Marshall Auerback é analista econômico norteamericano. Pesquisador sênior do prestigiado Roosevelt Institute, colabora regularmente com o projeto New Economic Perspectives e com o NewDeal2.0. Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior
Harold Meyerson põe o dedo na ferida: “De todos os hiatos que hoje separam nos EUA as opiniões da elite e da massa, talvez o maior seja este: as elites não acreditam realmente que ainda estamos em fase de recessão, ou ocorre de isso não ser o que as preocupa”. O que se torna mais revoltante é que, depois de terem sido os maiores beneficiários da magnanimidade do governo nos últimos anos, são precisamente eles que agora metem o pau na política fiscal “irresponsável” e “insustentável” do governo.
A amnésia coletiva e a depravação moral dessas elites é verdadeiramente inconcebível.
Por que temos um déficit de cerca de 10% do PIB precisamente agora, quando só era de 2% há 3 anos? As razões do estímulo de Obama, o plano de resgate bancário (TARP) e a desaceleração da economia (que respondeu a uma crise fiscal de envergadura, não precisamente causada porque o governo começara a esbanjar irracional e irresponsavelmente). Uma economia desacelerada leva à diminuição de renda (renda diminuída = menor arrecadação fiscal, visto que o grosso da arrecadação tributária procede da receita e das taxas marginais de substituição) e leva a gastos maiores na rede de bem estar social.
Por trás de todo esse furor sobre o déficit estão convenientemente camuflados os beneficiários desta recente prodigalidade pública. Não são, imediamente, os desempregados, nem a grande maioria das pessoas que não trabalha no setor dos serviços financeiros.
E já chega desse memorando agora imperante (- o último a vomitá-lo foi John Heilemann num artigo para a New Yorker Magazine: “Obama vem de Marte, Wall Street vem de Venus”, segundo o qual os custos do resgate financeiro são mínimos, graças às medidas “exitosas” empreendidas para “salvar” nosso sistema financeiro (como se valesse a pena salvá-lo na sua configuração atual). Com a exceção de Simon Johnson, virtualmente todos os analistas passam ao largo do fato de que nossa dívida pública, em relação ao PIB passou, em 2 anos, de 40% do PIB para 90% do PIB, como consequência direta da crise de 2008.
É preciso dizer que os terroristas do déficit se vêem agora fortalecidos por esse fato, esquecendo convenientemente suas causas subjacentes. O mesmo vale, com a conspícua exceção, do mencionado Meyerson, para os jornalistas que cobrem a atualidade econômica. Numa economia de mercado, em que a maioria de nós tem de trabalhar para ter uma existência material, as ameaçadas levantadas pelos Peter Peterson e a brigada de falcões do déficit representam um verdadeiro assalto ao nosso direito de trabalhar. Como observa meu amigo Bill Mitchell, “os neoliberais atacavam deliberadamente o direito ao trabalho de milhões de pessoas, forçando-as a uma situação de dependência para rapidamente caírem na responsabilidade do sistema de bem estar e lhes ser negado o pobre alívio que esse sistema proporciona”.
As elites que se esgoelam contra esse gasto público (marcadamente as de Wall Street) são como alguém que desse a outro cinco carteiras de cigarro por dia e depois se escandalizasse com o fato de que seu beneficiário contraiu irresponsavelmente um câncer de pulmão.
O que acontecerá ao déficit quando a economia melhorar, se chegar a fazê-lo? O estímulo de Obama e do TARP, ocorra o que houver, desvanescerá em poucos anos. O incremento da receita fiscal e o gasto social cairão. Voltaremos à “normalidade”, com déficits entre 2% e 4%, segundo o estado da economia, como tem sido nos últimos 30 anos, deixando de lado o período de 1998-2001. Até o escritório orçamentário do Congresso (CBO em sua sigla em inglês) concorda com isso. Mas o que ocorrerá em troca, com os cortes fiscais de Bush? Terão um impacto de 2% para mais ou para menos, caso forem revogados ou prorrogados.
O certo é que a melhor forma de conseguir a “estabilidade financeira” que podemos empreender é o pleno emprego, porque com um emprego crescente vem um crescimento da receita e a capacidade, consequentemente, para honrar a dívida. Isso significa menos inadimplência para os bancos e, assim, uma necessidade menor de proceder a resgates públicos.
Em troca, a austeridade fiscal não corta nada. Nossas elites parecem pensar que se pode cortar o “gasto público esbanjador” (quer dizer, reduzir mais a demanda privada) e cortar os salários e, pela mesma razão, as receitas privadas, sem esperar efeitos multiplicadores importantes que piorem significativamente as coisas. Calam-se porque sabem que esse gasto “esbanjador” e “insustentável” nunca parece apontar para o Departamento de Defesa, ao qual sempre temos sido capazes de financiar com alguns bilhões de dólares: dir-se-ia que os princípios de “austeridade nos gastos” nunca foi aplicado pelo Pentágono.
As elites que tomam decisões políticas parecem ter adotado a linha do FMI, segundo a qual os multiplicadores fiscais são relativamente baixos e os estabilizadores, automáticos (que funcionam para incrementar os déficits, enquanto o PIB despenca), não levarão adiante os cortes discretos no gasto líquido derivado dos pacotes de austeridade. Há provas empíricas sombrias de que esta hipótese é falsa e de que a prática dessas políticas fundadas nessa hipótese causa dano – que afetam gerações inteiras – em termos de volume, de produção perdida, em termos de receitas perdidas, em termos de bancarrotas e em termos de emprego perdido (especialmente, negado aos que saem do sistema educacional um começo robusto na vida laboral).
O que realmente está por trás de tudo isso é que as pessoas de visão não querem a menor intervenção pública nos assuntos econômicos, a menos que os beneficie diretamente. Com característica de ingratidão, Wall Street ameaça agora cortar as doações a campanhas eleitorais para Obama e para os democratas, por causa do propósito deles de promover uma maior regulação no setor financeiro. Contudo, quando o governo intervém com resgates, Wall Street põe o chapéu na cabeça e o casaco em mãos. Ninguém deseja enfrentar com a disciplina real dos mercados, se isso significar perdas. Quem está no segmento superior da distribuição da renda não é contra todo tipo de intervenção pública, mas estão frequentemente contra certas intervenções públicas que possam fortalecer a posição dos trabalhadores ou fomentar uma verdadeira competição entre as empresas privadas (no caso de uma escolha pública numa reforma da saúde, por exemplo).
O princípio do pleno emprego é o valor real que deveria guiar a política econômica, não a falsa ênfase em algumas proporções financeiras, sempre em mãos do setor financeiro. Eu duvido muito que esse princípio constitua a inspiração diretriz de nosso “Conselho de Sábios” que delibera sobre o Fundo de Previdência e o Medicare, a portas fechadas.
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