terça-feira, 23 de março de 2010

Pensar a crise com Emmanuel Mounier

"Emmanuel Mounier (foto), fundador da revista Esprit, prematuramente falecido aos 45 anos, no dia 22 de março de 1950, se dedicou, diante da 'grande crise', a uma análise espectral da desordem econômica, tendo ao mesmo tempo a preocupação de perscrutar suas causas profundas, que são, a seu ver, da ordem do 'espiritual'." Essa é a opinião de Guy Coq, presidente da Association des Amis d'Emmanuel Mounier, Jacques Delors, ex-presidente da Comissão Europeia, e Jacques Le Goff, professor de direito público da Universidade de Brest, em artigo para o jornal Le Monde, 22-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




 
Michel Serres compara a crise atual a uma falha gigantesca no nível das placas profundas que se movem lentamente e se rompem imprevistamente nos abismos tectônicos invisíveis. Seria um erro, diz, localizar seu epicentro na superfície, no visível financeiro e econômico. Situa-se em um nível muito mais profundo, na escolha dos valores de orientação que constituem o ethos de um tipo de sociedade, no sentido contrário de acreditar que uma sociedade viva só de pão e de jogos, de economia e de espetáculo, de poder de aquisição e de mídia. Uma opção tão indigente expõe fatalmente um grave desvio.

Lendo Michel Serres, pensa-se em Emmanuel Mounier, fundador da revista Esprit, prematuramente falecido aos 45 anos, no dia 22 de março de 1950. Diante da grande crise, ele se dedicou a uma análise espectral da desordem econômica, tendo ao mesmo tempo a preocupação de perscrutar suas causas profundas, que são, a seu ver, da ordem do espiritual.

Sem conotação religiosa explícita, essa palavra designa o conjunto das escolhas antropológicas que estão no fundamento de uma sociedade. Responde à pergunta que quase se perdeu de vista: que tipo de existência individual e coletiva queremos, que não se feche na busca vã de uma "felicidade" reduzida à maximização do prazer, do poder, do dinheiro, do corpo ou do conforto? De onde deriva o fato de que as condições de acesso ao bem-estar tenham se transformado em fins tirânicos?

Um discurso de uma boa alma, se dirá, indiferente ao drama daqueles que se chocam com as dificuldades da existência! Nada disso. Geralmente só aqueles que não são mais obsessionados pela neurose do pão cotidiano desprezam o aspecto econômico, lembra Mounier. Para convencê-los, seria preferível um passeio pela periferia do que argumentos. Mas logo acrescenta: Disso não deriva que os valores econômicos sejam superiores aos outros: o primado do aspecto econômico é uma desordem histórica da qual é preciso sair.

E essa desordem estabelecida resulta, a seu ver, de um erro inicial sobre o homem, de uma terrível subversão, da qual ele encontra três manifestações patológicass:

1. O autismo do mercado que, sob a aparência de uma pseudoneutralidade moral, se elevou a timoneiro da sociedade com a usurpação das funções de governo. Se lhes cabia contribuir com a regulação dos fluxos, por que então esse motor cego por natureza se arrogou a condução das coisas humanas, senão graças à abdicação do político em nível nacional e internacional e à renúncia da sociedade? Tendo se tornado um barco à deriva, não é preciso se admirar que a economia capitalista tenda a se organizar completamente, fora da pessoa, sobre um fim quantitativo, impessoal e exclusivo.

Privado de uma direção razoável e de esfriamento pelo social, pelo ecológico, pelo cultural, pelo ético, esse motor chegou naturalmente a se levantar como instância suprema de sentido, ao preço de um nonsense destrutivo que está quase hipotecando o próprio futuro do planeta. O homem contemporâneo se crê absurdo. Talvez seja só insensato.

2. Nada revela melhor essa falta de regras do que a tendência tão geral de eliminar qualquer pergunta sobre o que Mounier chamava de ordem das necessidades, sobre o conteúdo da riqueza. Quais são as necessidades humanas cuja satisfação contribui com a realização da nossa vocação em uma perspectiva de cumprimento?

