, em Chicago, em 1993. Os princípios deste manifesto podem ser endossados por todos os homens e mulheres com convicções éticas, independentemente se forem religiosamente fundamentados ou não. Os signatários desta declaração comprometem-se a ser guiados por seu conteúdo e por seu espírito nas decisões, ações e comportamentos econômicos cotidianos gerais. Este Manifesto por uma Ética Econômica Mundial leva a sério as regras do mercado e da competição, com a intenção de pôr essas regras em uma base ética sólida para o bem-estar de todos.

Nada mais do que a experiência da crise atual que afeta toda a esfera econômica é o que subjaz à necessidade desses princípios éticos e padrões morais internacionalmente aceitos, aos quais todos nós temos que dar vida em nossas práticas de negócios cotidianas.

I. O princípio de humanidade

Marco ético de referência: Diferenças entre tradições culturais não devem ser um obstáculo ao engajamento na cooperação ativa pela estima, defesa e realização dos direitos humanos. Todo ser humano - sem distinção de idade, sexo, raça, cor de pele, habilidade física ou mental, língua, religião, visão política ou origem nacional ou social - possui uma inalienável e intocável dignidade. Cada um, tanto os indivíduos quanto os Estados, é, portanto, obrigado a honrar essa dignidade e protegê-la. Os seres humanos devem ser sempre os sujeitos dos direitos, devem ser fins e nunca meros meios e nunca devem ser objetos de comercialização e industrialização na economia, na política e na mídia, em institutos de pesquisa ou em corporações industriais.

O princípio fundamental de uma ética econômica mundial desejável é humanidade: O ser humano deve ser o critério ético para toda ação econômica: Isso se concretiza nos seguintes itens para o fazer negócio de uma forma que crie valor e seja orientada aos valores do bem comum.

Artigo 1

O objetivo ética de uma ação econômica sustentável, assim como o seu pré-requisito social, é a criação de um marco fundamental para a sustentabilidade, satisfazendo as necessidades básicas dos seres humanos para que possam viver em dignidade. Por essa razão, em todas as decisões econômicas o preceito mais elevado deve ser que essas ações sempre sirvam à formação e ao desenvolvimento de todos os recursos individuais e capacidades que são necessárias para um desenvolvimento humano verdadeiro dos indivíduos e para que vivam juntos em felicidade.

Artigo 2

A humanidade floresce apenas em uma cultura de respeito pelos indivíduos. A dignidade e a autoestima de todos os seres humanos - sejam eles superiores, colegas de trabalho, parceiros de negócios, clientes ou pessoas envolvidas - são invioláveis. Os seres humanos nunca podem ser maltratados, tanto por formas de agir individuais, quanto por condições comerciais ou de trabalho desonrosas. A exploração e o abuso de situações de dependência, assim como a discriminação arbitrária de pessoas são irreconciliáveis com o princípio de humanidade.

Artigo 3

Promover o bem e evitar o mal é uma obrigação de todos os seres humanos. Portanto, essa obrigação deve ser aplicada como um critério moral para todas as decisões e maneiras de agir. É legítimo buscar os seus próprios interesses, mas a busca deliberada de vantagem pessoal em detrimento do parceiro - isto é, meios antiéticos - é irreconciliável com uma atividade econômica sustentável de vantagem mútua.

Artigo 4

Não faça aos outros o que não quer que seja feito com você. Essa Regra de Ouro da reciprocidade, que, durante milhares de anos, tem sido reconhecida em todas as tradições religiosas e humanistas, promove a responsabilidade, a solidariedade, a equidade, a tolerância e o respeito mútuo entre todas as pessoas envolvidas.

Tais atitudes ou virtudes são os pilares básicos de um ethos econômico global. A equidade na competição e a cooperação para o benefício mútuo são princípios fundamentais de uma economia global sustentavelmente desenvolvida que está em conformidade com a Regra de Ouro.

II. Valores básicos para uma atividade econômica global

Os seguintes valores básicos para a realização de negócios em escala global desenvolvem ainda mais o princípio fundamental de humanidade e fazem sugestões concretas para decisões, ações e comportamento geral para a esfera prática da vida econômica.

Valores básicos: não violência e respeito pela vida

Marco ético de referência: Ser autenticamente humano no espírito de nossas grandes tradições religiosas e éticas significa que, na vida pública e na vida privada, devemos nos preocupar com os outros e estar prontos para ajudar. Todas as pessoas, todas as raças, todas as religiões devem mostrar tolerância e respeito - de fato, uma elevada apreciação - por todas as outras. As minorias - sejam elas raciais, étnicas ou religiosas - requerem proteção e apoio da maioria.

Artigo 5

Todos os seres humanos têm a obrigação de respeitar o direito à vida e seu desenvolvimento. O respeito pela vida humana é um bem particularmente nobre. Portanto, toda forma de violência ou força na busca de objetivos econômicos deve ser rejeitada. Trabalho escravo, trabalho compulsório, trabalho infantil, punições corporais e outras violações das normas internacionais reconhecidas da lei trabalhista devem ser suprimidas ou abolidas. Com grande prioridade, todos os agentes econômicos devem garantir a proteção dos direitos humanos em suas próprias organizações. Ao mesmo tempo, devem fazer todos os esforços para ver se, dentro de sua esfera de influência, não estão fazendo nada que possa contribuir com as violações dos direitos humanos por parte de seus parceiros de negócios ou outras partes envolvidas. De nenhuma forma, eles devem tirar lucro dessas violações.

A deterioração da saúde das pessoas por causa de condições de trabalho adversas deve ser impedida. A segurança ocupacional e a segurança de produção de acordo com a tecnologia atual são direitos básicos em uma cultura de não violência e de respeito à vida.

Artigo 6

O tratamento sustentável do ambiente natural por parte de todos os participantes da vida econômica é um dos mais altos valores-norma para a atividade econômica. O desperdício de recursos naturais e a poluição do meio ambiente devem ser minimizados por meio de procedimentos de conservação dos recursos e tecnologias ambientalmente amigáveis. Energia limpa sustentável (com fontes de energia renováveis tanto quanto possível), água limpa e ar limpo são condições elementares para a vida. Todo ser humano neste planeta deve ter acesso a eles.

Valores básicos: justiça e solidariedade

Marco ético de referência: Ser um autêntico ser humano significa - no espírito das grandes tradições religiosas e éticas - não fazer mau uso do poder econômico e político em uma luta implacável pela dominação. Esse poder, pelo contrário, deve ser usado ao serviço de todos os seres humanos. O interesse próprio e a competição servem para o desenvolvimento da capacidade produtiva e do bem-estar de todos os envolvidos na atividade econômica. Para isso, o respeito mútuo, a coordenação razoável de interesses e o desejo de conciliar e de mostrar consideração devem prevalecer.

A justiça e o papel da lei constituem pressupostos recíprocos. Responsabilidade, retidão, transparência e equidade são valores fundamentais da vida econômica, que sempre devem ser caracterizados pela integridade que respeita a lei. Todos os envolvidos em atividades econômicas são obrigados a cumprir as regras vigentes na lei nacional e internacional. Onde existem déficits na qualidade ou na aplicação das normas legais em um país em particular, eles devem ser superados pelo autocompromisso e pelo autocontrole; sob nenhuma circunstância alguém pode se aproveitar deles em vista do lucro.

Artigo 8

A busca pelo lucro é o pressuposto da competitividade. É o pressuposto da sobrevivência dos empreendimentos de negócios e de seus compromissos sociais e culturais. A corrupção inibe o bem-estar público, prejudicando a economia e as pessoas, porque ela leva sistematicamente à falsa alocação e ao desperdício de recursos. A supressão e a abolição da corrupção e das práticas desonestas, como o suborno, os acordos fraudulentos, a pirataria de patentes e a espionagem industrial, demandam um engajamento preventivo, que é um dever que incumbe a todos aqueles que atuam na economia.

Artigo 9

Um objetivo principal de todo sistema social e econômico que está voltado a oportunidades iguais, justiça distributiva e solidariedade é superar a fome e a ignorância, a pobreza e a desigualdade, em todo o mundo. A autoajuda e a ajuda externa, a subsidiariedade e a solidariedade, o engajamento privado e público - todos esses são dois lados da mesma moeda: eles se concretizam nos investimentos econômicos privados e públicos, mas também nas iniciativas privadas e públicas para criar instituições que sirvam para a educação de todos os segmentos da população e para erigir um sistema integral de previdência social. O objetivo básico de todos esses esforços é um verdadeiro desenvolvimento humano dirigido à promoção de todas essas capacidades e recursos que permitam que homens e mulheres tenham uma vida de autodeterminação com total dignidade humana.

Valores básicos: honestidade e tolerância

Marco ético de referência: Ser autenticamente humano no espírito de nossas grandes tradições religiosas e éticas significa que não devemos confundir liberdade com arbitrariedade, ou pluralismo com indiferença à verdade. Devemos cultivar a integridade e a veracidade em todas as nossas relações, em lugar da desonestidade, da dissimulação e do oportunismo.

Artigo 10

Veracidade, honestidade e confiabilidade são valores essenciais para relações econômicas sustentáveis que promovam o bem-estar humano em geral. Elas são pré-requisitos para a criação de confiança entre os seres humanos e para a promoção de competitividade econômica justa. Por outro lado, também é imperativo proteger os direitos humanos básicos da privacidade e da confidencialidade pessoal e profissional.

Artigo 11

A diversidade de convicções culturais e políticas, assim como as diversas habilidades dos indivíduos e as diversas competências das organizações representam uma fonte potencial de prosperidade global. A cooperação para a vantagem mútua pressupõe a aceitação de valores e normas comuns e a prontidão para aprender uns dos outros e tolerar respeitosamente a alteridade do outro. A discriminação de seres humanos por causa de seu sexo, sua raça, sua nacionalidade ou suas crenças não pode ser conciliada com os princípios de uma ética econômica mundial. Ações que não respeitem ou violem os direitos de outros seres humanos não devem ser tolerados.

