Para o sociólogo e professor da Universidade de Munique e da London School of Economics, Ulrich Beck, o enriquecimento rápido converteu muitos em dependentes da droga do dinheiro emprestado. Agora, os ricos possuem um pouco menos, mas os pobres não têm o suficiente para viver. A situação é (pré-) revolucionária. O artigo foi publicado no jornal El País, 04-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
A revolta da desigualdade sacode o mundo inteiro: de Moscou a Helsinki, de Londres a Washington e de Berlim a Buenos Aires. Na Internet, encontramos páginas que convidam a queimar ou a pendurar os banqueiros. O centro mundial das finanças em Londres aconselha as empresas que exortem os seus trabalhadores a não passear mais de terno e gravata para evitar riscos. Aqueles que pareciam exercer um controle irrevogável sobre as finanças mundiais são agora percebidos e qualificados depreciativamente de "extraterrestres", são considerados pessoas de outro planeta. Quando se obstinam em seguir cobrando juros e obtendo privilégios, então são executados, pelo menos moralmente, nos debates televisivos. E provavelmente isso só está no começo.
A partir de diversos componentes, obtém-se assim uma explosiva mistura política e social. Não só aumenta a desigualdade, tanto no marco nacional quanto no global, mas também, antes de tudo, o rendimento e o ingresso já se desacoplaram completamente aos olhos da sociedade. Ou, pior ainda: no contexto do desmoronamento das finanças mundiais, produziu-se um acoplamento perverso, nas esferas mais altas do poder, entre gestão ruinosa e indenizações milionárias. O pequeno segredo, que não faz mais do que agudizar a amargura, consiste em que esse enriquecimento cobiçoso se realizou de forma absolutamente legal, mas atenta, por sua vez, contra todo princípio de legitimidade.
A ira popular se acende por causa dessa contradição entre legalidade e legitimidade com a qual a elite financeira incrementou fabulosamente sua riqueza. Mas essa ira se acende ainda mais, justamente, porque essa desproporção enganou todas as medições dos rendimentos, e porque as leis vigentes seguem encobrindo tão clamorosas desigualdades. Aqui também aparecem contradições na apreciação. Uns dizem: precisamos de mais impostos para os que ganham mais, já que o mercado não está em condições de corrigir os seus próprios excessos. Outros consideram, segundo o velho esquema, que isso não é mais do que uma política da inveja e exigem direitos que não se afastam das leis.
A consequência disso é que o grito de dor socialista que exige a igualdade é proferido justamente do centro ferido da sociedade e encontra repercussão em toda parte. Mas essa consciência da igualdade agora não faz mais do que alimentar as desigualdades sociais de um modo politicamente explosivo. As desigualdades sociais se convertem em material conflitivo que se inflama com facilidade, não só porque os ricos sempre são mais ricos, e os pobres, mais pobres, mas sobretudo porque se propagam normas de igualdade que estão reconhecidas, e porque, em todas as partes, se levantam expectativas de igualdade, mesmo que, no final, sejam frustradas.
Uma quinta parte da população mundial, a que se encontra em pior situação (possui, em conjunto, menos que a pessoa mais rica do mundo), carece de tudo: alimentação, água potável e um teto onde se abrigar. Qual foi a causa para que essa ordem global de desigualdades mundiais, nestes últimos 150 anos, se mostrasse, apesar de tudo, legítima e estável? Como é possível que as sociedades do bem-estar na Europa tenham podido organizar custosos sistemas financeiros de transferência em seu interior com base em critérios de necessidade e pobreza nacionais, enquanto boa parte da população mundial vive sob a ameaça de morrer de fome?
A resposta é que esse é – ou era – o princípio de eficiência que legitimava as desigualdades nacionais. Quem se esforçar será recompensado com bem-estar, rezava a promessa. Por sua vez, o Estado-nação procurava que as desigualdades globais se mantivessem encobertas e que parecesse que fossem legítimas e inalteráveis. Porque, até então, as fronteiras nacionais separavam nitidamente as desigualdades politicamente relevantes das irrelevantes. Quem se preocupa com as condições de vida em Bangladesh ou no Camboja? A legitimação das desigualdades globais está baseada assim na dissimulação do Estado-nação. A perspectiva nacional se exime de olhar a miséria do mundo.