Pergunta estranha, se dirá! Na democracia, não cabe talvez a qualquer um saber onde se encontra a sua própria felicidade? E com qual direito uma sociedade se atribuiria a competência em um âmbito que cabe à livre disposição de cada cidadão? Viu-se qual resultado se obteve nos regimes que pretendiam impôr uma nova hierarquia das necessidades que se considerava derivar de um projeto libertador!

Não se trata disso. A preocupação de Mounier, como mais tarde a de Jacques Ellul, de Ivan Illich ou até de Jean Baudrillard, objetivava destruir o quieto torpor que nos faz considerar como livre o que, na realidade, é só uma normalidade imposta por uma mecânica louca, que se joga sobre o duplo registro da sedução e do sentido de culpa. E isso ao preço de uma corrida desenfreada a satisfações sempre mais fictícias e ao preço do esquecimento das necessidades fora do mercado, fora das relações monetárias: a atenção, a disponibilidade, a qualidade das relações interindividuais e sociais, a presença e o empenho na pólis, todos valores que fogem à ordem do quantificável e que se referem ao essencial.

A força de reflexão do fundador da Esprit está na sua capacidade de sacudir e de desencantar para nos arrancar do sonho de olhos abertos gerador de inquietação, de tensão estéril, de indisponibilidade seja com relação aos outros, seja com relação a si mesmo, em resumo, da alienação, para recolocar os pés sobre o chão do indispensável, sobre o núcleo duro da pessoa, em que o espiritual, verdadeira infra-estrutura, diz ele, encontra o seu lugar. Sem ponto de vista externo ao sistema, nada é possível.

3. É também a condição de libertação com relação ao trabalho. De onde vem de fato a manutenção da sua influência anormalmente intensa sobre a sociedade senão, por uma parte essencial, da espiral constantemente ascendente das necessidades e dos desejos infinitos? Trabalhar mais para ganhar mais é a sua máxima. Mas para que serve tudo isso quando o nível de vida alcançado é satisfatório? Para que serve?, dizia Jacques Ellul. É o problema não da frugalidade, mas da moderação dos desejos materiais além de um certo limiar. Mounier indicava a direção. Regular o consumo sobre uma ética das necessidade humanas recolocada na perspectiva total da pessoa.

Essas afirmações remontam a 1936. A sua pertinência provavelmente nunca foi tão forte.

domingo, 21 de março de 2010

Luís Carlos Lopes

Moral, política e humanidade

Vivemos em um mundo que tenta padronizar a todos, transformados em algo próximo às mercadorias que estão disponíveis na modernidade. Urge que estes objetos sejam usados a favor da espécie e não como armas de autodestruição coletiva. Artigo de Luís Carlos Lopes,  professor e autor do livro "Tv, poder e substância: a espiral da intriga", dentre outros.
Fonte: Carta Maior



Todo o ser humano é único e original. Não há ninguém que seja, com exceção dos embustes que induzem ao erro, uma cópia exata de outra pessoa. Os gêmeos univitelinos são muito parecidos, entretanto, são pessoas únicas, por vezes muito diferentes entre si, apesar de fisicamente bastante semelhantes. Mesmo que a ciência, nos limites de hoje, permita a clonagem dos genes de uma pessoa e consiga teoricamente fazer uma cópia exata de alguém, não é possível copiar as memórias e o caráter de cada um. Se no futuro, como se vê na ficção, torna-se viável enxertar as memórias retiradas de outros, transferir o caráter de alguém seria uma operação de difícil realização.