Valores básicos: estima mútua e colaboração

Marco ético de referência: Ser autenticamente humano no espírito de nossas grandes tradições religiosas e éticas significa o seguinte: precisamos de respeito, colaboração e compreensão mútuos, em vez de dominação e degradação patriarcal, que são expressões de violência e que engendram contra-violência. Cada indivíduo tem dignidade intrínseca e direitos inalienáveis, e cada um também tem uma responsabilidade inevitável por aquilo que faz ou não faz.

Artigo 12

A estima mútua e a colaboração entre todos os envolvidos - particularmente entre homens e mulheres - é, desde já, o pré-requisito e o resultado da cooperação econômica. Tal estima e colaboração repousam no respeito, na equidade e na sinceridade com relação aos parceiros, sejam eles executivos de uma empresa ou seus empregados, seus clientes ou outros envolvidos. A estima e a colaboração formam a base indispensável para o reconhecimento de situações em que consequências negativas não intencionais das ações econômicas apresentam um dilema para todos os envolvidos - um dilema que pode e deve ser resolvido por meio do esforço mútuo.

Artigo 13

A colaboração, igualmente, encontra sua expressão na habilidade de participar da vida econômica, das decisões econômicas e dos ganhos econômicos. A forma pela qual essa participação pode ser realizada depende dos fatores culturais diversos e das estruturas regulatórias que prevalecem em diferentes áreas econômicas. Entretanto, o direito de unir forças para buscar responsavelmente os interesses pessoais e grupais por meio da ação coletiva representa um padrão mínimo que deve ser reconhecido em todo o lugar.

Conclusão

Todos os agentes econômicos devem respeitar as regras internacionalmente aceitas de conduta na vida econômica; devem defendê-las e, dentro do marco de sua esfera de influência, trabalhar juntos para a sua realização. Fundamentais são os direitos humanos e as responsabilidades, assim como proclamados pelas Nações Unidas em 1948. Outras diretrizes globais divulgadas por instituições transnacionais reconhecidas - o Pacto Global das Nações Unidas, a Declaração dos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, apenas para citar algumas - todas concordam com as demandas expostas neste Manifesto por uma Ética Econômica Mundial.

Primeiros signatários:

Michel Camdessus, Presidente honorário do Banque de FranceHans Küng, Presidente, Fundação Ética MundialMary Robinson, Presidente, "Realizing Rights: The Ethical Globalization Initiative"Jeffrey Sachs, Diretor, "The Earth Institute", Columbia UniversityDesmond Tutu, arcebispo emérito e prêmio Nobel da Paz

A declaração foi composta por um comitê de trabalho da Fundação Ética Mundial:

Prof. Dr. Heinz-Dieter Assmann (Tübingen University)Dr. Wolfram Freudenberg (Freudenberg Group)Prof. Dr. Klaus Leisinger (Novartis Foundation)Prof. Dr. Hermut Kormann (Voith AG)Prof. Dr. Josef Wieland (Drafter, Konstanz University of Applied Sciences)Prof. h.c. Karl Schlecht (Putzmeister AG)


Autoridades da Fundação Ética Mundial:

Prof. Dr. Hans Küng (Presidente)Prof. Dr. Karl-Josef Kuschel (Vice-presidente)Dr. Stephan Schlensog (Secretário-geral)Dr. Günther Gebhardt (Conselheiro sênior)
Tübingen, 1º de abril de 2009.




sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Fundação Ética Mundial publica manifesto por ética econômica


Um novo manifesto intitulado “Ética Econômica Mundial – Consequências para os Negócios Globais”, promovido pela Fundação Ética Mundial, foi publicado durante um simpósio sobre ética nos negócios na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, no dia 06 de outubro. Desenvolvido pelo teólogo suíço-alemão Hans Küng, presidente da Fundação, o documento busca apresentar “uma visão fundamental comum do que é legítimo, justo e correto” nas atividades econômicas.

Os primeiros signatários do manifesto incluem a ex-presidente da Irlanda Mary Robinson; o professor Jeffrey Sachs, diretor do Earth Institute da Columbia University; o prêmio Nobel da Paz Desmond Tutu, arcebispo anglicano emérito da Cidade do Cabo, na África do Sul; e Michel Camdessus, presidente honorário do Banque de France.

Baseado na “Declaração de Ética Mundial” do Parlamento das Religiões Mundiais de 1993, o manifesto destaca cinco princípios e valores universalmente aceitáveis: o princípio de humanidade; o da não violência e do respeito à vida; o da justiça e solidariedade; o da honestidade e tolerância; e o da estima e colaboração mútuas.

Agora, o documento será disponibilizado para a coleta de assinaturas no mundo inteiro. Os signatários do manifesto se comprometem, dessa forma, a “ser guiados pelo seu conteúdo e por seu espírito nas decisões, ações e comportamentos econômicos cotidianos gerais”.

No simpósio, realizado pelo Pacto Global da ONU, pela Missão Suíça das Nações Unidas, a Fundação Ética Mundial e a Fundação Novartis para o Desenvolvimento Sustentável, surgiu um grande consenso de que a atual crise econômica e financeira mundial revela uma necessidade por uma base moral comum mais forte entre todos os atores do mercado globalizado.

"O pedido por um marco ético para os mercados financeiros globais e a economia mundial foi fortemente ouvido de muitos lados em todo o mundo desde o começo da atual crise", disse o professor Hans Küng. "Essa nova Declaração sobre uma Ética Econômica Mundial lembra todos os envolvidos nos negócios mundiais de suas responsabilidades individuais pela humanização do funcionamento da economia global: a globalização precisa de uma Ética Mundial".

"Toda capacidade das organizações para aderir a valores universais depende ultimamente da disposição dos indivíduos de adotar uma ética pessoal que guia sua própria tomada de decisões em todas as áreas da vida", afirmou Georg Kell, diretor-executivo do Pacto Global da ONU. "A Ética Econômica Mundial, introduzida pelo Dr. Küng, forja uma importante conexão entre a responsabilidade individual e organizacional".

"Nenhuma empresa age sozinha como uma instituição legal abstrata, mas sempre age por meio de diversas pessoas que trabalham em diferentes níveis da hierarquia", disse o professor Klaus Leisinger, diretor-executivo da Fundação Novartis. "Essa é a razão pela qual os sistemas sociais como as próprias empresas podem ser morais ou imorais apenas até um certo limite: a moralidade – ou a imoralidade – se introduz em um sistema social pelas pessoas, por seus valores e seu nível de integridade".

"O manifesto visa a um diálogo entre todos os interessados e, assim, se dirige a todos os grupos econômicos de interesse – proprietários, investidores, credores, empregados, sindicatos, consumidores e ONGs, apenas para citar alguns", disse o professor Josef Wieland, do Konstanz Institute for Values Management and Intercultural Communication. "Os difíceis desafios da globalização são um dilema compartilhado por todos os envolvidos".


Entrevista - Ladislau Dowbor

Neoliberalismo está sofrendo condenação ética’, afirma Dowbor




Entrevista concedida pelo economista Ladislau Dowbor publicada no sítio da Revista do Brasil, 19-10-2009.


Fonte: UNISINOS


O senhor fala bastante sobre o papel das decisões locais em contraposição às estaduais e federais. Na economia, é possível pensar em mudanças necessárias nesse sentido?

Vai no sentido da democratização da própria economia. Não basta uma democracia em que você coloca o voto a cada dois anos na urna, mas os processos econômicos têm de ser democratizados. Veja por exemplo o fato de que todos os bancos fazem uma série de atividades especulativas, cobram juros absolutamente astronômicos com dinheiro dos outros. É natural que o dinheiro do público tenha uma parte de lucro, mas que sobretudo sirva às necessidades do desenvolvimento.
Isso nos leva a pensar que os diversos recursos da sociedade precisam ser usados de maneira inteligente. São Paulo é uma cidade que arrancou os trilhos de bonde porque não interessavam às grandes montadoras. Hoje, estamos todos paralisados por excesso de veículos. São Paulo precisa de mais metrô e de mais corredor de ônibus, e não de mais pistas nas marginais.

Na realidade, há uma reflexão mais ampla. Por que não funciona? Por que a Suécia é bem administrada? Por que há estados na Índia muito mais pobres em que as coisas funcionam? Funciona onde a sociedade está organizada em torno de seus interesses, participa por organizações do terceiro setor, ONGs etc. Há agências locais de desenvolvimento que articulam os diversos apoios. É aquilo que chamamos de “vibrantes participativas”. Ali as coisas funcionam por uma razão simples: a população está interessada em viver melhor.

Por isso a participação nos fóruns locais?

As pessoas dizem que está tudo globalizado. É bobagem. O carro é um produto global, as finanças e os meios de comunicação se globalizaram. Mas o hortifrutigranjeiro da minha comida é essencialmente local. A qualidade da escola, a arborização da rua, a riqueza cultural, a qualidade do esgoto, tudo isso é local.Grande parte do nosso cotidiano é perfeitamente gerido de maneira participativa pelas comunidades. Imaginar que vá aparecer um bom governador que vai resolver tudo ou uma boa empresa que vai resolver tudo? Esqueça. O município é o tijolo com o qual se forma o país, ou seja, cada um tem de ser muito bem alimentado.

Esse poder local não pode ser confundido com princípios do neoliberalismo de desvalorizar o Estado?

O Estado neoliberal está hoje à procura do próprio rabo. O PIB mundial é de US$ 60 trilhões. O sistema especulativo emitiu em papéis que estão voando por aí US$ 680 trilhões. Isso não elimina a eficiência de pequena e de média empresa. Significa um reequilibramento: não podemos ter os bancos fazendo o que querem.

Um exemplo interessante é o da Dinamarca. Eles não trabalham com planejamento do Estado nem vale-tudo do mercado, mas com uma gestão econômica. Por exemplo, uma empresa que vai se instalar em um município vai conversar com prefeito, movimentos sociais, e com isso vai ser bem aceita e vai funcionar melhor.

O que temos na mesa não é um modelo contra outro modelo, as grandes simplificações do século passado. É realmente um modelo que consiga uma visão mais equilibrada entre o papel do Estado, o papel das empresas e o da sociedade civil.

