sábado, 3 de janeiro de 2009

Tariq Ali*

EUA e União Européia são cúmplices do massacre em Gaza

Os palestinos assassinados são trunfo eleitoral, numa disputa cínica entre a direita e a extrema-direita israelenses. Seus aliados em Washington e na União Européia, perfeitamente informados de que Gaza estava para ser atacada, exatamente como no caso do Líbano em 2006, sentaram e esperaram. A análise é de Tariq Ali (The Guardian). Fonte: Carta Maior

O assalto a Gaza, em planejamento há mais de seis meses e executado em momento cuidadosamente selecionado, foi feito, como Neve Gordon observou corretamente, como instrumento de campanha eleitoral, com vistas às eleições do mês que vem e para manter no poder os partidos que estão hoje no governo de Israel. Os palestinos assassinados são trunfo eleitoral, numa disputa cínica entre a direita e a extrema-direita israelenses. Seus aliados em Washington e na União Européia, perfeitamente informados de que Gaza estava para ser atacada, exatamente como no caso do Líbano em 2006, sentaram e esperaram.

Washington, como sempre faz, culpa os palestinos favoráveis ao Hamas, com Obama e Bush cantando pela partitura do sempre mesmo AIPAC (American Israel Public Affairs Committee). Os políticos da União Européia souberam dos planos, assistem aos ataques, ao sítio, ao bloqueio, ao castigo coletivo imposto à população em Gaza, aos assassinatos de civis etc. (sobre isso, ver o impressionante ensaio de Sara Roy, de Harvard, na London Review of Books [em português, "Se Gaza cair...").

Apesar de ver e saberem de tudo isso, foram facilmente convencidos de que alguns rojões de quintal teriam "provocado" a reação de Israel. E puseram-se a 'exigir' o fim da violência dos dois lados. Efeito? Zero.

A ditadura-come-mosca de Mubarak no Egito e os islâmicos preferidos da Otan em Ancara não se deram o trabalho, nem isso, de registrar algum tipo de protesto simbólico; sequer retiraram seus embaixadores de Israel. A China e a Rússia não convocararm reunião do Conselho de Segurança da ONU para discutir a crise. Para discutir. Que fosse.

Resultado da apatia oficial, um dos resultados das mais recentes agressões de Israel será incendiar as paixões nas comunidades muçulmanas em todo o mudo e fazer crescer a influência e o prestígio até das organizações terroristas que, no ocidente, apresentam-se como líderes de uma "guerra contra o terror".

A carnificina em Gaza obriga a discutir questões estratégicas cruciais para os dois lados, todas relacionadas à história recente. Fato que todos têm de reconhecer é que já não existe Autoridade Palestina. Jamais existiu. Os Acordos de Oslo foram completo desastre para os palestinos, criando um conjunto de guetos desconectados, todos sob obcecada vigilância de um cão-de-guarda brutal. A OLP, onde uma vez depositaram-se todas as esperanças dos palestinenses, é hoje pouco mais que mendigo que suplica migalhas do dinheiro da União Européia.

O entusiasmo pela democracia torna-se zero entre os aliados ocidentais, no instante em que, no oriente, os eleitores elejam partidos e candidatos que se oponham as políticas ocidentais. Israel e o ocidente fizeram de tudo para eleger candidatos do grupo Fatah: os palestinenses enfrentaram manobras, ameaças, golpes, tentativas de suborno pela "comunidade internacional" e sua campanha incansável de perseguição aos candidatos do Hamás e outros grupos de oposição. A campanha foi incansável. Os candidatos do Hamas eram rotineiramente perseguidos ou atacados pelos soldados e pelas polícias de Israel, os cartazes eram confiscados e queimados, rios de dinheiro dos EUA e da União Européia enriqueceram a campanha a favor do Fatah, e, nos EUA, deputados e congressistas discursavem, para dizer que, se eleito, o Hamás não poderia governar.

Até a data das eleições foi planejada para alterar o resultado das urnas. Marcadas para o verão de 2005, foram adiadas até Janeiro de 2006, para que Abbas pudesse distribuir vantagens a mancheias porque – nas palavras de um oficial da inteligência egípcia –, "depois, o público apoiará a Autoridade, contra o Hamas."