O cerne do caráter de cada indivíduo está na moral, isto é, naquilo que ele acredita como certo ou errado e no modo que ele utiliza o que sabe. Muitos conhecem as mesmas coisas, mas tiram conclusões diferentes, por vezes, opostas. Não há como imaginar a clonagem da capacidade humana de decidir, de interpretar e de escolher o seu próprio caminho, dentro dos limites disponíveis para tal. A unicidade e originalidade de cada um são reafirmadas na multiplicidade de caminhos escolhidos nos mesmos contextos ou em situações diferentes.

É verdade que as pessoas podem deixar para outros a prerrogativa de tomar decisões. É comum que existam seres humanos que se achem incapazes de decidir suas próprias vidas. A moral convencional ensina que os soberanos, os pais, os mestres e os deuses são mais aptos. Entretanto, não há como evitar que alguns se rebelem contra qualquer tipo de autoridade que lhes oprima e que busquem trilhar seus próprios caminhos na vida. Os regimes tirânicos e as democracias formais do tempo presente estão longe de dar a todos a mais completa liberdade de decisão. O voto pode ser comprado e a guerra decidida em gabinetes fechados. A opinião comum é uma mercadoria especial comercializada livremente na modernidade. Trata-se do principal artigo vendido nas mídias contemporâneas. Nem sempre os vendedores conseguem sucesso total. Mas, tentam diariamente vender ou revender.

A unicidade e a originalidade das pessoas são fatos de grande impacto social. Estabelecem diferenças e modulam o caráter complementar de cada indivíduo no tecido social. Nem todos conseguem aprender a tocar instrumentos, cantar de modo virtuoso ou se rebelar contra a ordem. Existem, felizmente, os mais corajosos e os mais inteligentes. Há quem tenha mais força e proteja os mais fracos, bem como, estão sempre presentes os mais empáticos, isto é, os capazes de sentir o mesmo que os outros sentem. Apenas, alguns são individualistas, irascíveis e antipáticos. A grande maioria prefere viver junto aos seus, tal como seus antepassados, ou buscar um novo espaço onde sejam mais bem acolhidos. O gregarismo é uma das qualidades da espécie. Este traço permitiu que ela chegasse ao tempo presente, depois de mais um milhão de anos de evolução.

Este mesmo traço gregário levou que na França do século XVIII se entendesse que todos os homens eram iguais em essência. Ninguém seria melhor do que os outros por descender de uma família aristocrática, por ter “sangue azul”. A igualdade entre os homens, a partir da Revolução de 1789, foi compreendida de vários modos. Os liberais a viram como a igualdade frente à lei e o novo tipo de Estado eleito pelo povo. Outros estenderam o conceito à idéia de igualdade social que viria a desabrochar no século seguinte, nos ideais socialistas. Muito rapidamente, os liberais e outros assemelhados tornaram-se tão cínicos quanto os velhos aristocratas, aceitando o princípio de se usar artifícios da lei para protegerem os seus pares. Alguns privilégios aristocráticos foram transferidos sem qualquer pudor para as novas classes burguesas e proprietárias. Nos países onde jamais houve uma revolução, é comum que eles se achem parte de uma nova espécie de nobreza, obviamente, de araque.

A unicidade e a originalidade dos seres humanos existem para o bem e para o mal. Adorno falou em um de seus textos que os nazifascistas mais disciplinados não eram pessoas comuns. Portavam certas características que permitiam a assunção desta ideologia. Não é qualquer pessoa que pode ser um torturador ou alguém especializado em mentir sistematicamente através de um meio de comunicação qualquer. As pessoas são recrutadas para certas funções por terem características que as tornam aptas para desenvolver as tarefas requeridas. A flexibilidade moral permite que algumas pessoas façam coisas repugnantes aos olhos dos demais seres humanos. Existem os ainda piores que decidem e mandam outros executar o que sujaria suas mãos de sangue.