Sempre aparece por aqui que o Brasil tem os mais altos impostos do mundo. Isso é fácil dizer porque ninguém sabe como está no resto do mundo, então se aceita uma bobagem dessas. Temos um imposto que é 35% do PIB. Na Suécia, é 66% do PIB. Mas, na hora de gastar o imposto, transformá-lo em iniciativas públicas, 72% dos recursos são gastos no nível local, com participação da comunidade. No Brasil, (isso equivale a) 15%. Ou seja, não é só o tamanho do Estado, é onde está o Estado, que deve ter muito mais presença frente à corporação.

A corporação, a partir de (Margareth) Tatcher e (Ronald) Reagan, se arvorou realmente como líder político do mundo, e isso claramente deu com os burros n'água: crise financeira, crise climática, esgotamento dos recursos naturais, destruição da vida nos mares. O reequilibramento deve ter uma função muito mais presente do Estado, maior participação das organizações da sociedade civil, e um papel mais modesto e mais inteligente do mundo empresarial.

O Brasil tem encontrado caminhos na tentativa de refazer o pensamento atual?

Sim, sobretudo por políticas aplicadas, um conjunto de iniciativas. No Bolsa Família são R$ 15 bilhões, no Territórios da Cidadania são R$ 20 bilhões, no apoio ao agricultor familiar, o ProUni, a eletrificação do meio rural, o aumento do salário mínimo, é imenso. As pessoas não imaginam a mudança que é, para uma pessoa muito pobre, R$ 150 a mais. É a diferença entre viver ou não, entre um menino amanhã ser um trabalhador robusto ou não. Há um conjunto de políticas tentando reequilibrar o país em termos sociais e ambientais.

Nós passamos de um desmatamento de 28 mil quilômetros quadrados em 2002 para 10 mil quilômetros quadrados atualmente. É uma tragédia? Ainda é uma tragédia. Aliás, se quiser comparar com o MST: os 10 mil quilômetros destruídos anualmente pelas grandes corporações equivalem a 3 mil hectares por dia. Eu sou contrário a esse negócio de derrubar pé de laranja, mas vamos ser realistas, né?

No caso brasileiro, entre o desafio ambiental e o desafio social, o da desigualdade se apresenta como mais gritante. Não precisa ir longe, na periferia de São Paulo há uma imensa favelização. Em Cidade Tiradentes (zona leste da capital paulista), há 200 mil moradores para 2.400 empregos. O pessoal levanta 4h30 da manhã e volta às 22h. Não tem vida de família, não tem tempo para nada. É preciso um mínimo de respeito para a população.

Que posição o senhor espera que o Brasil leve a Copenhague?

O Brasil tem um ponto forte por ter uma estrutura relativamente limpa de energia, um imenso potencial de biocombustíveis, terra e água em condições ideais, e um governo que gerou uma enorme simpatia mundial pelo país.

Mais importante que a posição do Brasil é a articulação que se vai fazer. Não se pode fazer uma exceção para o Brasil. Precisamos olhar a posição da China, da Rússia, da Indonésia, do conjunto, enfim. Os Estados Unidos têm 4,6% da população mundial e emitem 21% dos gases estufa. Isso não é viável.Copenhague é um momento, acho que a gente não deve exagerar. Mas é a hora em que o mundo faz um balanço. Estamos destruindo o planeta. Que melhorias devemos fazer? Repercussões de Copenhague já estão existindo. Há uma discussão nos Estados Unidos de ver se junta com o problema da saúde e de outras coisas.

Está evidente que o modelo de vale-tudo não funciona. A visão ética, que é quanto mais a pessoa conseguir ficar rica, mais é vista como sucesso, isso foi para o espaço. Ético é quanto mais a pessoa conseguiu contribuir para melhorar o planeta, e não quanto arrancou dele. Essa é a virada básica, é a condenação da ética do neoliberalismo.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Francisco de Oliveira

O avesso do avesso
Fonte: UNISINOS


O artigo "Hegemonia às avessas" (Piauí, janeiro de 2007) pretendeu fazer uma provocação gramsciana para melhor entender os regimes políticos que, avalizados por uma intensa participação popular (a "socialização da política", segundo Antonio Gramsci), ao chegar ao poder praticam políticas que são o avesso do mandato de classes recebido nas urnas. É o caso das duas presidências do Partido dos Trabalhadores no Brasil. E da destruição do apartheid na África do Sul, por meio de uma longa guerra de posições e das seguidas reeleições do Congresso Nacional Africano, uma frente de esquerda com forte influência do Partido Comunista.

Quase sete anos de exercício da Presidência por Luiz Inácio Lula da Silva já tornam possível uma avaliação dessa hegemonia às avessas e dos resultados que ela produziu. Não se parte aqui, e não fiz essa presunção também no artigo provocador original, de que Lula recebeu um mandato revolucionário dos eleitores e sua Presidência apenas se rendeu ao capitalismo periférico. Mas o mandato, sem dúvida, era intensamente reformista no sentido clássico que a sociologia política aplicou ao termo: avanços na socialização da política em termos gerais e, especificamente, alargamento dos espaços de participação nas decisões da grande massa popular, intensa redistribuição da renda num país obscenamente desigual e, por fim, uma reforma política e da política que desse fim à longa persistência do patrimonialismo.

Os resultados são o oposto dos que o mandato avalizava. O eterno argumento dos progressistas-conservadores - caso, entre outros, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - é que faltaria, às reformas e ao reformista-mandatário, o apoio parlamentar. Sem sustentação no Congresso, o país ficaria ingovernável. Daí a necessidade de uma aliança ampla. Ou de uma coalizão acima e à margem de definições ideológicas. Ou, mais simplesmente, de um pragmatismo irrestrito.

Fernando Henrique Cardoso teve recursos retóricos para justificar uma mudança de posição ideológica que talvez não tenha paralelo na longa tradição nacional do "transformismo" (outro termo emprestado do teórico sardo). Luiz Werneck Vianna, um dos nossos melhores intérpretes da "revolução passiva" gramsciana - junto com Carlos Nelson Coutinho -, é mais sutil e tem um argumento mais complexo: não se governa o Brasil sem o concurso do atraso não apenas por razões parlamentares, mas porque a estrutura social que sustenta o sistema político é conservadora, e não avalizaria avanços programáticos mais radicais. Além disso, as fundas diferenças e desigualdades regionais, bem como o modo como, desde a Colônia, fundiram-se o público e o privado - vide Caio Prado Jr. - tornam quase obrigatório um pragmatismo permanente, que leva de roldão perspectivas mais ideológicas, ou meramente programáticas.

Infelizmente para os defensores do eterno casamento entre o avançado e o atrasado, a história brasileira não dá suporte ou evidências do acerto do conservadorismo com enfeite ideológico progressista. Nem mesmo remotamente. Até no caso da abolição da escravatura, que talvez tenha de fato subtraído o apoio parlamentar ao trono imperial, abrindo o espaço para a República, não se deve perder de vista que ela foi pregada por radicais e realizada por conservadores. Nem se pode esquecer que o gabinete da Lei Áurea era presidido pelo conselheiro João Alfredo, um notório conservador.

A Proclamação da República, entendida modernamente como um golpe de Estado, foi conduzida por militares conservadores e, logo em seguida, usurpada pela nova classe paulista que emergia da formidável expansão cafeicultora. Rui Barbosa, um grande liberal republicano, chega ao Ministério da Fazenda já com Deodoro da Fonseca - e faz uma administração considerada temerária - e depois tenta seguidamente alcançar a Presidência, por meio das eleições "a bico de pena", fracassando em todas elas. Os nomes que ficarão serão os da nova plutocracia paulista: Prudente de Morais, Campos Sales e Rodrigues Alves. Por fim: as bases sociais da abolição já vinham sendo estruturadas pela mesma expansão do café que, para tanto, promoveu a imigração italiana. Não foi a abolição que derrubou a monarquia, mas a expansão econômica violentíssima na virada do século XIX para o XX.

Outro exemplo, mais perto de nós, é o da Revolução de 30. Quem derrubou o regime caduco da Primeira República foi uma revolução que veio da periferia, do Rio Grande do Sul e da Paraíba, com Minas associando-se em seguida, e contando com a oposição de São Paulo. O atraso, então, serviu de base para o avanço? Longe disso. O Rio Grande tinha uma longa tradição revolucionária, um sistema fundiário mais progressista que o do resto do país, além de uma cultura positivista entre suas elites, sobretudo a elite militar, que forneceu o programa social lançado em 1930 (e sustentado continuamente por cinco décadas) cujo conteúdo foram as reformas do trabalho e da previdência social.

A historiografia da Unicamp, liderada por Michael Hall, está pondo reparos à tese de que Getúlio Vargas copiou a Carta del Lavoro: decisiva mesmo teria sido a fundamentação positivista, que fez com que a nossa Consolidação das Leis do Trabalho fosse muito além da legislação italiana. Contra todas as tendências do já principal centro econômico brasileiro, Vargas fez São Paulo engolir goela abaixo um programa industrializante, reformista e socialmente avançado. Não foi à toa que, em 1932, articulou-se em terras bandeirantes uma "revolução constitucionalista" cujo programa é hoje emoldurado com galas de avanço - a fundação da Universidade de São Paulo -, mas que na realidade pretendia barrar o avanço das leis reformistas e reforçar a "vocação agrícola do Brasil". Esse argumento, que ainda frequenta as páginas do Estadão (de forma sinuosa, é verdade), era explicitado em prosa e verso pelo jornal hoje plantado às margens malcheirosas do Tietê e pelas principais lideranças paulistas. O atraso governando o país?

O golpe de Estado de 1964, que derrubou o governo João Goulart e terminou com a precária democratização em curso desde 1945, pintou-se com as cores do atraso, mas na realidade realizou o programa capitalista em suas formas mais violentas. Não foi um conflito entre o atraso e o progresso, mas entre duas modalidades de avanço capitalista. O vencedor fez seu o programa do vencido, radicalizando-o e ultrapassando-o. Fincou os novos limites à acumulação de capital muito além do que os vencidos teriam ousado, na esteira da evolução do regime chamado varguista-desenvolvimentista. A estatização promovida pela ditadura militar significou a utilização do poder estatal coercitivo para vencer as resistências não do atraso, mas das burguesias mais "avançadas". Nunca a divisa da bandeira foi levada tão ao pé da letra quanto naqueles anos: "ordem e progresso". Poderosas empresas estatais se fortaleceram nos setores produtivos, fusões bancárias foram financiadas por impostos pesados, recursos públicos foram usados sem ambiguidades não para preservar o velho, mas para produzir o novo - como a Aeronáutica e o ita criando a Embraer. Avanço ou atraso?

