quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O sistema oligárquico que leva à destruição

Entrevista com Hervé Kempt, concedida por e-mail à IHU On-Line. 
Por: Márcia Junges e Luciano Gallas / Tradução: Vanise Dresch. 
Fonte: Unisinos

Hervé Kempf é jornalista e ensaísta francês. É editor do sítio Reporterre – http://www.reporterre.net. Entre suas obras, podem ser citadas Como os Ricos Destroem o Planeta (Comment les riches détruisent la planète - São Paulo: Editora Globo, 2010), Para Salvar o Planeta, Liberte-se do Capitalismo (Pour sauver la planète, sortez du capitalisme - Campinas: Saberes Editora, 2012), O Fim do Ocidente e o Nascimento do Mundo (Fin de l'Occident, naissance du monde - Barcarena: Editorial Presença, 2013), L’oligarchie ça suffit, vive la démocratie (“Basta de oligarquia, viva a democracia” - Paris: éditions du Seuil, 2013) e Notre-Dame-des-Landes (Paris: éditions du Seuil, 2014).


IHU On-Line - O senhor afirma que nossa democracia caminha para o fim e que uma oligarquia assumirá o seu lugar. O Ocidente conheceu, no passado, alguma democracia autêntica, ou isso é uma ficção?

Hervé Kempf - Não falo do futuro, mas, sim, do presente. O que digo é que não estamos nem na ditadura, nem na democracia. O sistema em que vivemos tem um nome: oligarquia. Uma casta defende os interesses das potências financeiras, que exercem uma influência desmedida na vida política, notadamente graças às mídias de massa e aos lobbies. No sistema oligárquico, a casta dos dirigentes reúne os poderes econômico, político e midiático. Este sistema visa manter os privilégios dos ricos, desprezando as urgências sociais e econômicas.

No Ocidente, a democracia nunca alcançou uma forma perfeita. Porém, sua vitalidade foi bem maior entre os anos de 1945 e 1980 do que é hoje. Sua saúde, se assim podemos dizer, degradou-se progressivamente desde a década de 1980: a deliberação livre está viciada, porque as mídias de massa são amplamente controladas pela oligarquia. A escolha majoritária está viciada pelo peso dos lobbies ou, às vezes, pela negação pura e simples da escolha popular, como vimos na Europa por ocasião do referendo de 2005, quando a vontade popular (que recusou o projeto do tratado constitucional) foi traída (o tratado acabou sendo imposto). O reconhecimento das minorias se perde sob o efeito da repressão cada vez mais aberta dos rebeldes, enquanto o respeito aos direitos humanos e às liberdades públicas é vilipendiado em nome das políticas antimigratórias. E por toda parte, a influência dos bancos e das finanças é imensa, principalmente nos meios políticos.

IHU On-Line - É possível reconquistar a democracia?

Hervé Kempf - Sim. Os regimes políticos não são estados inertes, e sim processos dinâmicos. O sistema oligárquico visa à estabilidade da ordem que mantém os privilégios dos poderosos. No entanto, ele não consegue sufocar a cultura democrática que impregna as sociedades ocidentais, tampouco destruir totalmente os instrumentos da representação, mesmo que os tenha amplamente pervertido pelo dinheiro. No que se refere aos Estados Unidos, o peso da oligarquia é tão grande que eu duvido que eles consigam resgatar a democracia. Porém, na Europa, muitas lutas atestam a grande vontade de recuperá-la. E no mundo inteiro, da Tunísia ao Egito ou da China à Turquia, vemos afirmar-se a consciência democrática dos povos.

IHU On-Line – Em que medida a crise global que se intensificou em 2008 caminha para uma crise mais profunda do capitalismo, que ameaça a sua existência?

Hervé Kempf - Precisamos assinalar aqui que o problema da existência ou não do capitalismo — uma forma histórica particular — não tem uma importância primordial. O que está em jogo é a existência de uma sociedade humana estável e pacífica, que garanta a cada ser humano uma existência digna. Este estado, que, em escala mundial, é o ideal a que devemos visar, tem sua existência gravemente afetada pela crise ecológica, que ameaça a estabilidade indispensável da biosfera, e pela amplitude das desigualdades, que geram uma guerra civil mundial mais ou menos latente.

No que se refere ao capitalismo, o abalo financeiro que ocorreu a partir de 2007-2008 deu início a uma fase de profunda mutação do sistema econômico mundial. Concretamente, isso significa que estamos saindo do capitalismo, da mesma maneira que a Europa saiu do Império Romano a partir do século III, ou saiu da Idade Média pelo Renascimento. Devemos, pois, considerar o capitalismo como um momento histórico que teve sua juventude e sua expansão (séculos XVIII e XIX), alcançando seu apogeu no fim do século XX. Mesmo que ainda seja uma potência, não deixa de estar em fase de decrepitude. Por quê? Porque, hoje, ele só pode se perpetuar pela especulação financeira (que levou justamente ao abalo de 2007-2008), isto é, segundo uma lógica perversa que privilegia o rendimento dos ativos financeiros em detrimento do funcionamento da economia real da produção e da comercialização dos bens.