A não ser nos casos em que a loucura se instala de modo devastador, as pessoas sabem o fundamental do que é certo e do que é errado. A humanidade produziu padrões histórico-culturais que ensinam a todos que não se deve matar ninguém, sem que exista um motivo muito forte para tal. O roubo e o furto só são humanísticamente aceitáveis, quando se vinculam a atos de justiça social ou relacionados à manutenção da sobrevivência. A apropriação de coisas dos outros da mesma comunidade, tal como fazem os corruptos, é algo moralmente insustentável. A intriga e a cizânia são repudiadas há muito tempo, infelizmente, continuam sendo fortemente usadas pelas mídias e por algumas pessoas como recurso de manipulação.

A pilhagem dos inimigos sempre foi justificada como ato de guerra, como uma forma de castigar duplamente e duramente os derrotados. Mas, foi comum a ambigüidade no assunto, quanto mais os inimigos eram próximos de seus antagonistas. Foi preciso que fosse inventado o racismo, isto é, o ódio étnico e a idéia de povos superiores e inferiores para justificar a barbárie em suas múltiplas variações antigas e atuais. As ditaduras latino-americanas esconderam as torturas que praticavam e os que executaram – os desaparecidos – por não poderem assumir publicamente os seus crimes, temendo a condenação política e moral de seus atos. Sabiam que não poderiam, no mundo do pós-guerra, sustentar publicamente a barbaridade praticada. Mesmo no nazifascismo, bem menos “cuidadoso”, nem tudo era de amplo conhecimento público. A verdade dos campos de concentração era conhecida por uma grande quantidade de pessoas que viviam nos países invasores e ocupados, entretanto, o mundo só veio saber detalhes quando a guerra acabou, em 1945.

Quebrar o gregarismo humano consiste em romper com a própria natureza humana, na essência cooperativa e capaz de enormes sacrifícios para ajudar o outro. Viu-se, no episódio do Haiti, como antigos ódios étnicos podem ficar em suspenso, mesmo que por um átimo, quando o cerne da sobrevivência humana é afetado. Há alguma hipocrisia nisto tudo? Sim, ela existe. Por outro lado, as tragédias dos outros acabam por comover e criar a compaixão em corações embrutecidos pela propaganda e pelas crenças nas superioridades de alguns povos sobre outros.

A esperança que mora no fundo da caixa de Pandora é que a unicidade e a originalidade de cada ser produzam os que contribuam para melhorar o destino da humanidade. Sabe-se que é comum acontecer o contrário. Há um esforço da tradição e da conservação de impedir que as novas gerações levantem a bandeira da mudança. Vive-se em um mundo que tenta padronizar a todos, transformados, na lógica do espelho, em algo próximo às mercadorias que estão disponíveis na modernidade. Elas não são simples artefatos agregados às pessoas. São muito mais do que isso. Estes objetos representam o trabalho humano concentrado em uma coisa, bem como, a palavra materializada em minerais e compostos de origem orgânica. Urge que sejam usados a favor da espécie e não como armas de autodestruição coletiva. Recuperar uma moral de interesse coletivo significa também problematizar o mundo atual.

[grifos do blog]

quarta-feira, 17 de março de 2010

Alfredo J. Gonçalves

(na foto ao lado, exemplo de tortura em nome do Estado, no caso, o norte-americano; não é exagero afirmar que vivemos em tempos de uma hipocrisia sem limites. Enoisa)

Direitos Humanos: dois pesos e duas medidas

"Ditadura é sempre ditadura, resistência é sempre resistência. Podemos questionar o grau, as motivações, as formas e as estratégias de luta. Mas nunca criminalizar os movimentos de oposição que procuram a defesa, a conquista ou a garantia dos direitos humanos. Menos ainda ressuscitar o espectro da ideologia de segurança nacional, isto é, comparar as lutas sócio-políticas a atos de delinqüência comum", escreve Alfredo J. Gonçalves, assessor das Pastorais Sociais, em artigo publicado por Adital, 15-03-2010.
Fonte: UNISINOS


Comparar os presos políticos de Cuba aos prisioneiros comuns do Brasil foi mais um dos deslizes do presidente Lula. Não se trata apenas de "uma frase infeliz", mas de uma postura que levanta interrogações mais sérias e profundas. Por que um dissidente de determinada ordem institucional é qualificado de preso político sob um regime, enquanto, sob outro, ele não passa de um simples criminoso? Por que é protegido de um lado e criminalizado de outro? Por que dois pesos e duas medidas? Mais grave ainda: por que alguém que fez uso dessa forma de luta hoje a equipara aos crimes mais banais do cotidiano?