O fim é conhecido: desatada a caixa de Pandora, o regime sucumbiu não ao seu fracasso, mas ao seu êxito em construir uma ordem capitalista avassaladora. O regime militar relegou a burguesia nacional ao papel de coadjuvante, submeteu a classe trabalhadora a pesadas intervenções e não abriu ao capital estrangeiro, como faria supor seu ato mais imediato, a revogação da Lei de Remessa de Lucros de Goulart, que deu o pretexto para o golpe.

Melancolicamente, como cantava uma valsa antiga, que eu ouvia na voz de Carlos Galhardo - com certeza produzida em Hollywood -, a ditadura terminou seus dias com um general enfadado, que preferia o cheiro de cavalos ao do povo, encurralada por um poderoso movimento democrático que deitou raízes em praticamente todos os setores da sociedade. O movimento pelas Diretas Já, no entanto, teve um desenlace moldado em termos irretorquivelmente brasileiros: um pacto pelo alto, entre o partido oficial de oposição à ditadura e o falido partido da própria ditadura, que entregou a Presidência, numa eleição indireta, a um civil mais conservador que o próprio general que saía de sua ronda. Por infelicidade, o poder terminou nas mãos dum acadêmico maranhense de um mais do que duvidoso prestígio literário - como diria minha professora, d. Delfina, desafiando-nos: "Dou um doce a quem tenha lido os tais "Maribondos de Fogo." Chamava-se José Sarney. Continua nos brindando com nomeações no Senado como se estivesse na praia do Calhau, em São Luís. Quem governa, o atraso ou o avanço?

Houve então o interregno de Fernando Collor, que tinha voto, mas não tinha voz, e de Itamar Franco, que não tinha nem voto nem voz. E então chegou o progresso mesmo, em pessoa, adornado com os títulos e as pompas da Universidade de São Paulo. Fernando Henrique Cardoso realizou o que nem a Dama de Ferro tinha ousado: privatizou praticamente toda a extensão das empresas estatais, numa transferência de renda, de riqueza e de patrimônio que talvez somente tenha sido superada pelo regime russo depois da queda de Mikhail Gorbachev.

Como Antonio Carlos Magalhães, o enérgico cacique da Bahia, foi seu parceiro, confirma-se a tese de que somente se pode governar com o atraso? Longe disso. ACM nunca foi um oligarca no sentido rigoroso do termo e, mais que isso, a política econômica de Fernando Henrique jamais esteve sob o controle de Antonio Carlos e assemelhados. A política econômica era reserva de caça exclusiva de FHC e de seus tucanos, hoje banqueiros.

Essa turma se desfez do melhor da estrutura do Estado longamente criada desde os anos 30, cortando os pulsos num afã suicida sem paralelo na história nacional. Honra a São Paulo e a seus ideólogos: Eugênio Gudin não faria igual e o Estadão exultava a cada medida "racional" do governo FHC. Manipulando o fetiche da moeda estável, Fernando Henrique retirou do Estado brasileiro a capacidade de fazer política econômica. Com os dois mandatos, os tucanos operaram um tournant do qual seu sucessor veio a ser prisioneiro - com a peculiaridade que Lula radicalizou no descumprimento de um mandato que lhe foi conferido para reverter o desastre FHC. É nesse contexto que opera a "hegemonia às avessas".

Que se pode ver no avesso do avesso? Começando pela economia, que tem sido o argumento maior da era Lula: sua taxa de crescimento médio nos seis anos é inferior à taxa histórica da economia brasileira e, em 2009, prevê-se uma queda relativa que o leva de volta à performance de seu antecessor imediato, o odiado (para os petistas-lulistas) FHC. O crescimento tem se baseado numa volta à "vocação agrícola" do país, sustentado por exportações de commodities agropecuárias - o Brasil, um país de famintos, é hoje o maior exportador mundial de carne bovina - e minério de ferro, graças às pesadas importações da China. Com o simples arrefecimento do crescimento chinês, que de 10% ao ano regrediu a uns 8%, a queda das exportações brasileiras já provocou a forte retração do PIB agropecuário. As exportações voltaram a ser lideradas pelos bens primários, o que não acontecia desde 1978.

Proclama-se aos quatro ventos a diminuição da pobreza e da desigualdade, baseada no Bolsa Família. Os dados disponíveis não indicam redução da desigualdade, embora deva ser certo que a pobreza absoluta diminuiu. Mas não se sabe em quanto. A desigualdade provavelmente aumentou, e os resultados proclamados são falsos, pois medem apenas as rendas do trabalho que, na verdade, melhoraram muito marginalmente graças aos benefícios do INSS, e não ao Bolsa Família. Quem o proclama é o insuspeito Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea. A desigualdade total de rendas é impossível medir-se, em primeiro lugar pela conhecida subestimação que é prática no Brasil, e em segundo lugar por um problema de natureza metodológica (conhecido de todos que lidam com estratificações, que é a quase impossibilidade de fechar o decil superior da estrutura de rendas).

Metodologicamente, como lembrou Leda Paulani, as rendas do capital são estimadas por dedução, enquanto as rendas do trabalho são medidas diretamente na fonte. Medidas indiretas sugerem, e na verdade comprovam, o crescimento da desigualdade: o simples dado do pagamento do serviço da dívida interna, em torno de 200 bilhões de reais por ano, contra os modestíssimos 10 a 15 bilhões do Bolsa Família, não necessita de muita especulação teórica para a conclusão de que a desigualdade vem aumentando. Marcio Pochmann, presidente do Ipea, que continua a ser um economista rigoroso, calculou que uns 10 a 15 mil contribuintes recebem a maior parte dos pagamentos do serviço da dívida. Outro dado indireto, pela insuspeita - por outro viés - revista Forbes, já alinha pelo menos dez brasileiros entre os homens e mulheres mais ricos do mundo capitalista[1].

Por fim, a Fundação Getúlio Vargas divulgou, no final de setembro, uma pesquisa provando que a classe que mais cresceu proporcionalmente, de 2003 a 2008, não foi a c nem a d. Foi, isso sim, a classe ab, que tem renda familiar acima de 4.807 reais - e o dado não leva em conta a valorização da propriedade, ações e investimentos financeiros.

Do ponto de vista da política, o avesso do avesso é sua negação. Trata-se da administração das políticas sociais; cooptam-se centrais sindicais e movimentos sociais, entre eles o próprio Movimento dos Sem-Terra, que ainda resiste. A política é não só substituída pela administração, mas se transformou num espetáculo diário: o presidente anuncia com desfaçatez avanços e descobertas que no dia seguinte são desmentidos. O etanol, que seria a panaceia de todos os males, foi rapidamente substituído pelo pré-sal, que agora urge defender com submarinos nucleares e caças bilionários. O pré-sal, aliás, prometia reservas que elevariam o Brasil à condição de maior produtor mundial de petróleo, superando os países do Golfo, e dando, de colher, os recursos para quitar a obscena dívida social brasileira. Não tardou muito e a Exxon furou um poço... seco. E agora a British Group, associada à Petrobras, anuncia a mesma coisa. E as expectativas de reserva passaram de 1 trilhão de barris de petróleo para modestos 8 bilhões.

As previsões da equipe econômica são de mágico de quintal. No princípio do ano, em plena crise, o crescimento estimado estava na casa dos 6% para 2009. Pouco a pouco, as previsões - dignas de Nostradamus - foram caindo para 4%, 5%, 3%, e hoje se aposta em 1%.

O chamado ciclo neoliberal, que começa com Fernando Collor e já está com seus quase vinte aninhos com Lula, é um ciclo anti-Polanyi, o magistral economista e antropólogo húngaro que se radicou na Inglaterra. O projeto do socialismo democrático de Karl Polanyi começava por deter a autonomia do mercado e dos capitalistas. Ora, o governo Lula, na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique, só faz aumentar a autonomia do capital, retirando às classes trabalhadoras e à política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática. Se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação. E todos fomos mergulhados outra vez na cultura do favor - viva Machado de Assis, viva Sérgio Buarque de Holanda e viva Roberto Schwarz!

As classes sociais desapareceram: o operariado formal é encurralado e retrocede, em números absolutos, em velocidade espantosa, enquanto seus irmãos informais crescem do outro lado também espantosamente. Em sua tese de doutorado, Edson Miagusko flagrou, talvez sem se dar conta, a tragédia: de um lado da simbólica Via Anchieta, no terreno desocupado onde antes havia uma fábrica de caminhões da Volks, há agora um acampamento de sem-teto, cuja maioria é de ex-trabalhadores da Volks. Do outro lado da famosa via, sem nenhuma simultaneidade arquitetada - aliás, os dois grupos se ignoraram completamente -, uma assembleia de trabalhadores ainda empregados da Volks tentava deter a demissão de mais 3 mil companheiros. Eis o retrato da classe: em regressão para a pobreza. De são Marx para são Francisco.

As classes dominantes, se de burguesia ainda se pode falar, transformaram-se em gangues no sentido preciso do termo: as páginas policiais dos jornais são preenchidas todos os dias com notícias de investigações, depoimentos e prisões (logo relaxadas quando chegam ao Supremo Tribunal Federal) de banqueiros, empreiteiros, financistas e dos executivos que lhes servem, e de policiais a eles associados. A corrupção campeia de alto a baixo: do presidente do Senado que ocultou a propriedade de uma mansão, passando pelo ex-diretor da casa, que repetiu - ou antecipou? - a mesma mutreta, aos senadores que pagam passagens de sogras a namoradas com verbas de viagem, e deputados que compram castelos com verba indenizatória.