O desejo popular de promover limpeza geral, depois de dez anos de corrupção, de conversações sem propósito e sem objetivo, sob governos do Fatah, foi mais forte que tudo. O triunfo eleitoral democrático do Hamas foi tratado como sinal do renascimento do fundamentalismo e preocupante derrota nos planos de paz com Israel, por governos e por todos os grandes impérios de mídia em todo o mundo atlântico.

Imediatamente começaram as pressões financeiras e diplomáticas, para forçar o Hamas a adotar as mesmas políticas do partido derrotado nas urnas.

Sem qualquer ligação com o misto de ganância e dependência, com o sonho de enriquecimento rápido dos porta-vozes e políticos servis do Fatah de depois de Arafat, sem o mesmo tipo de subserviência a qualquer idéia de que algum "processo de paz" fosse algum dia possível mediante as políticas do Fatah de depois de Arafat e de Israel, o Hamas construiu na Palestina a alternativa e a lição de seu próprio exemplo.

Sem ter a abundância de meios com que conta o atual Fatah, o Hamas construiu clínicas, escolas, hospitais, ofereceu programas de assistência social para as populações mais pobres. Os líderes e quadros dirigentes do Hamas vivem frugalmente, como vivem todos os pobres na Palestina.

Esse tipo de resposta social e política às reais necessidades da vida no dia a dia explica o amplo apoio popular e eleitoral de que o Hamas goza hoje, não alguma recitação diária do Corão. Não se sabe ainda o quanto a conduta do Hamas na II Intifada aumentou sua credibilidade na Palestina.

Os ataques armados a Israel, como os da Brigada dos Mártires, a Al-Aqsa, do Fatah, são respostas de retaliação à ocupação muito mais mortal do que qualquer ação armada de resistência. Avaliadas na escala dos massacres perpetrados pelo exército de Israel, a reação dos palestinenses é rara e sempre é muito menos violenta.

A assimetria pode ser bem avaliada durante o cessar-fogo (que foi proposta unilateral do Hamas), iniciado em junho de 2003, e mantido durante o verão, apesar dos inúmeros ataques israelenses e das prisões em massa que aumentaram muito durante o cessar-fogo, quando mais de 300 combatentes do Hamás foram 'desaparecidos' ou mortos na Cisjordânia.

Em 19/8/2003, uma célula autoproclamada do Hamas, de Hebron, já denunciada e desautorizada oficialmente pelos dirigentes do Hamas, explodiu um ônibus em Jerusalém Oeste. Como reação, Israel imediatamente assassinou Ismail Abu Shanab, negociador-chefe, pelo Hamas, do cessar-fogo. O Hamas respondeu. Resposta à resposta, a Autoridade Palestina e os Estados árabes suspenderam todo o fluxo de ajuda financeira às inicitivas sociais do Hamas e, em setembro de 2003, a União Européia acedeu a pedido que Telavive fazia-lhe há muito tempo: incluiu o Hamas na sua relação de "organizações terroristas".

O traço que distingue o Hamas em toda a Região, obrigado a lutar uma luta desesperadamente desigual, não são os homens-bomba – recurso desesperado que se vê em muitos outros grupos –, mas uma espécie superior de disciplina, firmemente orientada para atender necessidades vitais de uma população também desesperadamente desamparada. Prova desse tipo de disciplina dedicada é, por exemplo, a competência com que o Hamás conseguiu implantar o cessar-fogo, também entre seus grupos, apesar das provocações de Israel, durante todo o ano passado. Todas as mortes têm de ser condenadas, sobretudo a morte de civis, mas Israel é, de longe, autor de muito maior número de assassinatos na Região, estatística que os euro-norte-americanos ignoram completamente. Na Palestina, nem que quisessem os palestinos matariam na escala em que os israelenses matam.

O exército de Israel é o mais modernamente armado exército de ocupação que há no mundo. E é, sem dúvida, o mais fortemente armado exército de ocupação de toda a história moderna.

"Ninguém pode condenar que uma população se revolte, depois de viver 45 anos sob ocupação militar", disse o General Shlomo Gazit, ex-chefe da inteligência militar de Israel, em 1993.