A defesa dos Direitos Humanos está acima das fronteiras políticas e ideológicas. Coloca-se para além das bandeiras e hinos nacionais. Desconhece as diferenças entre raças e culturas e está acima da religião, do sexo ou da cor da pele. A integridade física e psicológica de uma pessoa, a liberdade de opinião e expressão, o mínimo vital para a sobrevivência são coisas que devem ser preservada a qualquer custo. O respeito aos direitos primordiais da pessoa humana representa, simultaneamente, uma herança dos regimes democráticos e uma exigência ética dos princípios evangélicos e de várias outras opções religiosas.

A greve de fome, por outro lado, constitui não raro o último recurso contra a ordem estabelecida. Tem uma história longa de resistência e teimosia. Muitos exemplos poderiam ser enumerados, inclusive o do então metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. O mais recente na memória do povo brasileiro, sem dúvida, é o de Dom Frei Luiz Flávio Cappio, bispo de Barra - BA, em sua luta contra a transposição das águas do Rio São Francisco. Constituem formas extremadas de opositores que não dispõem de outras armas para lutar.

Confundir estes atos solitários e heróicos com as ações violentas do crime organizado é algo inaceitável, para dizer o mínimo. A privação livre do alimento enquanto forma de oposição a formas ou decisões totalitárias de governo, desde um ponto de vista moral, não tem base de comparação com o comércio de drogas, os assaltos à mão armada, o latrocínio e outros crimes do gênero. A greve de fome ou a greve em suas variadas conotações carrega um anseio de transformação social, política, econômica ou cultural. De alguma forma, está alicerçada num sonho de justiça e paz. Já o crime, embora possa ter motivações de natureza sócio-política, como a pobreza e a miséria, entre outras, traz sempre a marca de uma violência que tende a estender-se em cadeia espiral.

Só para recordar, os combatentes do regime stalinista ou nazi-fascista, bem como os opositores das ditaduras militares latino-americanas, deixam na história pegadas vivas na luta pela defesa dos direitos humanos. Desnecessário aqui citar nomes, eles estão à flor da memória. O mesmo não se pode afirmar dos chefes do crime organizado em nível mundial. Sua passagem deixa como pegadas nefastas a destruição de vidas, de famílias e às vezes de populações inteiras. Uma coisa é opor-se a qualquer tipo de totalitarismo: religioso, político, econômico ou cultural. Bem outra é o tráfico de drogas, armas, seres humanos ou órgãos para transplante.

Em síntese, ditadura é sempre ditadura, resistência é sempre resistência. Podemos questionar o grau, as motivações, as formas e as estratégias de luta. Mas nunca criminalizar os movimentos de oposição que procuram a defesa, a conquista ou a garantia dos direitos humanos. Menos ainda ressuscitar o espectro da ideologia de segurança nacional, isto é, comparar as lutas sócio-políticas a atos de delinqüência comum.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Laurent Jeanpierre - A ideia de justiça’ de Amartya Sen

Uma sociedade mais justa é possível? Esta questão está no centro dos debates públicos desde as revoluções americana e francesa. Ela representa também um dos grandes problemas da filosofia política. Um dos intelectuais mais influentes do mundo, Amartya Sen (foto), entrega agora a sua teoria da justiça. ‘L’Idée de justice’, último livro de Amartya Sen, acaba de ser lançado na França pela Flammarion (558 p.). A resenha é de Laurent Jeanpierre e está publicada no Le Monde, 21-01-2010. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