Trata-se de um atavismo nacional? Só os que sofrem de complexo de inferioridade tenderiam a pensar assim. Qualquer jornal americano da segunda metade do século XIX noticiava a mesma coisa. Até a mulher de Lincoln praticava, em conluio com o jardineiro, pequenos "desvios" de verba da casa da avenida Pensilvânia (segundo a má língua famosa de Gore Vidal).

A novidade do capitalismo globalitário é que ele se tornou um campo aberto de bandidagem - que o diga Bernard Madoff, o grande líder da bolsa Nasdaq durante anos. Nas condições de um país periférico, a competição global obriga a uma intensa aceleração, que não permite regras de competição que Weber gostaria de louvar. O velho Marx dizia que o sistema não é um sistema de roubo, mas de exploração. Na fase atual, Marx deveria reexaminar seu ditame e dizer: de exploração e roubo. O capitalismo globalitário avassala todas as instituições, rompe todos os limites, dispensa a democracia.

O avesso do avesso da "hegemonia às avessas" é a face, agora inteiramente visível, de alguém que vestiu a roupa às pressas e não percebeu que saiu à rua do avesso. Mas agora é tarde: Obama sentenciou que "ele é o cara" e todo mundo o vê assim. O lulismo é uma regressão política, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda.
[grifos do blog]

Nota:
[1] Essa famigerada lista é liderada por Carlos Slim, mexicano que fica cada vez mais rico, enquanto seu belo país mergulha fundo na mais infame pobreza. Carlos Fuentes, o magnífico romancista mexicano de A Morte de Artemio Cruz, nos brinda, em seu recente La Voluntad y la Fortuna, com um implacável retrato do gordo bilionário mexicano, além de nos dar, na tradição dos grandes muralistas do país asteca, um magnífico panorama do México moderno, atolando na miséria e no crime, tendo no pescoço a pedra do Nafta, o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Samuel Pinheiro Guimarães

Nação, Nacionalismo, Estado

Análise de Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral de Relações Exteriores do governo brasileiro.
Fonte: Carta Maior




Definições

1. Nação, em seu sentido político moderno, é uma comunidade de indivíduos vinculados social e economicamente, que compartilham um certo território, que reconhecem a existência de um passado comum, ainda que divirjam sobre aspectos desse passado; que têm uma visão de futuro em comum; e que acreditam que este futuro será melhor se se mantiverem unidos do que se separarem, ainda que alguns aspirem modificar a organização social da nação e seu sistema político, o Estado.

2. Nesse sentido, é possível falar de uma nação brasileira, de uma nação mexicana, de uma nação indiana, de uma nação americana e assim por diante ainda que grupos sociais dentro dessas nações possam ter interpretações diferentes de seu passado e aspirações distintas para seu futuro em comum, sem, todavia, que nenhum grupo significativo chegue a desejar e a lutar pela secessão.

3. Nacionalismo é o sentimento de considerar a nação a que se pertence, por uma razão ou por outra, melhor do que as demais nações e, portanto, com mais direitos, sendo manifestações extremadas desse sentimento a xenofobia, o racismo e a arrogância imperial.
Nacionalismo é, também, o desejo de afirmação e de independência política diante de um Estado estrangeiro opressor ou, quando o Estado já se tornou independente, o desejo de assegurar em seu território um tratamento pelo Estado melhor, ou pelo menos igual, ao tratamento concedido ao estrangeiro, seja ele pessoa física ou jurídica. Os movimentos nacionalistas significativos do ponto de vista político, cujas manifestações históricas mais simples decorrem de identidade étnica, lingüística ou de pertencimento, no passado, a uma organização política, tem como seu principal objetivo o estabelecimento de um Estado ou a modificação das políticas do Estado para defender ou privilegiar interesses dos que integram um certo movimento.

Nacionalismo
4. O preconceito de considerar a sua nação melhor do que as demais tem sua origem na idéia de que as divindades teriam escolhido um povo, uma certa nação, como eleita i.e. a nação como um conjunto de indivíduos que adoravam uma certa divindade. O caso do povo judeu, o chamado povo eleito, é clássico e esta convicção tem conseqüências políticas até hoje, sendo talvez o Oriente Próximo o principal e mais complexo foco de tensão no mundo. O Japão é outro caso interessante na medida em que o Imperador era considerado Filho do Sol e como tal simbolizava o vínculo concreto entre o povo japonês e a divindade suprema. A China, tradicionalmente, se considerava tão superior aos povos vizinhos e mesmo a povos distantes que sequer admitia manter relações políticas em nível de Estados soberanos com outros Estados. Estes podiam, no máximo, oferecer tributos ao Império do Meio, centro da civilização, cujos imperadores se acreditava estarem diretamente vinculados às divindades celestiais.

5. O caso dos Estados Unidos, civilização mais recente do que a chinesa, a judaica e a japonesa (e mesmo a francesa, a alemã e a russa), é distinto mas as raízes do nacionalismo americano podem ser encontradas na religião protestante. Esta considera que o sucesso material é um sinal de aprovação divina, da própria salvação, de uma predestinação. De um ponto de vista coletivo, o sucesso material da sociedade americana significaria um sinal de aprovação divina, de que a sociedade americana seria eleita pelo Senhor e que, por esta razão, não só poderia como deveria assumir o papel de líder e de modelo para todas as sociedades e Estados. Esta missão salvadora dos Estados Unidos se encontra claramente expressa nos documentos de política externa dos Estados Unidos. A declaração do Presidente George W. Bush de que teria, literalmente, falado com Deus, a presença crescente e a enorme influência do fundamentalismo religioso, extremamente conservador, belicoso e nacionalista são aspectos, fatos reveladores desta convicção de povo, de nação eleita e, portanto, de superioridade em relação às demais nações.

6. Um dos principais movimentos nacionalistas viria a se desenvolver na Alemanha com base na superioridade de uma suposta raça ariana, germânica e pura que viria a redundar na tomada do Estado pelo Partido Nacional Socialista, com terríveis conseqüências para o mundo e, em especial, para aqueles que considerava como integrantes das raças inferiores, em especial os judeus, vítimas de uma política de eliminação física, o Holocausto.

7. O nacionalismo nos países desenvolvidos, em especial nas Grandes Potências, e sua pretensão de superioridade nacional redundou facilmente em políticas expansionistas e agressivas, tanto no continente europeu mas também na formação dos impérios coloniais, com a noção explícita de inferioridade dos povos e das culturas locais e até, eventualmente, a idéia de que seriam seres humanos distintos e mesmo inferiores. Em um exemplo chocante dessa pretensão, o General Westmoreland, então comandante em chefe das forças americanas no Vietnã, se referiu publicamente aos vietnamitas como seres diferentes “de nós”, para justificar certas ações das tropas americanas.

8. Assim, a característica central do sistema internacional nos últimos quinhentos anos desde a descoberta das Américas tem sido o imperialismo e o colonialismo, cujo fundamento de dominação, além da força, foi a ideologia de superioridade racial e civilizacional em relação às colônias e a seus povos e a agressão aos sistemas políticos, sociais e culturais de nações dominadas, pela força, pelas metrópoles européias (o que também ocorreu no processo de criação dos “impérios continentais” como na expansão territorial dos Estados Unidos rumo ao Oeste e da Rússia rumo ao Leste e ao Sul). A escravidão foi a expressão máxima dessa dominação e os escravos eram considerados seres inferiores, sem alma, e portanto naturalmente sujeitos ao jugo e ao arbítrio de seus senhores. Lord Acton, em artigo publicado em 1862, afirmava que os Estados mais perfeitos são aqueles que como o Império Britânico e o Império Austríaco incluíam várias nacionalidades distintas sem as oprimir porque “as raças inferiores se elevam ao viver em união política com raças intelectualmente superiores”.

9. Nos países da periferia, ex-colônias, ou ex-semicolônias, o nacionalismo tem natureza radicalmente distinta dos movimentos nacionalistas que se desenvolveram na Europa os quais tiveram sua reputação definitivamente manchada pelo nazi-fascismo, o qual tinha, aliás, seguidores e simpatizantes ardorosos em vários outros países europeus, além de Alemanha e Itália.
Diga-se de passagem que os atuais “cosmopolitas” utilizam muitas vezes uma identificação errônea entre o nacionalismo europeu e o nacionalismo da periferia para desqualificar os movimentos anti-colonialistas, anti-imperialistas e hoje anti-globalização acusando-os de “nacionalistas” (ao que em geral acrescentam o termo populista). Os movimentos nacionalistas nas diversas colônias, com a variação natural de tempo e espaço, foram movimentos de afirmação da nacionalidade, de recuperação de tradições, de idioma, de autonomia política e de independência, em relação inicialmente às metrópoles coloniais européias, e, mais tarde, se transformaram em movimentos de afirmação política e de desenvolvimento econômico independente dos Estados que se originaram nas ex-colônias.

Nação
10. Ao final do Império Romano, as invasões das tribos bárbaras que viriam a ocupar as províncias romanas e a estabelecer os feudos, territórios em que os diversos líderes tribais tinham reconhecida sua soberania política e militar, ainda que mais ou menos limitada, estabelecem pela primeira vez, pela diferenciação de idiomas e de raças em fusão com os habitantes, as línguas locais e o latim popular, as sementes das nações e dos Estados modernos. A Igreja neste processo teve especial relevância na medida em que esses senhores feudais iriam se convertendo ao cristianismo e reconheciam a autoridade de Roma.

11. Esses sistemas feudais, frouxamente submetidos a um poder central, em geral o senhor de um feudo territorial e populacionalmente maior, correspondiam a um conjunto de feudos, territórios pequenos que, por força dos diversos sistemas de herança política (que aliás era também patrimonial), do regime de morgadio e de casamentos, viriam a se agregar progressivamente. As divergências sobre direitos hereditários, as guerras de conquista e a relação pessoal patrimonial dos senhores feudais com os seus territórios fariam com que periódica e eventualmente populações de distintas origens passassem a estar submetidas à soberania de distintos senhores.

