sábado, 30 de maio de 2009

Guido Rossi

O espírito ambíguo do dinheiro


O jurista e advogado italiano Guido Rossi analisa o papel do dinheiro na crise atual. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 29-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


A verdadeira riqueza nunca é o dinheiro, isto é, a pecúnia que Agostinho , em uma pregação incomparável na sua Hipona, retrata como um amante volúvel e cruel e que só pode se tornar instrumento de salvação na doação ao pobre. Mas, no desejo de acumulá-la, aninha-se, pelo contrário, a perdição do rico e a contínua volatilidade da riqueza que escapa de quem a possui. Escreve Agostinho: "A moeda é redonda, gira, nos escapa: é preciso contê-la adquirindo um imóvel". "E assim querem conter o próprio dinheiro comprando uma casa no campo [...] mas onde contiveste o teu dinheiro, não podes conter a tua vida [...] que te será pedida de volta. Não terás, portanto, a casa no campo, e a casa no campo não te terá".

Essa parece ser uma fantástica antecipação da teoria keynesiana da acumulação e do amor pelo dinheiro que refletem, ao mesmo tempo, o motor do capitalismo e a pulsão de morte que o acompanha. E como também não encontrar em Agostinho um índice, um traço do início da terrível bolha financeira atual que teve origem nos Estados Unidos dos derivados dos "sub-prime mortgages", em que a passagem do dinheiro ao imóvel e do imóvel ao dinheiro acabou destruindo tanto o imóvel quanto o dinheiro. Agostinho comentaria: "não terás, portanto, a casa no campo, e a casa no campo não te terá".

À deificação do ouro, como símbolo da verdadeira riqueza, sinônimo último do dinheiro e ao mesmo tempo segurança contra a morte, uma espécie de eternidade garantida, corresponde a deificação do homem que o acumula. Nos "Manuscritos econômico-filosóficos", de 1844, de Karl Marx, há um trecho que, pelo seu valor explicativo, vale a pena citar textualmente: "O que eu posso pagar mediante o dinheiro, isto é, o que o dinheiro pode comprar é o que eu mesmo sou. [...] Aquilo que eu sou e posso não é por isso determinado pela minha individualidade. [...] Eu sou feio, mas posso comprar a mais bela dentre as mulheres. Por isso, não sou feio. O dinheiro é o bem supremo e, portanto, a sua posse é boa".

O interesse composto que nos assegura contra o futuro e nos leva para o desejo mórbido da liquidez, garantia de riqueza contra a morte, tem a sua última obra-prima na riqueza, não mais criada pelo dinheiro possuído, que se reproduz no interesse, mas no débito.

Mas o débito deve ser pago, e a economia dos últimos 20 anos foi baseada no pressuposto que negou esse princípio.

As sofisticadas técnicas do capitalismo financeiro, ao contrário, transformaram o débito em um instrumento de criação de riqueza, da qual todos podem gozar. Assim iniciou a idade da leverage [alavancagem]. E, na manivela financeira, na opacidade, operaram bancos, fundos, entidades financeiras de toda a forma e tipo, instituições públicas e privadas. Não se investia mais com o próprio dinheiro, mas com o dinheiro tomado por empréstimo, de forma que, para ser financeiramente íntegro e poder pagar interesses e débitos, o modelo econômico exigia um aumento contínuo dos preços e uma contínua reavaliação do capital investido.

Mas a corrente se quebrou começando pelos bens imóveis, cuja transformação em bens móveis (instrumentos financeiros, derivados e assim por diante) não governou mais a contínua autorreavaliação, e a autodestruição terminou no desvio econômico de uma civilização marcada pela neurose do dinheiro, a qual, segundo uma asserção perfeita de Keynes, "destrói a beleza da paisagem, porque os esplendores da natureza não têm nenhum valor econômico. E somos capazes de gastar o sol e as estrelas, porque não pagam dividendos".

A atual crise dos mercados financeiros, que se deve à sua natural instabilidade e incapacidade de se autorregulamentar, como os mais inflamados idólatras do mercado admitiram, quando dotados de honesta intelectualidade, como ocorreu com Richard Posner, no seu recentíssimo livro "A Failure of Capitalism", parece colocar em discussão muitos dogmas passivamente recebidos para a interpretação dos comportamentos humanos, chegando até a se perguntar se não é o caso de se restaurar leis severas contra a usura.

O capitalismo financeiro deu um amplo espaço à fantasia dos "animal spirits" e impulsionou a criação de uma falsa riqueza às suas mais contraditórias paranoias, pensando ser um novo Midas que deve ser o alquimista com o débito. E, como Midas, perdeu tudo de vista e correu o risco da fome e da eutanásia. A falsa riqueza criada com o débito acabou na miséria. Porém, ainda hoje há quem pense em resolver o problema da crise atual substituindo os mercados financeiros com potenciais mercados de seguros, alimentados pelos incontroláveis "credit defaults swaps", sob a proteção de macabras apostas sobre a falência. Isto é, os derivados que Warren Buffett chamou de "armas financeiras de destruição de massa"

O princípio de Tomás de Aquino "Nummus non parit nummos", mesmo com algum ajuste, ainda é, pelo contrário, o ponto de onde é preciso partir. Então, é o tempo, como já defendi, de reverter a centralidade do problema econômico deslocando-a do capital ao trabalho e, finalmente, de descobrir que a verdadeira riqueza das nações não é fixada pelo dinheiro e pelos interesses de mercado, produtos como as operações mais imprudentes que a fantasia dos operadores inventa, mas está fundada sobretudo no trabalho, entendido no amplo sentido de atividade humana, de capacidade do homem de aprender e aplicar os seus conhecimentos aos procedimentos de produção e de consumo.