O economista indiano distingue, em primeiro lugar, duas famílias de pensamentos. De Hobbes a Kant passando por Locke e Rousseau, a primeira “se concentrou sobre a busca de dispositivos sociais perfeitamente justos”. Ela culminaria com o filósofo americano John Rawls (1921-2002), a quem o livro é dedicado. Mas haveria uma outra tradição, aquela que vai de Adam Smith a Marx passando por Condorcet e John Stuart Mill, para a qual a questão da justiça só pode ser revolvida na “comparação entre os diversos modos de vida que as pessoas poderiam ter” sob o efeito de diferentes instituições.

Ora, para Sen, as hipóteses de Rawls, que redefinem a justiça como “equidade”, são criticáveis por recorrerem a “uma simplificação arbitrária e radical de uma imensa e multiforme tarefa: harmonizar o funcionamento dos princípios de justiça e o comportamento real das pessoas”. A tradição à qual Sen se conecta visa menos buscar princípios de justiça pura do que limitar na prática as “intoleráveis injustiças”: a luta contra a escravidão travada pela revolucionária inglesa Mary Wollstonecraft e outros, no século XVIII, explica ele, não se fez “na ilusão de que abolir a escravidão tornaria o mundo perfeitamente justo”. Mais amplamente, Sen invalida na filosofia política todas as condutas desviantes que visam a encontrar procedimentos ideais para obter uma diminuição das desigualdades.

Seu método decorre da seguinte constatação: existe sempre uma pluralidade de sistemas de valores e de critérios para pensar a justiça. A este respeito, ele dá um exemplo. No caso de uma flauta que é preciso dar a apenas um de três meninos. O primeiro declara merecê-la porque ele é o único que sabe tocá-la; o segundo argumenta que ele é o único a não ter brinquedo; o terceiro afirma que fabricou o objeto com suas próprias mãos. Nesse caso, a atribuição é impossível de efetuar sem contradizer ao menos um princípio de justiça. Para Sen, uma resolução não violenta deste tipo de conflito não pode vir de uma instituição, mas apenas de uma deliberação pública.

Mas ela implica também que se tenha antes excluído os critérios não pertinentes para medir a justiça. É sobre este tema em particular que a filosofia de Sen se apóia sobre a sua teoria econômica heterodoxa. Assim, Rawls novamente é criticado, mas desta vez por ter definido a justiça como distribuição equitativa dos bens. De acordo com Sen, as maneiras de utilizar esses bens e de se beneficiar deles para aumentar a sua capacidade de agir são diferentes segundo as disposições dos indivíduos e seus meios sociais.

Ter um carro, por exemplo, não constitui para todos o que Sen chama de “capacidade” [o conceito inclui a oportunidade], isto é, uma possibilidade de melhorar efetivamente sua sorte em uma direção desejada. Este carro só será convertido em liberdade concreta por uma pessoa que tem carteira de motorista e que busca a mobilidade, em uma sociedade em que a circulação é livre e onde os engarrafamentos e a poluição não a tornam mais custosa que desejável. “A vantagem de uma pessoa, escreve Sen, é julgada inferior a uma outra se ela tem menos capacidade – possibilidades reais – de realizar aquilo a que ela tem razões de atribuir valor”. As questões de justiça não podem, portanto, ser reduzidas a problemas de distribuição das riquezas, muito menos às diferenças de bem-estar percebidas.

“Pluralismo refletido”

Dessa maneira, Sen situa a igualação das liberdades concretas entre indivíduos no centro de toda busca de justiça. Contudo, ele se opõe aos filósofos liberais, que consideram que qualquer diminuição das desigualdades que cerceiam as liberdades seria ruim. Para ele, esta prioridade dada à liberdade não seria capaz de constituir um absoluto, porque a igualdade, assim como a liberdade são apreciadas e desejadas diferentemente pelos indivíduos. Segundo esse “pluralismo refletido”, o progresso da justiça é inseparável do aprofundamento da democracia, entendida como a deliberação mais ampla possível.