12. Assim se formaram os Estados nacionais europeus, os quais na realidade não correspondiam a nações homogêneas mas agrupavam populações de distintas origens étnicas, com diferentes graus de miscigenação, com distintas tradições e às vezes religiões. Nesses Estados vigiam regimes absolutistas cujo fundamento era a doutrina do direito divino dos reis sobre todos os seus súditos (inclusive os nobres descendentes dos senhores feudais), monarcas que se apoiavam mutuamente nesta pretensão. Esses monarcas absolutos tinham o suporte ideológico de Roma, até que o protestantismo veio a opor ferozmente, em guerras sangrentas, alguns desses Estados, que continuavam, todavia, a acreditar e a defender a doutrina do direito divino dos reis.

13. A idéia de que o Estado nasce com a nação não corresponde à realidade na maior parte dos casos pois a nação seria de fato uma construção ideológica posterior, tendo muitas vezes a nação sido “construída” pelo Estado. A emergência natural das nações teria sido em realidade impossível devido à ignorância das massas, à diversidade de etnias e de religiões, à ausência de tradições reais, efetivas, à tardia fixação das línguas, às difusas tradições orais e, portanto, a emergência de uma nação teria sido somente possível após o surgimento do Estado moderno, que organiza uma administração central do Estado, e como conseqüência dos programas de educação pública, do serviço militar e da vontade dos dirigentes de unificar as populações. Todavia, se isto ocorre, i.e. se as nações foram construídas pelos Estados, torna-se necessário procurar esclarecer como surgiram os Estados.

14. Assim, nação e nacionalismo, apesar de serem conceitos difusos, correspondem a realidades que tiveram e têm forte impacto sobre a realidade política e se encontram estreitamente vinculadas a um outro conceito que, além de conceito, é o fato mais concreto da realidade quotidiana de todos os indivíduos, que é o Estado. Todas as questões teóricas e práticas relativas a nação e a nacionalismo como, por exemplo, em que medida a cada nação deveria corresponder um Estado; se as nações para serem consideradas como tal deveriam ser étnica, idiomática ou religiosamente homogêneas; se o nacionalismo seria sempre uma manifestação política perversa e perigosa; se o nacionalismo tende ao nazismo e assim por diante, passam a ter um interesse especial quando examinadas à luz da noção e da realidade do Estado.

A formação primitiva dos Estados
15. Apesar das diferenças importantes no processo de formação e de evolução dos atuais Estados, uma descrição geral um tanto ou quanto esquemática de sua formação pode ser feita, a qual teria de se ajustar e de ser qualificada, com as mudanças necessárias, a cada circunstância histórica e geográfica de Estados específicos, mas cuja dinâmica geral poderia ser considerada como razoavelmente válida para todos.

16. A diversificação das atividades produtivas e das funções sociais acarretava, mesmo nas sociedades mais primitivas, conflitos de interesses que tornavam necessária a existência de normas que disciplinassem as relações entre indivíduos e grupos e que, sendo aceitas, ou impostas, como válidas por todos, permitiam sua convivência social pacífica sem que fosse necessário recorrer permanentemente à força e à violência para garantir sua obediência.

17. A luta pela hegemonia (i.e. pelo direito de extrair riquezas naturais em um certo território e de nele organizar o trabalho humano) levava à sujeição de umas comunidades por outras e à definição de territórios e de suas fronteiras, dentro das quais essa hegemonia se exercia na prática pela definição de normas e pela capacidade de fazê-las aceitar se necessário pela força.

18. Naturalmente, os grupos hegemônicos em cada sociedade procuravam justificar e explicar sua hegemonia através de seus supostos vínculos com as divindades protetoras daquelas comunidades as quais lhes conferiam o direito de governá-las e, portanto, de elaborar as normas de conduta e de zelar pelo seu cumprimento.

19. As fronteiras separavam territórios geográficos dominados por distintos grupos hegemônicos cujos líderes procuravam acentuar as diferenças que existiam em termos de cultura, idioma, tradições e práticas religiosas entre as comunidades separadas por fronteiras e assim incentivavam a rivalidade e as noções de superioridade, que caracterizam os nacionalismos.

20. As fronteiras definem os limites físicos do exercício de hegemonia (de soberania) dos grupos e se estabeleceram no passado como resultado de processos de luta que vieram a se fixar em obstáculos naturais ao exercício eficaz da força, tais como mares, lagos, rios e cadeias de montanhas, obstáculos que contribuíram no passado, quando as distâncias eram muito significativas, para o desenvolvimento de tradições e idiomas distintos.

21. Na medida em que as sociedades se tornavam mais populosas surgia a necessidade de organizar instituições permanentes, encarregadas de elaborar as normas de conduta, de assegurar a obediência a elas e de financiar o seu funcionamento, através da coleta de tributos. Nas comunidades primitivas e menores, todos os indivíduos podiam participar da elaboração de normas sociais e todos podiam, em princípio, participar dos organismos sociais encarregados de zelar pela obediência a essas normas.

22. Na medida em que as comunidades cresciam em população e em que se diversificavam as atividades produtivas os indivíduos deixavam de poder participar diretamente dos processos de elaboração e de execução de normas e de solução de conflitos. Tornava-se necessário escolher representantes, para governar as sociedades através de sistemas cujas diferenças decorriam, como Aristóteles definiu na Política, de um julgamento aprioristico sobre a natureza humana. A questão básica, segundo Aristóteles, seria a de saber se todos os indivíduos seriam essencialmente iguais ou desiguais; e, caso desiguais, se uma família poderia ser considerada melhor do que as demais; ou se alguns indivíduos seriam considerados essencialmente melhores do que os demais. Dependendo da natureza desta convicção apriorística, os regimes políticos possíveis seriam a democracia, a monarquia e a oligarquia, com suas variações. É óbvio, todavia, que nunca houve um debate teórico sobre a natureza humana prévio à definição dos regimes políticos das comunidades humanas, primitivas ou não, os quais se definiram, isto sim, a partir do intenso conflito de interesses dentro de cada comunidade e da luta dos diversos grupos pela hegemonia.

23. De toda forma, mesmo na monarquia absoluta e nos regimes autoritários o rei ou o ditador não governa sozinho, não elabora as normas de conduta sozinho nem sozinho garante a obediência a elas. Tem ele de se fazer valer de auxiliares, nobres, ministros, apparatchiks ou que nome tenham, aos quais delega o exercício de parte de suas funções e prerrogativas e de cujo apoio político e militar necessita para se manter no poder. É possível imaginar que, no início, a escolha desses indivíduos se fazia principalmente no seio daquelas famílias dos grupos hegemônicos que organizaram inicialmente a comunidade e seus sistemas de produção e de defesa contra outras comunidades.

24. Os distintos regimes políticos, formas de governo, são apenas distintos sistemas de seleção dos representantes de uma comunidade para exercer as funções públicas e da forma de financiar o exercício dessas funções, que são legislar, executar e julgar. O conjunto de instituições que exercem essas funções de legislar, executar e julgar em nome do conjunto dos cidadãos de uma sociedade se chama Estado. Uma função essencial e preliminar do Estado é a organização de sua defesa em relação às pretensões territoriais de outros Estados e assim garantir a sua soberania sobre o seu território e a população que nele habita.
O Estado, ainda que em suas formas primitivas e de alcance pouco abrangente, é, portanto, essencial para a convivência pacífica dos diversos grupos de indivíduos que habitam um determinado território e para a defesa de seus interesses em confronto com outras comunidades organizadas sob a forma de Estado. Naturalmente que os sistemas religiosos, com suas normas de conduta social e com o poderoso instrumento de sua sanção divina, faziam parte integrante dos Estados.

25. O Estado moderno detém o monopólio do uso da força que é sua prerrogativa essencial e indispensável para a manutenção eficiente de um sistema de normas e de governo.

26. A evolução histórica das comunidades primitivas através de guerras, da conseqüente incorporação de territórios e de sujeição da população neles existentes levou eventualmente à constituição dos Estados modernos. Naquelas circunstâncias em que essa incorporação de território e de população não foi aceita se verificam hoje as reivindicações mais ou menos violentas por autonomia ou independência, tais como ocorrem na Espanha, na China, na Iugoslávia, na ex-URSS, no Canadá, na Bélgica e em tantos outros países.

27. Essa evolução histórica das comunidades e nações levou à constituição e à definição dos territórios dentro dos quais se exerce a soberania de cada um dos 192 Estados atuais membros da Organização das Nações Unidas, cuja convivência pacífica somente se pode dar com obediência aos princípios dos Artigos 1 e 2 da Carta: solução pacífica de controvérsias; direitos iguais e autodeterminação; respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais; igualdade soberana; abstenção de ameaças ou de uso da força contra a integridade territorial e a independência política de qualquer Estado.

28. A Revolução Francesa em 1789, a Revolução Russa em 1917 e a Revolução Chinesa em 1949, foram três grandes tentativas de modificação do sistema social e da organização do Estado, com enormes reflexos na história da humanidade: a primeira desencadeou o processo de eliminação dos direitos feudais e de transformação das monarquias absolutas na Europa (e de seus impérios coloniais, em especial na América Latina) ao afirmar que “cada povo é independente e soberano”; a segunda iniciou a primeira experiência de um modelo social e político alternativo ao capitalismo e ao liberalismo e reforçou, em competição com os Estados Unidos, que a advogava somente para os europeus, a idéia de autodeterminação dos povos; e a terceira iniciou o processo de transformação do Estado e da economia chinesa com as conseqüências que hoje fazem com que a China, ao crescer em média 10% ao ano nos últimos vinte anos, se tenha transformado na segunda maior potência econômica do mundo.

A visão do Estado no início do século XXI
29. A sociedade atual se caracteriza pela concentração de riqueza e de poder, pela transformação tecnológica acelerada, pela instabilidade social, pela ansiedade e frustração individual, pelo fundamentalismo religioso e pelo consumo de produtos que alteram a consciência, tais como o álcool, a cocaína, o ecstasy e outros narcóticos.

30. Nessa sociedade moderna, quer seja ela altamente desenvolvida ou subdesenvolvida, o controle do Estado, isto é, o controle do sistema de normas e de instituições que definem e garantem as características fundamentais do sistema de produção e que, não importa a razão, consagra certos privilégios, é essencial para as classes dominantes.