As democracias ricas portam a bandeira dos direitos humanos até o último rincão do planeta, sem se darem conta de que, desse modo, as fortificações fronteiriças das nações, que pretendem interromper os fluxos migratórios, perdem sua base legítima. Muitos imigrantes levam a sério a igualdade pregada como direito à liberdade de movimento, mas se encontram com países e Estados que, justamente pela pressão das crescentes desigualdades internas, querem dar fim à norma de igualdade em suas fronteiras blindadas.
A revolta contra as desigualdades realmente existentes se alimenta assim dessas três fontes: do desacoplamento entre rendimento e ganhos, da contradição entre legalidade e legitimidade, assim como das expectativas mundiais de igualdade. Essa é uma situação (pré-) revolucionária? Absolutamente. Ela carece, no entanto, de sujeito revolucionário, pelo menos até agora. Porque os protestos procedem dos lugares mais diversos. A esquerda radical acusa os diretores dos bancos e o capitalismo. A direita radical acusa mais uma vez os imigrantes. Ambas as partes corroboram mutuamente que o sistema capitalista imperante perdeu sua legitimidade. Em certo sentido, são os Estados-nação os que deslizaram involuntariamente para o papel de sujeito revolucionário. Agora, de repente, estes colocam em prática um socialismo de Estado só para ricos: apoiam o grande banco com quantidades inconcebíveis de milhões, que desaparecem como se fossem absorvidos por um buraco negro. Ao mesmo tempo, aumentam a pressão sobre os pobres. Tal estratégia é como querer apagar o fogo com fogo.
Esse processo só foi possível porque as décadas anteriores geraram, em muitos âmbitos da economia, uma espécie de espírito de super-homem nietzscheano. Pequenas empresas locais eram transformadas em potências globais por super-homens da economia, e estes mudaram adequadamente as regras do poder em vigor. Levaram as finanças à esfera do incalculável, que ninguém, nem eles mesmo, podia entender. Mas sua atuação parecia se justificar ao elevarem a cotas inauditas seus benefícios, seu poder e seus ingressos.
A ideologia pregava que qualquer um podia triunfar. Isso era válido tanto para o comprador de baixos ingressos, que obtinha sua primeira propriedade, como para o malabarista que ignora os riscos incalculáveis. O paraíso na terra consistia em que o primeiro podia comprar com dinheiro emprestado, e o segundo podia se fazer ainda mais rico, também com dinheiro emprestado. Essa era, e segue sendo agora, a fórmula da irresponsabilidade organizada da economia global. Agora, na queda livre da crise financeira, ambos saem perdendo, mesmo que não exatamente da mesma maneira. Enquanto os ricos possuem um pouco menos, os pobres apenas conseguem viver. Depois de ter subido, agora o elevador volta a descer. Mas isso não amortiza a capacidade explosiva da revolta da desigualdade que se produz hoje.
Pelo contrário. As demandas de mais igualdade, que encontram sua expressão nos atuais protestos, alcançam a autoconsciência do Ocidente em seu núcleo neoliberal. Nas décadas passadas, se falsificou o sonho americano e suas promessas de liberdade e de igualdade de oportunidades pela promessa cínica de enriquecimento privado. Na realidade, esse espírito converteu muitas e muito diferentes sociedades em dependentes da droga de viver com dinheiro emprestado. A rotina diária das pessoas se baseava na obtenção de dinheiro rápido e barato, assim como na disponibilidade ilimitada de combustível fóssil.
A vida mesmo perdeu o controle nesse desejo permanente de obter cada vez mais e mais. Agora, cabe perguntar-se: onde estão os movimentos sociais que esboçam uma modernidade alternativa? Trata-se de coisas tão concretas como das novas formas de energia regenerativa, mas também de fomentar um espírito cívico que supere as fronteiras nacionais. E de qualidades como a criatividade e a autocrítica, para que temas chave como a pobreza, as mudanças climáticas ou civilizar os mercados tenham um lugar central.