Cosmopolita, o autor se inspira aqui em culturas filosóficas ocidentais e orientais, e especialmente indianas. Ele propõe comparar as liberdades entre indivíduos assim como entre as sociedades, e isso contra o ponto de vista atualmente dominante daqueles que consideram que a definição da justiça é relativa a cada cultura ou que ela só pode ser exercida plenamente no quadro de uma comunidade religiosa ou nacional fechada.

A obra convida a reforçar as possibilidades democráticas reais, e primeiramente dos espaços de deliberação pública. O livro termina com uma rica reflexão sobre o isolamento sofrido pelos indivíduos, e que aparece em definitiva como o elemento mais pernicioso à justiça. Para Sen, trata-se de imaginar uma diminuição das desigualdades e um progresso da justiça social em escala mundial, sem esperar um hipotético e bem improvável Estado mundial.

Para além de uma tradução muitas vezes pesada e das numerosas repetições de uma obra mal composta, alguns leitores certamente levantarão a seguinte questão: no final de seu percurso, o autor não troca o idealismo dos teóricos da justiça por aquele dos teóricos da democracia, ao prestar muito pouca atenção às condições de acesso dos indivíduos à discussão pública? Portanto, a força desse livro está precisamente em que essas objeções podem contribuir para consolidar seu argumento sem desfazê-lo. Ele oferece um caminho mais realista que muitos outros pensadores políticos para fazer, como convidava Pascal em sua célebre fórmula, com “que o que é justo seja forte” em vez de “o que é forte seja justo”.

Entrevista - Jean-Paul Fitoussi

''A democracia é igualdade''


Jean-Paul Fitoussi (foto) chega a Turim, na Itália, para apresentar a primeira conferência do ciclo dedicado a Norberto Bobbio. Perguntamos sobre qual lição ele aprendeu do filósofo turinense: "Que no centro está a questão da igualdade que explica ao mesmo tempo os conflitos entre os homens e aqueles com a natureza". Fitoussi é principalmente um economista, daqueles, porém, que não raciocinam apenas em base aos decimais do PIB. A igualdade é um valor matemático, mas também político. A economia, na sua parte contábil, seria uma ciência simples ("Não há problemas", diz ele), mas é a política que deve assumir suas responsabilidades. Principalmente neste canto do mundo que se chama velha Europa. A reportagem é de Cesare Martinetti, publicada no jornal La Stampa, 02-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Professor Fitoussi, como funciona uma democracia?

Uma democracia, para sê-la, deve continuamente vigiar sobre o grau de igualdade entre os seus cidadãos. Bobbio dizia isso que me parece decisivo para a sua colocação à esquerda, porque de um certo modo a esquerda é imanente à democracia que é baseada em uma ideia de igualdade.

O senhor acha que a crise financeira teve efeitos sobre a democracia no mundo?

Não acredito que os regimes políticos tenham mudado, mas o que ficou claro é que a economia de mercado não pode sobreviver sem um regime político. A separação entre economia e política revelou ser uma ilusão. E deve ser dito que a democracia fez o seu trabalho, de modo imperfeito, mas o fez.

Qual é o resultado desse trabalho?

Evitou que uma regressão do PIB se transformasse em uma catástrofe, como ocorreu nos anos 30. A política assumiu suas responsabilidades, todos os regimes democráticos em nível mundial intervieram, salvaram os bancos não para salvar empresas, mas para evitar consequências desastrosas ao sistema, como a perda da poupança para os cidadãos, tentou relançar a economia.

Mas nem todos os governos democráticos agiram do mesmo modo. Quais foram os mais eficazes?

Quando se faz a comparação entre o esforço que foi feito nos Estados Unidos e no Japão e o que foi feito na Europa, é preciso dizer que, mesmo que tenha funcionado, e funcionou, a democracia europeia foi menos eficaz do que a norte-americana.