O verdadeiro problema dos EUA e da União Européia, motivo da oposição obcecada ao Hamas, é que o Hamas recusou-se a aceitar a capitulação implícita nos Acordos de Oslo, e, depois, de Taba a Genebra, tem-se recusado a esquecer as calamidades que EUA e a União Européia têm imposto aos palestinos. Desde Oslo, EUA e a União Européia têm, como prioridade, quebrar a resistência do Hamas. Cortar os financiamentos à Autoridade Palestina é instrumento óbvio, para minar a influência de qualquer iniciativa política local na Região. Outro, é inflar os poderes de Abbas – escolhido a dedo, por Washington, como, também, Karzai, em Cabul –, ao mesmo tempo em que minam a influência do Conselho Legislativo.

Não houve qualquer esforço sério na direção de negociar com as lideranças políticas eleitas na Palestina. Duvido muito que o Hamas se deixasse rapidamente subordinar aos interesses israelenses e ocidentais, mas se assim acontecesse, não seria o primeiro. O próprio Hamas carrega uma pesada hipoteca sobre os ombros, desde a formação: a fraqueza fatal do nacionalismo palestino, que sempre acreditou que só haveria duas vias, ou a completa rejeição de Israel ou a completa aceitação do desmembramento dos retalhos da Palestina, até ser reduzida a 1/5 de seu próprio território. Entre o delírio maximalista da primeira via, ao patético minimalismo da segunda, praticamente não há caminho para fora do abismo, como o demonstrou a história do Fatah.

O teste de vida e morte para o Hamas, não é ser ou não ser 'adaptado' de modo a tornar-se palatável para a opinião pública ocidental, mas, sim, conseguir separar-se do peso devastador de seu passado. Logo depois da vitória eleitoral do Hamas, em Gaza, um palestino perguntou-me, numa entrevista, o que eu faria se estivesse no lugar do Hamas, recém-eleito. "Dissolveria a Autoridade Palestina", respondi. Para acabar com a encenação. Isso feito, seria possível repor a causa nacional palestina sobre bases adequadas para exigir que o território e seus recursos sejam partilhados proporcionalmente entre populações assemelhadas em quantidade – não com 80% para os israelenses e 20% para os palestinenses, uma violência tão grande que, no longo prazo, nenhum povo jamais a aceitará. A única solução aceitável é um único Estado, para israelenses-palestinenses, no qual os crimes do sionismo possam afinal ser reparados. Não há outra possibilidade. Só essa.

Os cidadãos de Israel bem podem meditar sobre essas palavras de Shakespeare (n'O Mercador de Veneza), em que introduzi pequenas mudanças:

"Sou palestino. Palestino não tem olho? Não tem mãos, órgãos, altura, peso, sentidos, afeições, afetos, paixões? Não come a mesma comida, não morre pelas mesmas armas, não padece as mesmas doenças, não se cura pela mesma cura, não se aquece no mesmo verão e não congela no mesmo inverno, como o judeu? Se nos furam, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não rimos? Se nos envenenam, não morremos? Se nos fazem mal, não nos podemos defender? Se somos iguais em tudo, não reclamem de sermos iguais também nisso… A vilania que nos ensinaram, nós a aprendemos; seremos vis; menos vis que vocês, sim, porque viemos depois. Aprendemos com vocês, mas a vilania purga-se, no tempo. Mais do que isso, não posso prometer."

*TARIQ ALI é nascido no Paquistão e atualmente cidadão britânico, é uma das principais lideranças da frente única que lidera, na Inglaterra, as mais importantes movimentações contra a invasão a Iraque. No mundo de fala inglesa, Tariq Ali é também conhecido pelo seu livro Bush na Babilonia: a Recolonização do Iraque (Brasil: Record), onde analisa a política do imperialismo ianque e antecipa muito do que hoje está acontecendo. Historiador e novelista, tem publicados mais de uma dúzia de livros sobre história e política mundial e cinco novelas. Seu livro mais recente é The Clash of Fundamentalisms: Crusades, Jihads and Modernity (Londres: Verso, 2002). É editor e assíduo contribuinte da revista New Left Review. Escreve também em Monthly Review, Z Magazine e Counterpunch. É um dos pensadores mais respeitados do Fórum Anti-Globalização.
Fonte: Seminário Internacional Dilemas da Humanidade/UERJ


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