Capitalismo mortífero

A crise ecológica em que entramos — e que envolve um campo histórico com uma profundidade muito maior que o do capitalismo — corresponde ao momento em que, pela primeira vez desde que a espécie humana existe, ela se depara com os limites da biosfera. Enquanto sempre nos desenvolvemos sem nos preocuparmos com o meio ambiente, ou contra ele muitas vezes, eis o momento em que devemos encontrar um meio de nos realizarmos como sociedade, mas restringindo, ao mesmo tempo, o que extraímos da biosfera e nosso impacto sobre ela.

A amplitude desse desafio, que o capitalismo é incapaz de enfrentar, explica por que ele está atingindo o seu fim histórico: ele não está mais adaptado às necessidades da nossa época e tornou-se mortífero. Para manter a sua existência, ele é obrigado a levar cada vez mais longe a lógica de privatização e mercantilização dos bens comuns, o que conduz a uma exploração desmedida e à destruição destes bens. Na verdade, é a própria lógica do capitalismo, baseada na apropriação individual das riquezas com o objetivo de aumentar indefinidamente o lucro, que leva à destruição do meio ambiente. Num momento histórico em que esta destruição não é mais aceitável devido ao perigo que representa para a salvação da humanidade, o capitalismo deve desaparecer ou transformar-se em outra forma econômica de relação com o meio ambiente. A menos, é claro — hipótese sempre possível —, que ele consiga manter-se, mergulhando então a biosfera num caos que arrastará a estabilidade da sociedade mundial.

Por fim, a ideologia capitalista não oferece mais um horizonte de pensamento às sociedades modernas: ela não faz senão repetir compulsivamente a apologia do mercado, do crescimento e do individualismo, valores esses que se tornam manifestamente contrários ao interesse comum.

IHU On-Line – Então podemos falar de várias crises concomitantes, como a da economia, da ecologia, do trabalho e a energética?

Hervé Kempf – Entendo o que você chama de crise do trabalho como a existência de um desemprego maciço em escala mundial, que afeta especialmente as jovens gerações. Esta crise me parece estar ligada a dois fenômenos característicos do capitalismo atual.

De um lado, a estruturação internacional do poder impediu muitos países de alcançar um desenvolvimento autônomo que lhes permitisse dar trabalho a todos os seus cidadãos. O livre comércio generalizado é posto em xeque, pois coloca no mesmo plano de concorrência os países ricos e fortes e os países pobres e fracos: refiro-me especialmente à África, mas isso vale para muitos outros países (vejam, por exemplo, como o Tratado de Livre Comércio entre Canadá, Estados Unidos e México - NAFTA enfraqueceu a economia deste último). Do outro lado, a concepção econômica predominante hoje privilegia a busca da produtividade do trabalho no jogo da concorrência econômica. Isso leva a eliminar cada vez mais os trabalhadores para substituí-los por máquinas, gerando desemprego.

IHU On-Line - Por que a democracia e a ecologia são inseparáveis?

Hervé Kempf - A crise ecológica gera uma restrição histórica totalmente nova e nos impõe uma verdadeira transformação das sociedades ocidentais, de seus modos de vida, de seus hábitos culturais de consumo. Nossa economia repousa num crescimento contínuo do consumo, ao mesmo tempo que sabemos pertinentemente que não poderemos prosseguir nessa corrida para o enriquecimento material. Seja em termos de extração de matérias-primas ou em termos de reciclagem, atingimos os limites da biosfera. Além disso, avançamos, do ponto de vista histórico, rumo a uma convergência do nível de vida de todos os países do planeta, porque há uma reivindicação legítima dos países emergentes, que desejam ser tratados em pé de igualdade com os países ocidentais em termos de acesso aos recursos e ao consumo. Ora, a situação ecológica não permite que essa convergência ocorra por um alinhamento ao nível de vida ocidental. Portanto, este deve mudar, o que significa reduzir o nível de vida material. Este é o principal desafio que se apresenta às sociedades ocidentais. A oligarquia não é capaz de enfrentá-lo.

Redução das desigualdades

Na verdade, para a oligarquia, é vital que o crescimento econômico e a promessa de aumento do consumo material sejam considerados um absoluto indispensável. É a condição para que a desigualdade atual seja aceitável, porque o crescimento econômico supostamente permitirá a elevação do nível de vida de todos. A questão ecológica, portanto, é sempre diminuída, e a crítica ao crescimento, considerada absurda.