A justiça social quer que o produto do dinheiro, isto é, o interesse, seja comparado, no caso, à produtividade do trabalho assim entendido, e não ao mercado do risco. Pelo contrário, o dinheiro se tornou o objeto mesmo dos mercados do investimento. O feitiço da liquidez resultou, assim, no mais antissocial dos programas de investimento das instituições financeiras, em que aquilo que deve criar riqueza é só a liquidez.

Isso ocorreu nem tanto ou não apenas porque a avidez e a irracionalidade dos indivíduos tenham tido a supremacia, mas porque a avidez e a irracionalidade foram teorizadas e colocadas na base de um sistema que está se desagregando. A insensatez e o medo andam ao mesmo passo na cotidianidade de hoje e de então.

A globalização econômica comporta agora uma reflexão que aqueles que governam um mundo do risco total encontram de acordo para evitar as disparidades de riqueza entre os indivíduos e entre os países e uma caótica mas generalizada conflitualidade destrutiva, segundo os princípios fundamentais da Teoria da Justiça de John Rawls, e de modo particular o princípio de diferença, em base ao qual, se melhorarmos a situação dos menos favorecidos (indivíduos ou Estados), melhoramos a situação geral de todos.

Para usar uma metáfora que já usei mais vezes, a Fênix do desenvolvimento econômico contemporâneo está queimando no seu leito de arbustos que construiu para si. A nova Fênix que ressurgirá das cinzas deverá, seja no Ocidente como no Oriente, nascer por radicais reformas institucionais. E a já inevitável globalização deverá abandonar os princípios do Supercapitalismo, formulados por Robert Reich, para colocar em sua base acordos que privilegiem os direitos dos cidadãos e dos menos favorecidos.

Ela só poderá ser baseada na liberdade, na transparência e regulamentações dos mercados, mas sobretudo em um estado jurídico ditado pelo direito cosmopolita de Immanuel Kant, que defendia que "uma federação de Estado, tendo como objetivo só a remoção da guerra, é o único estado jurídico que é compatível com a sua liberdade". Não é, portanto, o direito cosmopolita que pode se sujeitar à força do dinheiro, que, pelo contrário, comprime a liberdade. Só na "Utopia" de Thomas Morus e por meio da "À paz perpétua" de Kant pode-se, por isso, realizar o sonho de uma verdadeira riqueza. E é justamente uma grande crise como a que atravessamos, com fortes características escatológicas, que pode unir os povos da terra em um projeto utopista.

Porém, o projeto pode se tornar menos utopista se os Estados conseguirem criar um consenso geral ao redor de princípios ("global legal standards") que obedeçam às linhas que tracei anteriormente, na dimensão de um novo "contrato social".

Para ler mais:



REVISTA CARTA CAPITAL - EDIÇÃO nº 481

por Mino Carta

Bolsas ou cassinos?
Um livro mostra: o capitalismo financeiro está acima da lei.E a política submete-se

No início do século deste terceiro milênio, entre as cem maiores economias mundiais compareciam 51 multinacionais e 49 Estados nacionais. Assim começa o primeiro capítulo de um livro que acaba de ser lançado na Itália pela editora Adelphi, de autoria do jurista Guido Rossi, professor da Universidade de Milão, e intitulado Mercato d’Azzardo, mercado de azar.

A tese central do livro, a desenvolver uma análise bem documentada e profundamente aguda, é de que somente a lei pode salvar o capitalismo. “Não surpreende, nesta altura – escreve Rossi – que a capitalização da Bolsa chinesa tenha ultrapassado o Produto Interno Bruto do país, e que entre as dez sociedades mais capitalizadas do mundo três sejam chinesas.” E logo adiante: “As corporações são os verdadeiros protagonistas da cena econômica contemporânea (...) e sancionam a divisão do mundo entre ricos e pobres: 93% das 200 principais sociedades pertencem a sete países”.

Os grandes grupos internacionais integram um sistema de troca paralela, acima do mercado e da lei. As bolsas são cassinos e o capitalismo financeiro funciona a seu talante com o beneplácito, mais, a submissão da política. Neste quadro, traçado com raro brilho e fluência, teriam de ser encarados desenvolvimentos da situação global que julgamos meramente políticos, na acepção tradicional.

Situações, por exemplo, como a da Itália, a correr o risco do retorno de Silvio Berlusconi e dos seus aliados da direita. Ou da França, entregue a Sarkozy. Quem sabe houvesse condições para repensar no declarado passamento das ideologias, desejado, anunciado e assentado pelos conservadores. Mas deus mercado também significa deus dinheiro, e diante dele a política cai em genuflexão. Quem reage, até a favor da sobrevivência do capitalismo pelos caminhos de uma lei internacional a ser cumprida à risca, milita do lado oposto. Seria esta a idéia de uma nova esquerda?

Não é por acaso que Sarkozy, ao encontrar na quarta 30 o líder da AN italiana, Gianfranco Fini, durante a conferência dos partidos populares (?) europeus, disse: “Torço por vocês”. Referia-se à crise italiana e à possibilidade de eleições antecipadas após a queda do governo de Romano Prodi. A AN é herdeira do neofascismo e Fini, aliado de Berlusconi.

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