Fonte: UNISINOS
A revolta da desigualdade sacode o mundo inteiro: de Moscou a Helsinki, de Londres a Washington e de Berlim a Buenos Aires. Na Internet, encontramos páginas que convidam a queimar ou a pendurar os banqueiros. O centro mundial das finanças em Londres aconselha as empresas que exortem os seus trabalhadores a não passear mais de terno e gravata para evitar riscos. Aqueles que pareciam exercer um controle irrevogável sobre as finanças mundiais são agora percebidos e qualificados depreciativamente de "extraterrestres", são considerados pessoas de outro planeta. Quando se obstinam em seguir cobrando juros e obtendo privilégios, então são executados, pelo menos moralmente, nos debates televisivos. E provavelmente isso só está no começo.
A partir de diversos componentes, obtém-se assim uma explosiva mistura política e social. Não só aumenta a desigualdade, tanto no marco nacional quanto no global, mas também, antes de tudo, o rendimento e o ingresso já se desacoplaram completamente aos olhos da sociedade. Ou, pior ainda: no contexto do desmoronamento das finanças mundiais, produziu-se um acoplamento perverso, nas esferas mais altas do poder, entre gestão ruinosa e indenizações milionárias. O pequeno segredo, que não faz mais do que agudizar a amargura, consiste em que esse enriquecimento cobiçoso se realizou de forma absolutamente legal, mas atenta, por sua vez, contra todo princípio de legitimidade.
A ira popular se acende por causa dessa contradição entre legalidade e legitimidade com a qual a elite financeira incrementou fabulosamente sua riqueza. Mas essa ira se acende ainda mais, justamente, porque essa desproporção enganou todas as medições dos rendimentos, e porque as leis vigentes seguem encobrindo tão clamorosas desigualdades. Aqui também aparecem contradições na apreciação. Uns dizem: precisamos de mais impostos para os que ganham mais, já que o mercado não está em condições de corrigir os seus próprios excessos. Outros consideram, segundo o velho esquema, que isso não é mais do que uma política da inveja e exigem direitos que não se afastam das leis.
A consequência disso é que o grito de dor socialista que exige a igualdade é proferido justamente do centro ferido da sociedade e encontra repercussão em toda parte. Mas essa consciência da igualdade agora não faz mais do que alimentar as desigualdades sociais de um modo politicamente explosivo. As desigualdades sociais se convertem em material conflitivo que se inflama com facilidade, não só porque os ricos sempre são mais ricos, e os pobres, mais pobres, mas sobretudo porque se propagam normas de igualdade que estão reconhecidas, e porque, em todas as partes, se levantam expectativas de igualdade, mesmo que, no final, sejam frustradas.
Uma quinta parte da população mundial, a que se encontra em pior situação (possui, em conjunto, menos que a pessoa mais rica do mundo), carece de tudo: alimentação, água potável e um teto onde se abrigar. Qual foi a causa para que essa ordem global de desigualdades mundiais, nestes últimos 150 anos, se mostrasse, apesar de tudo, legítima e estável? Como é possível que as sociedades do bem-estar na Europa tenham podido organizar custosos sistemas financeiros de transferência em seu interior com base em critérios de necessidade e pobreza nacionais, enquanto boa parte da população mundial vive sob a ameaça de morrer de fome?
A resposta é que esse é – ou era – o princípio de eficiência que legitimava as desigualdades nacionais. Quem se esforçar será recompensado com bem-estar, rezava a promessa. Por sua vez, o Estado-nação procurava que as desigualdades globais se mantivessem encobertas e que parecesse que fossem legítimas e inalteráveis. Porque, até então, as fronteiras nacionais separavam nitidamente as desigualdades politicamente relevantes das irrelevantes. Quem se preocupa com as condições de vida em Bangladesh ou no Camboja? A legitimação das desigualdades globais está baseada assim na dissimulação do Estado-nação. A perspectiva nacional se exime de olhar a miséria do mundo.