31. Todavia, no sistema democrático moderno, que é o resultado de uma história de lutas e de conquistas dos setores oprimidos da sociedade, a cada cidadão, conceito este que vem sendo definido de formas diferentes através do tempo e do espaço, cabe um voto no processo de escolha dos dirigentes do Estado. Por outro lado, no capitalismo a cada unidade monetária corresponde um “voto” no mercado e, portanto, as decisões sociais sobre o que produzir, como produzir, como consumir e os benefícios que decorrem dessas decisões se encontram altamente concentradas nas mãos das megaempresas, isto é, de seus acionistas-proprietários e de seus delegados, ou melhor empregados, os chamados executivos.

32. O grande e permanente desafio que tem de enfrentar os detentores do poder econômico na sociedade moderna de regime democrático em que a cada cidadão corresponde um voto consiste em como transformar poder econômico em poder político. Esta transformação é essencial para garantir a sobrevivência das normas fundamentais do sistema econômico e social e, eventualmente, para promover, à medida em que isto se torna necessário, sua modificação controlada, reformista e não-revolucionária, i.e. sem alterar as relações fundamentais de propriedade. Nos primórdios da democracia liberal tal desafio ainda não se colocava pois o regime era censitário, pois os indivíduos somente eram cidadãos na medida em que tinham certa renda, ou propriedade, ou pagavam impostos.

33. A primeira meta, portanto, no processo de transformar poder econômico em poder político, deve ser afastar a massa de cidadãos das atividades do Estado e da política, a qual é a atividade pela qual se controla o Estado, ou reduzir ao mínimo e controlar a participação dessa massa na política e no Estado. Assim, é necessário difundir uma imagem negativa do Estado e da política no seio da massa da sociedade mas certamente não entre os que compõem as suas elites.

34. A imagem do Estado que se difunde na sociedade atual, em que predominam os valores individualistas, exaltados pela mídia, pelo sistema educacional e até pelas religiões, é que o Estado é o moderno Leviathan, a fonte de todo o Mal.

35. De acordo com essa visão, a cobrança de impostos extorsivos (por menores que sejam em realidade) para alimentar uma burocracia parasitária, que se compraz em elaborar milhares de regulamentos inúteis e confusos, que estimulam a corrupção e tolhem a liberdade e a criatividade do indivíduo, puro e feliz originalmente, decorre da existência de um Estado que todos os dias infringe a liberdade individual e entorpece o desenvolvimento da sociedade. Esta visão, que persiste através dos séculos, se origina na crítica às práticas arbitrárias das monarquias absolutas do Renascentismo e do Iluminismo contra as quais a burguesia nascente e seus representantes políticos lutaram para poder implantar o capitalismo e o liberalismo como formas de organização econômica e política, em uma época anterior à revolução industrial e à revolução tecnológica.

36. Nesse Estado Leviathan do século XXI, reinaria maleficamente o político, o homem do Estado, o homem do Mal. Incompetente, é incapaz de enfrentar os males que afligem a sociedade; mentiroso, ilude os cidadãos a quem periodicamente atraiçoa; xenófobo, estimula os conflitos e corrupto, defende os interesses estrangeiros, ou os interesses dos poderosos ou os interesses dos incompetentes sociais que fracassaram na luta individualista pelo sucesso, enquanto se aproveitam das “vantagens” dos cargos que ocupam.

37. O desprezo e até o horror pela política (e pelos políticos) é sistemática e quotidianamente estimulado pelos meios de comunicação de massa, que procuram fazer crer aos integrantes das classes médias e trabalhadoras que a atividade política não é digna de um “homem de bem”, que este deve dedicar-se exclusivamente à sua atividade profissional seja ele um operário, um empregado, um técnico ou um profissional liberal, sob o risco de se corromper.

38. Na estratégia de estimular esse horror e desprezo (com o objetivo de afastar as “classes inferiores” da tentação de governar a sociedade) é necessário desmobilizar essas “classes”, desviar e distrair sua atenção, o que é tanto mais importante quanto mais desigual e excludente for a sociedade e, portanto, quanto maior for a ostentação de riqueza e mais gritante a miséria.

39. A distração da atenção das grandes massas trabalhadoras e das classes médias se faz pela criação de novos cultos e da promoção dos heróis desses novos cultos. A promoção desses novos cultos e a promoção desses novos heróis é feita através dos meios de comunicação de massa, em especial a televisão, e pela oferta maciça de entretenimento banal audiovisual, dos espetáculos musicais, dos folhetins, dos espetáculos esportivos, dos anúncios publicitários. A sociedade é a sociedade do espetáculo, onde tudo se transforma em espetáculo, inclusive a política.

40. O principal desses novos cultos é o culto do corpo, que se realiza através do “body building”, da engenharia plástica e das dietas corretas de alimentação (a dieta da sopa, das frutas, das proteínas, do tipo sangüíneo, das vitaminas...) e seus heróis são os atletas, os artistas e as modelos de moda, enquanto se deprecia o espírito e a cultura, mais pela omissão do que pelo ataque direto.

41. O segundo culto é o culto do dinheiro em que o empresário se apresenta como o grande herói, dinâmico, astuto, trabalhador incansável em busca do sucesso pessoal, e se procura convencer a todos que todos podem vir a se tornar empresários bem sucedidos e ricos, bastando seguir as estratégias descritas nos títulos da literatura de auto-ajuda empresarial: E se Harry Porter Dirigisse a General Eletric?, Casais Inteligentes Ficam Ricos, o Tao de Warren Buffet, Sun Tzu – a Arte da Guerra para os Executivos etc. O empresário é assim o herói que enfrenta o político vilão, é vitima e adversário do Estado, dá emprego às massas, é a favor da paz. Os heróis desses dois novos cultos são os modelos para os jovens e o escárnio dos idosos que já não podem ser atletas nem empresários, fracassados por não serem ricos e cuja experiência não tem valor na sociedade do novo e da obsolescência programada.

42. O mundo ideal, para os indivíduos da nova sociedade do século XXI, de onde são enxotadas as utopias, ridicularizadas sempre que propõem enfrentar as desigualdades sociais e modificar as estruturas de poder que as originam e mantêm, seria um mundo sem governos, sem violência, sem drogas, sem políticos, sem normas, sem impostos, onde todos seriam física e financeiramente bem sucedidos, atletas e empresários, um mundo em que, acima de tudo, o Estado não existiria.

O mundo real do século XXI
43. No mundo real do século XXI, existem 192 Estados e um número ainda maior de nações, e, portanto, trata-se de um mundo em que proliferam os conflitos e as divergências dentro e entre os Estados, e em que a elaboração permanente de normas e a atividade política incessante são realidades inescapáveis.

44. Não só existem hoje 192 Estados, mas o número de Estados vem crescendo desde que, em 1946, a Carta das Nações Unidas foi subscrita por seus Estados fundadores. Os Estados membros da ONU de 51 em 1946, passaram a 152 em 1980 e a 192 em 2008, e, à medida em que os nacionalismos se aguçam, estimulados ou naturais, outros Estados podem vir a surgir, como foi o caso recente do Kosovo, Estado de grande inviabilidade, mas que abre importante precedente, que afeta os interesses mais estratégicos dos Estados Unidos e da Europa. O estímulo aos nacionalismos locais na Europa enfraquece o novo nacionalismo europeu que se concretizaria na “cidadania européia”, ao tornar mais difícil a ação política da União Européia, enquanto que o estímulo aos nacionalismos na periferia tem o efeito de enfraquecer os grandes Estados como a China, a Índia e a Rússia. Politicamente, se fortalecem os nacionalismos o que enfraquece esses grandes competidores; economicamente, isto prejudica o processo de globalização ao multiplicar o número de Estados.

45. Os conflitos armados durante o século XX foram os mais sangrentos e destrutivos de toda a História da humanidade e o fim dos regimes comunistas, a cuja existência e ação se atribuía os conflitos entre Estados, não reduziu nem o número nem a intensidade desses conflitos.

46. O aumento do número de Estados decorreu certamente da vitalidade e do sucesso dos movimentos nacionalistas em sua luta contra a dominação dos impérios coloniais e contra os Estados sob cuja dominação se encontravam grupos nacionais irredentos, tais como ocorria na Checoslováquia, na Iugoslávia e na União Soviética.

47. A formação dos Estados foi certamente distinta na Europa, na América Latina, na África e na Ásia. Os Estados atuais, em especial na América Latina, onde as instituições das populações locais existentes à época da conquista ou foram totalmente eliminadas, como no caso do México e do Peru, ou eram frágeis, como no caso do Brasil, são o resultado muitas vezes da evolução do transplante de instituições européias feito pelas metrópoles para suas colônias.
Na África, século e meio mais tarde, as colônias tiveram fronteiras arbitrariamente traçadas que, mais tarde, sobreviveram ao processo de descolonização, separando etnias, idiomas e tradições e dando uma razão para os conflitos que, todavia, muitas vezes, tem sua verdadeira origem em disputas pela exploração de recursos naturais.
Na Ásia, a colonização européia se fez de forma mais indireta e encontrou sistemas políticos e administrativos muito mais sofisticados aos quais se superpôs. Hoje aquelas formas anteriores de organização, ou pelo menos seu espírito, sobreviveram nas organizações políticas do Estado asiático. Por outro lado, o atual processo de integração européia não é um processo de eliminação do Estado e de suas características fundamentais mas sim um processo de unificação gradual de Estados independentes que cedem parte da sua soberania aos órgãos supra-nacionais da União Européia.
Este é um fenômeno semelhante ao que ocorreu no passado na Alemanha e na Itália e nada tem a ver com alguma suposta tendência histórica ao fim das fronteiras mas sim corresponde a um redesenhar de fronteiras e de cidadania. Trata-se em realidade da formação gradual de um novo (e enorme) Estado em um processo semelhante, mas de nenhuma forma igual (pois os Estados, na União Européia, ainda conservam um número muito maior de prerrogativas soberanas) ao que sucedeu na formação dos Estados Unidos, da Alemanha e da Itália.