De fato, é essencial que a deliberação coletiva se interesse por essas questões, que constituem a chave para um futuro pacífico. E a deliberação coletiva livre e informada é o cerne da democracia. Por esta razão, a democracia é o único meio de alcançar essa transição, que deve ser refletida e escolhida coletivamente e dentro de uma lógica de redução das desigualdades.

IHU On-Line - Em que medida economia e felicidade poderiam caminhar juntas?

Hervé Kempf - O próprio fato de a questão ser abordada dessa maneira mostra que a economia — e aqui, convém especificar, a economia capitalista, pois outra economia é possível — e a felicidade não andam juntas. Na verdade, a economia capitalista funciona atualmente pela manutenção, ou mesmo pelo aumento, de enormes desigualdades e pela destruição do meio ambiente, o qual, no entanto, é a base essencial do bem-estar coletivo. É claro que economia e felicidade deveriam andar juntas. Para isso, a economia deveria deixar de ser a referência absoluta de toda e qualquer atividade humana, para integrar plenamente os valores de respeito ao meio ambiente e de justiça social.

IHU On-Line - Seria possível “humanizar” o mercado, fazendo com que ele adquira sentido para as pessoas?

Hervé Kempf - Não devemos confundir economia de mercado e capitalismo. O capitalismo é um sistema no qual se quer que o mecanismo do mercado reja todas as atividades humanas. Mas o passado teve muitas sociedades em que existia um mercado que ocupava apenas uma parte das relações sociais, e estas se desenvolviam em muitos outros campos simbólicos. Sair do capitalismo não significa abandonar a economia de mercado, mas, sim, colocá-la no seu devido lugar, restringindo-a ao comércio de bens e serviços. A chave para recolocá-la no seu devido lugar está em postular muito claramente que muitos bens comuns (refiro-me obviamente aos recursos naturais, mas também a atividades essenciais como a educação e a saúde) não devem ser regidos pelo mercado.

IHU On-Line - Quais são os principais desafios dessa tarefa?

Hervé Kempf - Em primeiro lugar, a resistência virulenta do sistema oligárquico: ele não tem mais ideias, mas tem o poder, principalmente o de formar a consciência coletiva pelas mídias, ou seja, submetê-la às suas finalidades. Em seguida, conseguir reunir todos os movimentos de resistência que buscam caminhos para sair do capitalismo e transmitir sua mensagem ao maior público, isto é, ao povo.

IHU On-Line - O mercado reina sobre a política nestes tempos de economia financeirizada. Quais são as perspectivas de mudança?

Hervé Kempf - O objetivo prioritário é colocar as finanças e os bancos no passo certo. Em outras palavras, a política deve retomar o poder sobre o dinheiro. A democracia, que é o regime em que o interesse coletivo se impõe a todos após uma deliberação livre e informada, deve suplantar a oligarquia, que fusiona justamente na mesma casta a política, a finança e as mídias.

IHU On-Line – É a partir do âmbito de autorreferencialidade do mercado que podemos compreender a ruptura entre a economia e a ética?

Hervé Kempf - Parece-me que não. Repito mais uma vez, a economia não é o capitalismo, que não é senão um sistema econômico específico. Em sua forma atual decadente, o capitalismo divergiu da ética, ou seja, de um enquadramento moral que visa à realização da humanidade. No entanto, nada impede que se conceba e se dê vida a uma economia ética, isto é, uma economia que satisfaça as necessidades dos seres humanos sem destruir as condições biosféricas necessárias à perenidade da humanidade e que garanta, ao mesmo tempo, relações justas entre todos.

Essa economia ética rompe com o capitalismo: ela põe as finanças no passo certo, ou seja, faz com que estas voltem a exercer sua função primordial que é a de facilitar as trocas de bens. E desenvolve ao máximo, por toda parte, as capacidades de produção local, reduzindo o comércio internacional aos bens verdadeiramente úteis e indisponíveis localmente. A globalização prosseguirá, mas não tanto pela economia quanto pelas trocas culturais, inspiradas na ética mundial comum em formação: esta aspira a uma humanidade em paz consigo mesma e com a biosfera, a fim de encontrar um novo impulso para a etapa seguinte de seu magnífico destino.

Leia mais...

- “A autoridade pública está nas mãos do sistema financeiro”, afirma Hervé Kempf. Entrevista publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 18-02-2013;

- "Pela primeira vez, a humanidade se encontra com o limite dos recursos naturais". Entrevista com Hervé Kempf publicada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 12-01-2010.

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