Por quê?

Porque a Europa é doutrinal e, portanto, presta atenção principalmente à estabilidade dos preços, ao déficit público e à concorrência. Por isso, não deliberou um plano de estímulos econômicos à altura do que se podia esperar. A causa de tudo isso é que a Europa é prisioneira de uma armadilha que construiu por si só e que se chama ausência de democracia.

O que isso significa, praticamente?

Que, quando um país europeu, a Itália, por exemplo, toma a decisão de relançar a economia, deve saber que essa decisão terá talvez efeitos mais positivos sobre a França ou sobre a Alemanha do que sobre a Itália. O país que tem uma política de relançamento paga isso em termos de balança, enquanto os outros gozam seus benefícios.

Mas não se pode relançar a economia sem aumentar o déficit?

Se você tem um jeito para fazer isso, é um gênio. A Europa tem uma dívida e um déficit muito inferior aos Estados Unidos e ao Japão, é uma espécie de paraíso das finanças públicas. Porém, os especuladores atacam a Europa.

Por quê?

Porque não existe um governo europeu. A União Europeia paga um preço econômico pela sua falta de política.

A impressão é de que, na ausência desse governo, esteja se reformando o eixo franco-alemão. É assim?

Não acredito, porque há um desacordo de fundo em nível de teoria econômica entre a Alemanha e a França. Fingem estar de acordo. A verdade é que, neste momento, temos uma Europa alemã e devemos obedecer à cultura econômica alemã: uma baixa taxa de inflação. Mas sabemos que não adianta. A experiência nos ensinou que a estabilidade macroeconômica do mundo não se devia à estabilidade dos preços. Mas pensávamos que fosse o melhor modo de gerir as economias nacionais em um contexto de globalização.

Qual é a sua receita?

Não tenho receitas milagrosas, há um problema de decisão em nível político. Eu acredito fundamentalmente que a causa dessa crise tenha sido o crescimento da desigualdade no último quarto de século. Ocorreu que os mercados financeiros cresceram enormemente e, quando a bolha explodiu, viu-se que não havia renda suficiente para fazer a economia funcionar. Muita gente se tornou pobre, e a única forma que tiveram para manter seu nível de vida foi endividando-se.

Quem resistiu melhor à crise?

Se olharmos pelos números de queda do PIB, os Estados Unidos e a França. A Itália sofreu mais, quase o dobro, e a Alemanha sofreu ainda mais do que a Itália. Mas, no plano social, as coisas vão muito mal: o desemprego continua aumentando, e essa é a verdadeira crise.

Quando o emprego poderá voltar?

Não se sabe. Eu temo o contágio dos planos de rigor. Depois da Grécia, a Espanha, depois Portugal, depois... Veja, é aqui que podemos voltar a Bobbio: vigiemos sobre a igualdade, porque é a substância da democracia.

Projeto Excelências


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O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) foi criado em 1981. O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, é um dos fundadores da Instituição que não possui fins lucrativos e nem vinculação religiosa e partidária. Sua missão é de aprofundar a democracia, seguindo os princípios de igualdade, liberdade, participação cidadã, diversidade e solidariedade. Aposta na construção de uma cultura democrática de direitos, no fortalecimento do tecido associativo e no monitoramento e influência sobre políticas públicas. Para entrar no site do Ibase, clicar na figura.

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Estranha metamorfose: os economistas e jornalistas que defenderam, durante décadas, as supostas qualidades do mercado, agora camuflam suas posições. Ou — pior — viram a casaca e, para não perder terreno, fingem esquecer de tudo o que sempre disseram. Para ler, clicar na figura.

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A expansão dos serviços públicos gratuitos pode ser uma grande saída, num momento de recessão generalizada e desemprego. Mas para tanto, é preciso vencer preconceitos, rever teorias e demonstrar que a economia não-mercantil não depende da produção capitalista. Para ler, clicar na figura.