O capitalismo e a campanha pelo fim do Estado
48. O capitalismo moderno tem como fundamento a propriedade privada dos meios de produção e como objetivo principal o lucro. Este objetivo supremo torna indispensável a permanente expansão da produção a qual depende, por sua vez, da divisão do trabalho e, portanto, da extensão do mercado.

49. Quanto maior a extensão do mercado maior a possibilidade de divisão do trabalho, maior a produtividade, maior a produção, maior o consumo, maior o lucro e maior a felicidade humana, já que, conforme Jeremy Bentham argumentou, seria impossível medir o grau de felicidade humana e assim se poderia considerar que quanto mais bens o indivíduo (e a comunidade) puder consumir maior a sua “felicidade”. Daí a alegria com que se saúdam os incrementos do PIB, enquanto se constata o alto grau de insatisfação do indivíduo comum mesmo naqueles países mais desenvolvidos. Claro está que, para as massas de excluídos, o aumento de sua “felicidade” somente poderá ocorrer quando conseguirem alcançar patamares mínimos e dignos de consumo de bens físicos e culturais.

50. Assim, o capitalismo, como forma de organização da produção, da distribuição e do consumo de bens, desde os seus primórdios procurou ampliar os mercados através da incorporação de forma pacífica ou violenta de populações e de territórios ao seu sistema de produção e assegurar a existência de sistemas políticos de elaboração e de execução de normas que garantissem sua expansão e seu funcionamento pacífico.

51. Esse processo de formação de mercados, de início locais, em seguida regionais, depois nacionais, posteriormente continentais e, finalmente, globais foi interrompido no período que decorreu entre 1914 e 1989, em que se verificaram as duas Guerras Mundiais, a Grande Depressão de 1929 e a Revolução Bolchevique de 1917 que implantou o regime socialista na Rússia e que viria a se expandir para a Europa Oriental, a China e a Ásia. O processo de descolonização, por sua vez, iria em muitos Estados de independência recente levar à organização de sistemas de produção de economia mista com alto grau de participação do Estado, o mesmo tendo ocorrido na América Latina. Esses eventos fragmentaram de diversas formas a economia mundial, interrompendo o processo de globalização de mercados e de integração da economia mundial e chegaram a parecer a muitos analistas como o prenúncio de uma eventual, mas certa, derrota do capitalismo diante do comunismo.

52. A queda do Muro de Berlim, a retirada das tropas soviéticas da Europa Oriental e do Afeganistão, a desintegração da União Soviética em quinze Estados independentes, a adesão ao capitalismo dos antigos regimes comunistas europeus, a nova política econômica na China, a reorganização das economias das ex-colônias da periferia através das condicionalidades vinculadas ao processo de renegociação de suas dívidas externas, criou a oportunidade para que o processo de globalização, i.e. de formação de mercados globais fosse retomado com todo o vigor ideológico e prático, através da incorporação desses “novos” territórios.

53. O processo de globalização, no início do século XXI, que corresponde à expansão do capitalismo e a sua permanente transformação tecnológica, para ser eficiente (maximizar o lucro) requer a uniformização das normas que regulamentam a atividade econômica nos distintos territórios soberanos. Exige também, retirar da arena da política a questão econômica, estabelecendo como verdade absoluta e intocável a política neo-liberal em seus preceitos fundamentais de propriedade privada e de livre jogo das forças de mercado que exigem, em conseqüência, programas de privatização (que chega até à segurança e aos presídios), de desregulamentação e de abertura comercial e financeira, de redução de impostos sobre o capital e de não-discriminação entre capital nacional e capital estrangeiro.

54. Para auxiliar de forma poderosa esta uniformização de normas nada mais útil do que a elaboração de teorias que advoguem o fim dos Estados nacionais (e dos nacionalismos), o fim das fronteiras, os benefícios do Estado-mínimo, acompanhados da negociação de normas internacionais que levem à adoção pelos Estados soberanos (na impossibilidade de sua sujeição política pela força) daquelas políticas neoliberais, tornando ilegais, e até “absurdas”, quaisquer políticas diferentes. Finalmente, a idéia de que a globalização econômica para ser eficiente depende de uma governança política global que assegure seu funcionamento e impeça tentativas nacionais de reversão e de limitação dos direitos de ação das mega-empresas multinacionais. Todavia, paradoxalmente, o próprio processo de globalização na medida em que não existe um Estado mundial, necessita de Estados nacionais para internalizar as normas negociadas internacionalmente e garantir sua vigência.

55. Na periferia do sistema econômico e político mundial, onde se encontram os Estados que são ex-colônias, tais como o Brasil, as disparidades de renda e de poder são extraordinárias dentro de seus territórios assim como entre essas ex-colônias e os países que integram o centro desenvolvido e poderoso do sistema internacional. As crescentes disparidades de poder entre o centro e a periferia do sistema, que podem ser constatadas pelo crescente hiato de renda per capita e de acúmulo de capacidade militar entre Estados desenvolvidos e Estados em desenvolvimento, fazem com que os Estados, única entidade na periferia capaz de enfrentar o poder das mega-empresas multinacionais, das agências “internacionais” e dos Estados desenvolvidos, sejam obrigados, para manter a convivência pacífica entre os setores da população atingidos pelas políticas neo-liberais dentro de seus territórios, a procurar executar políticas de desenvolvimento e de combate à pobreza que, muitas vezes, significam restrições ao processo de formação de mercados globais e ao livre jogo das forças de mercado.

56. Tais políticas são chamadas de nacionalistas e “populistas” e seus defensores são acusados, criticados e ridicularizados pela imprensa a qual, hoje na prática, é constituída por empresas multinacionais de entretenimento e informação e se encontram intimamente vinculadas às megaempresas multinacionais e delas dependentes, em conseqüência não só de seus interesses ideológicos comuns, na qualidade de empresas privadas que são, como pelo sistema de anúncios.

57. Os desequilíbrios de população, território, produto, forças armadas e desenvolvimento tecnológico entre os países do centro e os países da periferia tornam na prática impossível e utópica a idéia de governo mundial a qual é convenientemente substituída pela idéia de governança global, a qual na prática vem a ser exercida pelos organismos internacionais que foram criados após a II Guerra Mundial para assegurar a paz, a segurança política e a estabilidade econômica ou, quando estes organismos por uma razão ou outra se verificam insuficientes ou se tornam inconvenientes, por novas agências internacionais, ou multinacionais, a serem criadas.

58. As tentativas permanentes dos Estados no centro do sistema de impor suas políticas econômicas e sociais, as crescentes assimetrias de riqueza e de poder entre as sociedades do centro e as da periferia, o crescente hiato entre elas, e a tentativa dos Estados do centro de impor à periferia, pela violência ou pela pressão econômica, mudanças de regime político e econômico fazem ressurgir com mais força os movimentos anti-globalização e os nacionalismos.

59. Os atentados de 11 de setembro de 2001 assim como os movimentos migratórios constantes, decorrentes de diferença de oportunidades para os indivíduos entre a periferia e o centro, a que se somam ondas migratórias periódicas decorrentes de conflitos e de catástrofes naturais fizeram ressurgir nos países altamente desenvolvidos os nacionalismos xenófobos.
Por outro lado, o desenvolvimento econômico na China e na Índia acrescentou uma forte demanda por energia, alimentos e minérios o que levou à acumulação de enormes reservas pelos países exportadores de petróleo, de gás, de minérios e de commodities agrícolas. A decisão desses países de investir tais recursos (dos “fundos soberanos”) em empresas dos países do centro do sistema mundial, tem provocado um movimento inédito que procura impor restrições aos fluxos de capital estrangeiro que se dirigem aos países centrais, cujos dirigentes e analistas argumentam serem estas restrições necessárias por razões políticas estratégicas.

60. Essa rápida expansão da demanda por energia, por minérios, por alimentos de parte de países como a China e a Índia, que resultou de sua legítima aspiração de atingir níveis de consumo dignos para suas populações que correspondem, somadas, a mais de um terço da população mundial, agregada à demanda das sociedades ocidentais, tem enorme impacto sobre o meio ambiente, em especial sobre a mudança climática, cujos efeitos, para serem evitados, tornariam quase que imprescindível uma maior intervenção do Estado na economia, o que afetaria o dínamo físico e ideológico do capitalismo.

61. Todavia, a academia, os organismos internacionais, a imprensa e os governos dos países altamente desenvolvidos permanecem convictos de que, para os países da periferia, o nacionalismo, que é o oposto do cosmopolitismo globalizador, e o populismo, que é o oposto do liberalismo radical, são dois males gêmeos a serem atacados e erradicados a qualquer preço. Para esses países subdesenvolvidos o melhor, para o seu bem (ou mal) seria se entregarem aos caprichos das vagas violentas da globalização radical e selvagem, cujos méritos são louvados dia e noite apesar das crises econômicas decorrentes da desregulamentação, da especulação dos mercados financeiros, do crescente hiato econômico e social entre o centro e a periferia do sistema e do renascer nos países centrais do nacionalismo econômico e do nacionalismo xenófobo contra os imigrantes da periferia. Periferia sempre vista como inferior por ser negra, índia ou amarela, bárbara, infiel e turbulenta.

62. Não obstante, os Estados da periferia, superadas as ilusões do fim da União Soviética, de uma Nova Ordem Mundial e dos benefícios da globalização, prosseguiram em seus esforços de desenvolvimento econômico, como no caso da China; de afirmação política, como no caso da Índia, e de luta contra a pobreza, como no caso do Brasil. Passaram a coordenar sua ação internacional, propugnando a reforma das Nações Unidas e do órgão central do sistema político-militar internacional, que é o seu Conselho de Segurança; a reforma do sistema comercial mundial através da atuação do G-20 na Rodada de Doha; a organização de blocos de Estados, como no caso da União Africana; a reforma do sistema de combate à mudança do clima e da matriz energética. Somente através de sua ação coordenada poderão defender seu direito ao desenvolvimento e à independência política em um sistema mundial que se caracteriza pela instabilidade econômica, pela violência dos poderosos, pelo desespero dos fracos, pela pobreza e riqueza extremas e pela ameaça à sobrevivência da humanidade.

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