As democracias ricas portam a bandeira dos direitos humanos até o último rincão do planeta, sem se darem conta de que, desse modo, as fortificações fronteiriças das nações, que pretendem interromper os fluxos migratórios, perdem sua base legítima. Muitos imigrantes levam a sério a igualdade pregada como direito à liberdade de movimento, mas se encontram com países e Estados que, justamente pela pressão das crescentes desigualdades internas, querem dar fim à norma de igualdade em suas fronteiras blindadas.
A revolta contra as desigualdades realmente existentes se alimenta assim dessas três fontes: do desacoplamento entre rendimento e ganhos, da contradição entre legalidade e legitimidade, assim como das expectativas mundiais de igualdade. Essa é uma situação (pré-) revolucionária? Absolutamente. Ela carece, no entanto, de sujeito revolucionário, pelo menos até agora. Porque os protestos procedem dos lugares mais diversos. A esquerda radical acusa os diretores dos bancos e o capitalismo. A direita radical acusa mais uma vez os imigrantes. Ambas as partes corroboram mutuamente que o sistema capitalista imperante perdeu sua legitimidade. Em certo sentido, são os Estados-nação os que deslizaram involuntariamente para o papel de sujeito revolucionário. Agora, de repente, estes colocam em prática um socialismo de Estado só para ricos: apoiam o grande banco com quantidades inconcebíveis de milhões, que desaparecem como se fossem absorvidos por um buraco negro. Ao mesmo tempo, aumentam a pressão sobre os pobres. Tal estratégia é como querer apagar o fogo com fogo.
Esse processo só foi possível porque as décadas anteriores geraram, em muitos âmbitos da economia, uma espécie de espírito de super-homem nietzscheano. Pequenas empresas locais eram transformadas em potências globais por super-homens da economia, e estes mudaram adequadamente as regras do poder em vigor. Levaram as finanças à esfera do incalculável, que ninguém, nem eles mesmo, podia entender. Mas sua atuação parecia se justificar ao elevarem a cotas inauditas seus benefícios, seu poder e seus ingressos.
A ideologia pregava que qualquer um podia triunfar. Isso era válido tanto para o comprador de baixos ingressos, que obtinha sua primeira propriedade, como para o malabarista que ignora os riscos incalculáveis. O paraíso na terra consistia em que o primeiro podia comprar com dinheiro emprestado, e o segundo podia se fazer ainda mais rico, também com dinheiro emprestado. Essa era, e segue sendo agora, a fórmula da irresponsabilidade organizada da economia global. Agora, na queda livre da crise financeira, ambos saem perdendo, mesmo que não exatamente da mesma maneira. Enquanto os ricos possuem um pouco menos, os pobres apenas conseguem viver. Depois de ter subido, agora o elevador volta a descer. Mas isso não amortiza a capacidade explosiva da revolta da desigualdade que se produz hoje.
Pelo contrário. As demandas de mais igualdade, que encontram sua expressão nos atuais protestos, alcançam a autoconsciência do Ocidente em seu núcleo neoliberal. Nas décadas passadas, se falsificou o sonho americano e suas promessas de liberdade e de igualdade de oportunidades pela promessa cínica de enriquecimento privado. Na realidade, esse espírito converteu muitas e muito diferentes sociedades em dependentes da droga de viver com dinheiro emprestado. A rotina diária das pessoas se baseava na obtenção de dinheiro rápido e barato, assim como na disponibilidade ilimitada de combustível fóssil.
A vida mesmo perdeu o controle nesse desejo permanente de obter cada vez mais e mais. Agora, cabe perguntar-se: onde estão os movimentos sociais que esboçam uma modernidade alternativa? Trata-se de coisas tão concretas como das novas formas de energia regenerativa, mas também de fomentar um espírito cívico que supere as fronteiras nacionais. E de qualidades como a criatividade e a autocrítica, para que temas chave como a pobreza, as mudanças climáticas ou civilizar os mercados tenham um lugar central.
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